domingo, 20 de dezembro de 2009

FIQUEI VELHO!



Fiquei velho!

Faz tempo, que fiquei.

Certa vez, na biblioteca de uma colônia de férias, caiu-me às mãos um enorme ensaio da Simone de Beauvoir , A VELHICE, livrão pesado que compete, em grossura e número de páginas, com OS SERTÕES do nosso Euclides ou mesmo com A MONTANHA MÁGICA do Mann. Não li todo o ensaio e só posso compará-lo com as obras aqui citadas, apenas pelo volume... Mas, me recordo que uma das anotações da autora a respeito da velhice é a que sempre pensamos que a idade chega aos outros e não a nós, e naqueles dias em que lia o ensaio, pensei que aquela conclusão talvez fosse influência do companheiro Sartre: “o inferno são os outros”.

Mas chega à gente, sim!
Quero dizer, se você não morre cedo, a idade e a velhice chegam.

E cada um vai descobrindo a sua chegada de um modo.
Rubem Alves, em uma crônica, há tempos na Folha, fala de sua - agora - “implicância” em ser fotografado de perfil: a papinha ou a barbela, que nas fotos de perfil aparece abaixo do queixo, para ele, sinaliza o envelhecimento.
Um bom amigo, me disse, que se surprendeu no dia em que, no metrô, uma bonita jovem ofereceu-lhe o lugar e, depois, feliz pela prática da boa ação, olhou carinhosamente para ele com olhos de neta. Sorte, disse-me ele, a bela moça não ser “escoteira” e agradecer a boa ação diária com os dois dedinhos no alto da face dizendo em voz alta: “Sempre alerta”.
Moro em uma casa aqui na Serra da Cantareira e tive, durante alguns anos, como vizinho, um chileno educadíssimo, amante de bons vinhos, de fotografia e de uma boa prosa. Victor é o seu nome. Pois bem: ele tinha uma sobrinha, com pouquíssimo tempo de Brasil, àquela época com uns cinco ou seis anos, falante e graciosa com seu rostinho emoldurado pelos negros e lisos cabelos, parecendo uma indiazinha. Em uma tarde estava a podar plantas no jardim quando ouvi Camila, a sobrinha de Victor, aos berros em seu quintal, ao lado da piscina. Chorava alto e dolorosamente.
Depois descobri: sua tia “aproveitou”, enquanto Camila dormia, e saiu para realizar pequenas compras; ocorre que a nossa indiazinha deve ter acordado mais cedo que o normal em seu sono vespertino e se viu só na enorme casa, com um medo enorme dos tucanos que berravam no alto da paineira, medo da solidão, de não ter a tia a oferecer-lhe leite com Nescau, nem os primos para jogá-la de roupa e tudo na piscina... Assim berrava e berrava a pequena chilena!
Resumindo: me muni de uma escada, pulei o muro, fui até o quintal do vizinho e, com o apoio da mulher, “salvamos” a pequena Camila que ficou conosco até a chegada da tia. Em casa imediatamente se acalmou, ficou toda prosa, tomou leite, comeu bolo, e, a partir dali, tornou-se visita freqüente às tardes sempre pedindo bolo de chocolate, sua paixão. Mas voltando à velhice, assunto desta história: sempre que lhe perguntavam sobe o ocorrido naquela tarde, Camila dizia: “fiquei com muito medo e chorei até que um velhinho pulou o muro e veio me salvar.”
E agora de volta aos bancos azuis do metrô.
Estava indo da Sé para a República quando uma jovem ofereceu seu lugar a um senhor que, junto comigo, estava sem local para sentar.
O velho agradeceu a gentileza:
- “Obrigado, estou bem, e, também, desço na próxima” e olhando para mim: “Não quer sentar?”
- “Também, quero não. Desço na República, obrigado, não vale a pena.”
Travamos ali uma amizadezinha:
- “Quantos anos você tem?”, perguntou-me.
- “Sessenta e três”, o que dá para concluir que esta nossa historia no metrô ocorreu já há bastante, ou sendo generoso, algum tempo.
- “Mas você está bem, parece forte. Tenho sessenta e sete, fiz agora, no dia seis do mês passado.” E para seus sessenta e sete, realmente, o velho era saudável e se equilibrava firme, braços erguidos com as mãos segurando forte na alça de apoio do vagão do metrô. Assim estávamos os dois, próximos, dependurados no apoio do vagão: ambos magros, bastante calvos e as com as nossas enormes orelhas cheias de pelos abanando e ocupando razoável espaço naquele vagão do metrô. Com certeza, caso houvesse alguma jovem mulher no vagão, estaria olhando para nós como dois simpáticos e fortes vozinhos.
- “Mas o senhor está muito bem aos seus sessenta e sete”, disse.
- “Sim, estou bem, forte e cada dia mais feio. Tenho espelho lá em casa, me vejo todas as manhãs e o mesmo não me deixa mentir. Bem, desço aqui no Anhangabaú. Tchau!”
E desceu rápido, passos firmes, ombros erguidos sem nenhum sinal de corcunda no corpo magro...Feio.
Mais uma história. Foi em um almoço onde o prato principal era uma deliciosa feijoada. Entre os participantes desse almoço, um senhor, velho como eu, talvez uns dois ou três anos a mais, o que em nossa idade é zero, muito diferente de quando se tem treze anos e encontra um “menininho” de dez, que achamos insuportável em sua infantilidade. Voltando a este velho: me disse que praticava yoga, era vegetariano, não comia carne e ficou, realmente, um tempão frente a enorme panela da feijoada, catando grãos de feijão e um pouco de caldo que misturou ao arroz e couve; nada de carne, toucinho, costelinha defumada e, nem mesmo, um pedacinho de carne-seca.
Fez seu prato e sentou-se a meu lado para comer e conversar. Assunto principal: velhice. E eu tomando coca light em homenagem a diabetes e ele com sua feijoada vegetariana!
Mas era forte, saudável e um pouco falante demais o meu vizinho de mesa.
Não perguntei, mas descobri sua idade:
- “Tenho sessenta e oito anos, mas me sinto como se tivesse vinte, não vejo nenhuma diferença”, disse, iniciando a conversa enquanto, ao mesmo tempo, dirigia um olhar lascivo para a jovem e morena garçonete que ajudava nas tarefas de por a mesa.
Eu um pouco sem paciência:
- “Eu me sinto bem aos meus sessenta e cinco, mas muito diferente de quando tinha vinte anos.”, respondi.
E ele:
- “É mesmo? Por que?”.
E eu:
- “Bem...há muitas coisas que fazia aos vinte as quais não faço mais”, respondi.
E o velho falador, que não tirava o olho da garçonete morena, quase a desnudando em público:
- “Verdade? Ah, comigo não! O que você não faz agora e que fazia quando tinha vinte?”, desafiou-me enquanto continuava a desnudar a garçonete que, agora, à luta com a travessa de couve, era obrigada a curvar-se, deixando parte das belas pernas à mostra.
- “Não jogo futebol como jogava”, disse.
A conversa foi encerrada. Comemos em silêncio: eu a feijoada e minha coca light e ele, agora calado, o seu prato de arroz, caldo de feijão e couve.
E só para terminar cuidando para que esta historinha não fique tão longa como o ensaio da Simone de Beauvoir - atenção ao “tão longa”, pois longe de mim querer competir com a velha francesa em profundidade, qualidade na escrita e competência - vou contar de uma vez quando voltava de uma caminhada de dez dias pelo Caminho da Luz. Cansado da caminhada, após desembarcar na estação Rodoviária do Tietê, pegar o metrô e depois um ônibus até o ponto final, já no pé da serra, tomei um táxi para subir a Cantareira até minha casa; e foi aí, neste percurso pela estradinha da serra, que conversa vai, conversa vem: "Mas onde mesmo o senhor foi? Quantos dias andou caminhando no meio do mato? Dormiu em barraca?" . Enfim, satisfeitas as primeiras curiosidades, o taxista deu-me tempo para, por minha livre e espontânea vontade, dizer:
- “Gosto muito de caminhar, ficar só comigo mesmo por alguns dias no meio do mato. A gente, quando está envelhecendo, precisa disso.”
E o velho motorista de táxi, agilmente:
- “Envelhecendo não: já somos velhos.”

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

EREMITAS

Não sofro pela solidão; já é bastante esforço alguém tolerar a si mesmo e as suas próprias manias.” Jorge Luís Borges, “in” O livro de areia.

Não sei se com vocês, mas, em mim, a figura do eremita sempre exerceu um fascínio inexplicável. Ainda criança, via do curral de casa, ao longe, o Morro do Baguaçu que tinha ao seu pé, uma arredondada mancha amarelo avermelhada contrastando com o verde da vegetação ao seu redor e o negro de suas rochas; era a, para mim, inatingível, caverna do bugre Brechó: “é lá que mora o Brechó, negro de uma só perna, feroz e hábil na luta e na briga tamanha a facilidade que tem em manusear sua muleta”, dizia Antônio, um de meus irmãos. “Pode ir lá?”, perguntava e a resposta era sempre um “só vai quem gosta de morrer”. Aquilo me intrigava; o amarelo avermelhado da gruta e a sempre presente interrogação de como seria a vida do Brechó em sua caverna ao pé do morro. O que e como ele comia? Onde dormia? Será que, à noite, não tinha medo de onça? E também pensava no que o Brechó fazia para passar o tempo lá, tão só.
Mas foi então, com meus sessenta e tantos anos, já até meio esquecido do Brechó e do Morro do Baguaçu, que fui me embrenhar para conhecer um parque estadual do sul do país: seus cânions, cachoeiras, rio caudaloso, longas caminhadas foi o que me tirou do sossego de casa para a uma viagem, até lá, de mais de oito horas de carro. A uns dez quilômetros para chegar à pequena cidade onde permaneceria - sob intensa chuva, mau sinal para o que eu planejava fazer - uma placa aponta para uma pequena estrada calçada de pedras: a sede do parque estava há quatro quilômetros, à direita. Tomo a estradinha pedregosa, estreita, da qual se via, logo “lá em baixo” a casa que, imaginei, deveria ser a sede do parque; vista do alto, a pequena casa branca, com o grande cânion ao fundo era de um encanto assustador.
A uns quinhentos metros da sede, encontro Carlos - depois vim saber, um guia - que, em trabalho voluntário, estava a consertar o mata-burros, vítima das fortes enxurradas causadas pelas chuvas da semana. De dentro do carro trocamos os tradicionais: “Oi, tudo bem?”, “Sim tudo bem, fora a chuva?”, “É ali, naquela casa, a sede?”, “Sim, é ali mesmo”, “Obrigado, tchau”, “Tchau”. Na sede obtenho as informações e os mapas dos passeios possíveis de serem realizados sem guia, e daqueles que, necessariamente, teria que ter o apoio de um guia credenciado; quando me despeço para ir para a pousada, sou tímida e educadamente solicitado pelo guarda-parque a oferecer uma carona para Carlos.
Abrindo parênteses. Tenho, acentuada com a idade, com certeza, uma boa dose de birra dos guias com, via de regra, seus discursos “científicos”; não tenho mais, talvez nunca tenha tido, o mínimo interesse em saber se a tão amiga e esbelta “embaúva” chama-se “cecropia pachystachya” e que é, a pobre coitada, uma planta dióica; o que quero é ver a embaúva, relembrar o tanto de bicho preguiça que vi alimentando-se de suas bananinhas, rememorar a serra da minha infância coalhada de suas folhas prateadas... Enfim, o que quero em minhas andanças é sossego e não saber; o que quero é vislumbrar-me, me emocionar com o vazio, com o silêncio das palavras a salientar o canto dos pássaros ou o assoprar dos ventos. Fecham-se os parênteses.
Carlos, o guia, é um homem alto, com mais de um metro e oitenta, magro, pernas longas, jovem em seus trinta e poucos anos, rosto claro marcado pelo sol, cabelos fartos, tímido, educado, fala mansa. Enquanto conversamos Carlos me orienta a chegar até a pousada e, com um certo desânimo em relação ao tempo, se propõe a, caso o mesmo melhore, realizar comigo, no dia seguinte, uma caminhada que daria uma visão geral do parque, do cânion, e, de sobra, duas ou três cachoeiras: oito horas de duração entre caminhada, descanso, lanche e banhos de cachoeira. Isso, claro, se o tempo mudasse, e ao se despedir:
- “O pessoal da pousada tem meu telefone. Se o tempo estiver bom, é só pedir que eles me ligam. Daqui da pousada em casa são dois ou três minutinhos. Obrigado pela carona e boa noite.”
- “Boa noite, Carlos. Se o tempo estiver bom, te ligo.”
Inacreditável, parece mesmo mentira, mas o dia amanheceu sem nenhuma nuvem, com o céu azul à mostra e o sol brilhando forte, aquecendo as árvores molhadas e úmidas.
À caminhada, pois!
Ao fim da tarde, depois da subida, por trilha, do poço da última cachoeira do dia, com mais de duzentos metros de altura, exaustos - eu, pelo menos - Carlos propõe:
- “Vi que anda bem. Assim, se quiser, amanhã a gente pode descer o cânion, contornar o rio, visitar a cabana de um eremita que vive isolado no parque; lanchar junto à cabana do eremita, retornar e lá por volta das quatro da tarde, tomar um café reforçado na casa de uns colonos amigos. Andando bem, lá pelas seis da tarde estaremos de volta na pousada. Caminha-se uns trinta e pouco quilômetros, ida e volta, e o eremita que vamos visitar, se o senhor quiser ir, é o meu pai.”
As palavras “visitar um eremita” boliram fundo com a minha curiosidade.
Impossível não ir. Acertamos quanto ao lanche a ser levado, horário de saída - “temos que sair bem cedo” - e fui deitar pensando na figura do eremita: cabelos longos, barbas grisalhas, peito desnudo, calcanhares calejados nos pés descalços?
Saímos às seis horas: mochila com lanche, água, um potente binóculos – que se tornou a paixão do Carlos – e uma disposição enorme alimentada pela beleza do cânion, pelas rochas esculpidas em suas encostas, pelo rio tão lá em baixo com suas águas correndo forte entre pedras formando pequenas quedas e pela ansiedade de encontrar o eremita. Durante a caminhada não tocamos no assunto do eremita, pai de Carlos.
Já havíamos alcançado os fundos do cânion e caminhado há mais de uma hora margeando e ouvindo bem de perto o barulho das águas do rio quando, assim que atravessamos um pequeno córrego pedregoso, com águas límpidas e claras, com muitos lambaris à vista, Carlos aponta:
- “É ali, a cabana do eremita, meu pai.”
Na pequena clareira uma pequena cabana, com as paredes de bambus amarrados e justapostos muito próximos uns aos outros, vedando a entrada da água das chuvas e a cobertura feita com folhas de uma palmeira típica da região, também caprichosamente executada; as paredes de bambus tão justapostos e a cobertura com as folhas da palmeira conferiam, à pequena cabana, ares de um “bunker” com um pé direito de mais ou menos dois metros de altura e com uma área de, no máximo, oito metros quadrados, contemplando a cozinha e a sala e quarto. Vista por dentro, lembrou-me uma pequena “kitchenete” que morei quando estudante: aqui, em um dos cantos da cabana, uma pequena cozinha com panelas e frigideira limpas e areadas pousadas no fogão de taipa, sobre uma pequena bancada de bambu dois pratos de ágata, garfos e um facão enorme, com cabo de osso; na sala, contígua à cozinha, a cama sob a pequena janela, também feita com bambus, protegida por um colchão usado e gasto. Em toda a cabana um cheiro de limpeza, asseio e ordem.
- “Benção, pai.”
- “Deusabençoe, filho!”
O eremita estava barbeado, tinha os cabelos aparados e curtos, aparentava ter a minha idade, peito à mostra no corpo musculoso, magro, dentes brancos e um olhar intenso e curioso.
- “Pai, este senhor é de São Paulo e veio aqui conhecer o vale e o rio”, apresentou-me Oscar.
- “Prazer, meu nome é Tiago.”
Era hora do lanche. Tiro da mochila três bananas, ofereço ao eremita Tiago, que sem cerimônia, aceita duas, comendo-as rapidamente. Fala com elegância, voz clara de tenor, acentuando o sotaque típico da região. Reclama do cachorro, que pelo visto, era o xodó de Carlos:
- “Caga de medo de onça, o peste. Esta noite mesmo, por causa da lua, ela veio por aqui e o Tarzan, ao invés de atacar fugiu, ganindo morro acima. Que adianta cachorro que tem medo de onça? Só para gastar com comida?”
Carlos diz que vai ao rio desocupar. Ficamos o eremita e eu , sentados em um banco sob a árvore; comemos mais bananas e umas cenouras quando ele disse que aquilo seria seu almoço.
- “E o seu?”, perguntou.
- “O meu também: hoje nosso almoço é de bananas e cenouras”, respondo.
- “Ontem jantei mandioca e lambaris fritos. Comi bem demais. Quer ver a roça de mandioca?”
Fomos.
Sua tapera, que é como ele chama sua cabana, ficava a uns trinta metros da base de uma grande montanha rochosa e a uns cinqüenta do rio. “Os guardas do Ibama estiveram aqui e implicaram com a minha roça. Me disseram que deste jeito, com o desmatamento, as pedras da montanha podem se desmoronar e rolar em cima da minha tapera. Mas, olhe doutor, eu não acredito: se Deus colocou ali aquelas pedras desde os eternamente, porque agora iriam querer sair de lá, para justamente, vir derrubar minha tapera? Besteira.”
Não consegui, na hora, formar minha opinião: estariam corretos os ficais do Ibama? Será que o desmatamento provocado pela roça de mandiocas do eremita Tiago - que se limitava a uns trinta pés da planta, em um quadrado de vinte metros por vinte - poderia, mesmo, em longo prazo fazer rolar as imensas rochas que ficavam ao pé o morro? Sei não!
Nem bem Oscar, após ter cumprido suas necessidades à beira do rio, se aproxima, seu pai muda de assunto:
- “Oscar, comprei plástico grosso para cobrir a tapera; semana que vem vou buscar.”
Ficou evidente a decepção do filho, orgulhoso da engenhosidade do pai em cobrir tão perfeitamente sua tapera com as folhas de palmeira:
- “Mas pai, está tão bem coberta, não chove dentro. Para que por plástico, pai? Vai esquentar muito nos dias de sol quente.”
- “Até pagar, já paguei. Semana que vem, vou à cidade pegar a aposentadoria, ver sua mãe e trago ...tenho também que trazer mais querosene, arroz e óleo. Você não quer me ajudar a trazer? Te pago o dia.”
- “Ajudo pai, não precisa pagar o meu dia, mas não precisa do plástico.”
- “Quero, sim”, aparentando, pelo tom de voz, que o assunto do plástico estava encerrado.
O jeito foi Oscar muda de assunto:
- “Vamos embora? O pessoal está esperando a gente, às quatro, para o café. Pai, sabe que vamos tomar café na casa da tia Geraldina? Ela vai fazer biscoito de polvilho frito na graxa, bolo de mandioca e café margoso para o senhor aqui, que não pode com açúcar, por doença. Sua bênção Pai.”
- “Deusabençoe, filho. Pra semana a gente se vê.”
- “Até um outro dia, seu Tiago”, me despedi.
Deu-me a mão e respondeu timidamente:
- “Inté. Volte mais vezes, quantas quiser; gostei de conversar com o senhor.”
Nem bem coloquei a mochila nas costas para o retorno, Seu Tiago já descia em direção ao rio, dirigindo pesados palavrões ao “cagão” do cachorro Tarzan, que indiferente, abanava seu rabo a todo vapor, derramando-se em carinho pelo dono.
O retorno deveria ser realizado, para alcançar o sítio onde teríamos o festejado café na casa dos colonos, por um outro caminho, que nos deixaria a oeste da sede do parque, onde estava o carro. Por este caminho, segundo Carlos, bem mais difícil e cansativo que o da vinda, passaríamos pela caverna de calcário, ao pé do morro, que até “hoje em dia ainda é morada das onças, mas foi, de antes, morada dos bugres, que até enfeitaram suas paredes com desenhos rupestres; estes desenhos não podem ser tocados, mas, mesmo assim, se quer ir ver, podemos. Não atrasa muito a caminhada, coisa de uma meia hora, e estamos adiantados. Quer?”
Impossível não querer.
Enorme a caverna de calcário! Uma boca de mais de quatro metros de largura por uns sete de altura. Até uns cinco metros entrava-se com a luz a clarear; após isso, seu fundo era de um escuro absoluto, breu, tudo imensamente negro e com um silêncio capaz de fazer ouvir as batidas do coração e sentir, tamanha a solidão naquele negrume, o pulsar do sangue nas veias.
E foi então, aos sessenta e tantos anos, que visitei Brechó em sua caverna, ao pé do morro do Baguaçu, e o ajudei a desenhar, ao fim do dia, nas paredes da caverna, figuras que relatavam as aventuras de nossas caçadas, de nossos amores, de nossos sonhos e de nossos medos; repousei em sua cama ao chão, ajudei a fazer fogo, junto ao monte de pedras que era o fogão, para assarmos a paca que havíamos caçado e o enorme pintado que, no rio pedregoso, havíamos pescado; comemos, com as mãos, sentados no chão, a carne de paca e o peixe assado e ao despedir-me, coloquei sua muleta à entrada da caverna, para defendê-lo das onças e de outros bugres inimigos...

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina


O verão já chegara.
O ipê amarelo perdera as flores e estava, agora, carregado com suas folhas verdes pardas, ásperas, mas que funcionavam com um bom guarda-chuva, protegendo, do sol quente do meio dia, o banco do jardim, no qual me sentava após o almoço, para ler e fumar. De verdade, penso que ler e fumar talvez fosse a desculpa, sem motivo, inventada por mim, para o encontro e as palestras com Orozimbo, que chega faminto por fortes tragadas.
Fumamos e, já pensando na troca que faria, leio para ele:
“Meio século não se passa em vão. Sob nossa conversa de pessoas de leituras misturadas e gostos diversos, compreendi que não podíamos nos entender. Éramos diferentes demais e parecidos demais. Não podíamos nos enganar, o que torna difícil o diálogo. Cada um de nós era o arremedo caricatural do outro...porque o inevitável destino dele era ser o que sou.”
Orozimbo toma de minhas mãos O Livro da Areia, do Borges e me entrega sua brochura; percebi que desenhara, com sua caneta de pena, um par de óculos sobre os olhos do Duque de Caxias, que assim, de óculos, ficou mais sério, o Patrono do Exército Brasileiro.

DURVALINA: ACABOU-SE A HISTÓRIA, MORREU A VITÓRIA.

Mas, Deus do céu, onde foi parar o tatu galinha?
Sumiu, o desgraçado? Será que esqueceu seu compromisso de buscar-me para meu retorno de volta à luz? Ando já cansado do escuro e da umidade das profundezas do cemitério e querendo, muito, ver de novo o sol. Resolvo que a melhor maneira de esperá-lo é conversar com a Mariquinha Precata. Vou até seu canto!
Como sempre está lá a Mariquinha, toda encolhida, costas curvadas, magérrima, e me faz pensar: “não sei como deu certo em sua profissão: feia demais para ser puta”.
- Me conte, Mariquinha a história de sua irmã Durvalina?
- Conto sim, Orozimbo. Mas para não encompridar ainda mais esta história, vou contar para você partindo do fim, e assim, vejo se, hoje, termino. Pois aconteceu que Durvalina, sabendo dos meus finalmente de vida, veio me visitar, palestrar comigo, fazer a última visita. Você sabia, Orozimbo, que foi ela que ficou comigo na hora da minha morte, segurando em minhas mãos, rezando terço baixinho, pedindo a Deus e a Santa Luzia pela minha alma? Boa demais minha irmã Durvalina. Então foi assim que ela me contou:
- “Pois então, Mariquinha, moramos lá na Santa Generosa, eu e Oscar, por trinta e tantos anos. Já no segundo ano de morada por lá o Patrão nomeou Oscar, como vaqueiro: isso dava a ele toda a responsabilidade pela fazenda, desde tarefas mais simples como cuidar do trabalho e do pagamento dos colonos e dos peões até trabalhos mais difíceis e honrosos como contar e vender, todo ano, lá pelo mês de setembro, a boiada, receber o dinheiro pelas vendas e zelar por ele até hora de entregar ao patrão. De bom, além dos pagamentos, a cada quatro bezerros que nascia um era dele. No início, quando tínhamos a certeza de muitos filhos e filhas, oferecíamos aqueles bezerros aos futuros: este vai ser do Luís, aquele outro da Luzinete, o tourinho bravo, cujo nome é Cigano, será do Justino...Filhos não tivemos: nada, providência nenhuma – e foram muitas as tentativas - conseguiu apagar a praga de secar meu bucho, jogada, em mim, pela patroa. “ Que fazer: Deus quis assim “, dizia Oscar;” desgraçada, filha d´uma égua “, pensava eu. Mas enricamos, Mariquinha: muitos bezerros e bezerras, porcos, galinhas, arroz, milho, mandioca...tudo com fartura a ponto de sobrar para vender. E foi daí, não sei se você ainda se lembra, Mariquinha, mas sabe aquela fazenda quase em frente a do Patrão, chamada de Boa Vista? Então: o governo desapropriou, dividiu em alqueires e distribuiu entre os moradores da região que não tinham terra. Seu Alfredo, pai de Oscar, e dona Ana, sua mãe, ganharam dois alqueires e para lá se mudaram. Com o dinheiro da venda de bezerros e porcos, Oscar mandou construir uma casinha, cercar as divisas, fazer curral e comprou duas bezerras para iniciar a criação. Seus pais também plantavam mandioca, milho e feijão de vara. A única dificuldade era a água: em grandes secas tinha que ser buscada na fazenda do Patrão, em troca de dias de serviços. E foi daí, Mariquinha, que Oscar, com seus cinqüenta e poucos anos foi ficando fraco e mais fraco. Não mais aguentava montar cavalo, respirava mal com o peito doente, de qualquer coisa se cansava e nada mais podia. O médico disse: “foi picada de barbeiro, o coração cresce demais e morre cedo.” Morreu, o meu Oscar, de tanto que inchou seu bom coração. Levei seu corpo para ser enterrado no cemitério do lugar onde nascera. E passei a ficar morando por lá, cuidando dos seus pais; te confesso, Mariquinha, que fiquei muito desiludida, sem o marido, sem os filhos que não tivemos; de bom, mesmo, só as lembranças de nossa vida de marido e mulher, das tardes na Santa Generosa, dos nomes que imaginávamos para nossos filhos, dos sonhos que sonhamos.
- “Mas me conte, Durvalina, como foi que você voltou a trabalhar para o Patrão Anselmo”, pedi.
E Durvalina continuou sua história. Pois foi assim, me disse: Acontece que, mesmo antes de sua mulher morrer, ele me contratou para lavar suas roupas, cuidar da limpeza da casa e cozinhar. Era o pagamento pela água que a gente precisava e que em casa não tínhamos. Então fui. O Patrão Anselmo era agora um homem fraco, doente, cara amarela, barba sempre por fazer: quieto, moribundo. Apenas quando nuvens apareciam no céu, chamando chuva, ele assoviava, um pouco desafinado a Saudades do Matão, mostrando um pouco de alegria.
Nos demais, parecia tão triste como eu.
Pai de Oscar morreu e ficamos na chácara, sua mãe e eu, para de tudo cuidar: das vacas, da plantação de mandioca, do feijão e do chiqueiro com os porcos. Intentei e consegui, com o Patrão, trabalhar até o meio-dia em sua casa com o direito de voltar à tarde para cuidar das nossas coisas. “Se não der conta de tudo o que tem que fazer, também dou só a metade da água que vocês precisam, combinado, Durvalina?” foi sua mal humorada resposta. Então era essa a luta: eu querendo tudo fazer logo cedo até o sol do meio dia queimar minhas costas para poder voltar e cuidar das nossas vacas, porcos, galinhas, mandiocas e feijões, e ele, Anselmo, querendo tudo retardar, reclamando da comida, sujando mais roupa, exigindo que além da dele eu lavasse também a roupa do vaqueiro já que “minha mulher morreu e não tem mais que lavar a roupa dela”. Eu seguia fazendo de tudo para dar conta: aquilo era minha diversão, minha vida: jogar na cara amarelada e barbuda do patrão doente que eu estava ali, forte, sacudida, com doença apenas na alma triste de tanta falta do Oscar. Uma tarde, lavando a louça do almoço, ouvi no rádio que o Patrão havia ligado: “o governo decidiu arrendar a lagoa da fazenda do Patrão para oferecer água a quem não tinha”.
- “Filhos da Puta! Sabem, os desgraçados do governo, que não quero arrendar merda nenhuma”, berrou o patrão, desta vez saindo da rede com a antiga rapidez de homem são.
Terminei de lavar a louça e me despedi.
- “Até amanhã, seu Anselmo.”
- “Inté”, respondeu nem bem se dignando a olhar para os meus lados. E continuou a falar sozinho: “Desgraçados, querem tirar minha água para oferecer aos merdas dos seus eleitores; que se fodam: bondades com minha água é que não vão fazer.”
Fui para casa e sob o sol escaldante, sem uma nuvem no céu, me peguei assoviando a Saudades do Matão. Manhã seguinte, também: alguma coisa me fazia assoviar Saudades do Matão enquanto lavava as louças que sobraram da janta, enquanto pendurava a roupa lavada no varal, enquanto ajeitava, sob a sombra da aroeira, a rede do Seu Anselmo, toda manchada e fedida de suor, para ver se aliviava um pouco aquela catinga por demais de ruim. No rádio, dia seguinte e seguintes, a notícia era a mesma: decisão tomada pelo governo era a de desapropirar a Lagoa, tirar sua cerca em volta e dar água a quem quisesse: era para se cumprir a lei. “Filhos da puta, desgraçados!”, xingou, pulou da rede e desligou o rádio. Espreguiçou forte, enfiou o chapéu de couro na cabeça, pegou a espingarda e dirigiu-se para a Lagoa, com a intenção de defender suas águas.
Terminei o serviço, arrumei as louças na prateleira, peguei minha trouxinha e me pus a caminho de casa. Era outro dia em que, sem nenhuma santa nuvem no céu anunciando chuvas, eu, independente de minha vontade, meu pus a assoviar a Saudades do Matão. O jeito foi a polícia chamar, na capital, Lindomar e Sebastiãozinho, seus filhos; Seu
Anselmo pai endoidara, não mais comia, teimando em ficar dia e noite encostado na aroeira, espingarda às mãos, para, dizia mal humorado entre os dentes, “defender o que era seu pela justiça de Deus e dos homens”.
Os filhos o levaram, vestido com camisa de força, para um hospício na capital; decidiram, também, que eu seria paga para tomar conta da casa onde, quando criaças, sobre minhas costas, brincaram de cavalinho. A polícia retirou os arames que cercavam a lagoa, agora de todos. Foi também a polícia quem avisou do telefonema do Seu Tonico, me avisando de seu estado de saúde. Então resolvi vir: vendi um porco, duas galinhas, arranjei, com isso, o dinheiro das passagens, peguei o ônibus e estou aqui, ao seu lado, Mariquinha, rezando por você que logo, logo estará junto do meu Oscar.


terça-feira, 17 de novembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina


A preguiça triste de entender o mundo anda a me perseguir, parecendo não querer mais se desgrudar de mim. Não tenho forças sobre ela, que anda a me dominar, e, ainda bem, que o sol penetra forte sob as flores amarelas do ipê, aquece minha cabeça e meus ombros neste frio mês de agosto. Vou dividir, penso, estes últimos seis cigarros do maço de Continental com o Orozimbo, que chega em seu terno marrom, camisa azul com o colarinho puído, os punhos encebados e a gravata preta cobrindo o peito magro.
Começamos a fumar e leio para Orozimbo:
“– Cemitérios gerais
onde não só estão os mortos.
- Eles são muitos mais completos
do que todos os outros.
- Que não são só depósito
da vida que recebem, morta.”
Terminei a leitura e nem perguntei a Orozimbo se havia gostado. Sabia que a resposta seria um NÃO, assim mesmo, com letras maiúsculas. Sabia também, que tomaria rápido, de minhas mãos, a Antologia Poética, do João Cabral.
E foi mesmo o que aconteceu: em troca me passou sua Brochura com o Duque de Caxias enfeitando a capa.


MARIQUINHA PRECATA CONTA A MUDANÇA DE DURVALINA PAR O SERTÃO DO CEARÁ.


E nada do tatu-galinha aparecer para me levar de volta à luz. Assim me restou ficar andando e andando pelos fundões escuros do cemitério. Lá embaixo continuava úmido e dava pena dos anjinhos: espirravam muito os pobrezinhos, creio que por terem seus pequenos pulmões mais sensíveis ao frio e à umidade.
Depois de boas conversas com amigos mortos recentemente e outros nem tanto voltei para o cantinho da Mariquinha Precata que é onde mais gosto de ficar para conversar e ouvir suas histórias.
- Conte mais de sua irmã Durvalina, Mariquinha? pedi.
- Conto, Orozimbo. Mas você não acha que esta história da Durvalina está muito comprida, parecendo “O Direito de Nascer”?
- Você escutava O Direito de Nascer, Mariquinha? Gostava?
- Gostava muito. Não perdia um capítulo na Rádio Nacional. Assim que ia começar a novela eu ia ao alpendre, desrosqueava para apagar a lusinha vermelha, sinal de que eu estava ocupada em minha profissão de puta. No horário da novela não atendia. Naquele horário, só tinha uma vez na semana, e acho que era nas quintas feiras, que vinha o Seu Tonico me usar. Ele dizia que era a única hora que sua mulher, a Dona Alice, com os ouvidos e a mente grudados na Rádio Nacional, o deixava livre. Mas, veja bem Orozimbo, era já antes tudo combinado: deitava com ele, aceitava ele em minha cama para fazer uso de mim, mas com o rádio ligado na novela. Aí eu fingia movimentos e sons mas a minha atenção mesma, estava toda no Albertinho Limonta, em sua voz doce, linda. Seu Tonico terminava seus prazeres, enfiava sua calça de linho, punha o dinheiro do pagamento em cima do criado mudo e eu continuava a ouvir O Direito de Nascer e só acordava daqueles sonhos quando acabava o capítulo; aí sim levantava, me lavava e voltava ao alpendre rosquear e acender a pequena luz: a vida continuava, agora sem o Albertinho Limonta e a luz vermelha acesa era o sinal que estava livre para prestar meus serviços a outro freguês.
- Danada você Mariquinha...
- Mas Orozimbo, não vamos perder o assunto da história de minha irmã Durvalina, agora toda casada de papel passado.
Como ia te dizendo, e já te contei outra hora, lá se foi minha irmã Durvalina e seu marido, o peão João, cuidar da fazenda do patrão Sebastião, no sertão do Ceará, bem longe, muito longe. Pois foi ela, a Durvalina, quem me contou que gastaram mais de uma semana em cima do lombo de cavalo e do banco da carroça com a mudança, até a Fazenda Santa Generosa. A carroça, puxada pelo burro Zeloso, estava carregada: mais de um saco de farinha de mandioca, uns dois sacos de arroz, carne de sol salgada e seca, feijão, dois corotes de água, a trouxa com as roupas e as tralhas de cozinhar e comer; de vivo, na carroça, dois porquinhos, duas galinhas e um galo índio. Ao lado, curioso com a mudança, ia o Vinagre, cachorro de estimação do João, muito ensinado e ia também o Pangaré, cavalo grande, muito importante, alazão, acostumado com as lidas de gado. Durvalina e João viajavam mais tempo na carroça, outras horas iam montados no Pangaré e andavam também a pé quando o terreno era plano, sem morros e subidas fortes; mas a pé era mais de manhã, quando o sol castigava menos.
Chegaram na Fazenda Santa Generosa e se acomodaram, inicialmente, em uma tapera de pau a pique, à beira do morro do Chapéu, perto do córrego de Santa Luzia: descarregaram a carroça, soltaram o Pangaré, os porquinhos e as galinhas, armaram suas redes e ajeitaram a taipa do fogão.
Vida nova, longe de tudo e de todos.
João ia cuidar de mais de duzentas cabeças de gado, todas branquinhas, orelhas compridas, cara de assustadas com seus enormes olhos negros. Também roçou pasto e preparou a roça para a lavoura de mandioca, e ajudou Durvalina a bulir e remoer a terra para plantar a pequena horta, nos fundos da casa, perto do córrego. Durvalina, cuidava dos porcos, das galinhas, capinava e plantava a horta.
De noite eram amores, ela me disse. Era hora, também, ela me disse, de escolher os nomes dos filhos que viriam: João o dos meninos e ela das meninas: Romualdo, Cícero, Carlos, Paulo, Reinaldo...Rosa, Virgínia, Deolinda, Ana Maria...“Quantos filhos você quer ter, Durvalina? Eu quero pelo menos uns seis: três meninos e três meninas”, cochichava ao pé do ouvido, João. “Também quero muitos filhos, João. Até uns oito eu quero. O que Deus mandar eu aceito” respondia, também, com o hálito quente ao ouvido do marido. E dormiam pensando na família que teriam , no barulho e no choro das crianças, nas preocupações com seus estudos. “Teremos que voltar, Durvalina, aqui não em escola”. “Tem tempo, quando for hora a gente resolve, João”. E Durvalina voltava para sua rede, agora para dormir mesmo.
O primeiro São João passaram lá mesmo, sós, na Fazenda Santa Generosa. Ano seguinte àquele não: resolveram passar o São João na antiga fazenda. Aproveitaram para ver os parentes, dançar na festa de São João e Durvalina consultar benzedor famoso daqueles lados:
- “Porque não me embarrigo de filho, seu Eliseu?”, perguntou Durvalina.
- “Vocês tem tentado sempre? Faz quanto tempo?”, pergunta sério o benzedor Eliseu.
- “Afora os dias da regra, sempre, todas as noites Seu Eliseu?”.
Seu Eliseu receitou uma raizada e a esperança voltou.. Voltaram para a Santa Generosa: na garupa do Pangaré, Durvalina carregava cortes de chita, um chapéu novo do João e duas garrafas com a raizada.
- “Pedro, Fábio, Luís, Márcio....” dizia João. “Marta, Cristina, Lúcia, Aparecida...” continuava Durvalina; esta era a, de sempre, conversa dos dois abraçados em uma só rede, naquelas noites na Fazenda Santa Generosa.
No outro São João voltaram ao Seu Eliseu. “Só pode ser praga! Jogaram praga e secaram seu bucho, Durvalina. Pode ser coisa da patroa, de inveja. Procure Sinhá Benedita, negra velha que desmancha estes nós de mau-olhado. O meu saber termina aqui.”,
Na garupa do Pangaré, desta vez, Durvalina levava cortes de chita e novelos de linha grossa, dúzia e meia de velas brancas, uma dúzia de velas pretas, das grandes, um terço, ramos de cipó cabeludo: receita da Sinhá Benedita para acabar com o mau olhado que a patroa havia jogado no bucho de Durvalina, secando-o.
Resolveram prometer que dariam aos filhos nomes de santos protetores: “Antônio, José, Benedito, Pedro....Aparecida, Luzia, Isolda, Maria...”
- Me cansei Orozimbo. Você me desculpe ma cansei, por agora, quero contar mais não. Outra hora: passe aqui.
- Ta certo Mariquinha, vou ver se acho o tatu galinha por aí...assim que der volto para saber o resto
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sábado, 7 de novembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina



Tempos de uma preguiça triste.
Cansado com a rotina do trabalho, descontente com o pouco ou nenhum entendimento das exigências da vida, agrada-me sobremaneira o sol, os cigarros e o silêncio da pequena praça. Para compreender a existência e a convivência neste mundo talvez, só mesmo, páginas e páginas do escritor já morto, cigarros fortes - desses sem filtro - e a companhia de um louco: o Orozimbo.
- Está sorumbático? pergunta Orozimbo enquanto estende a mão para o maço de Continental.
Ofereço-lhe o cigarro, pego outro e com o mesmo palito de fósforo acendo os dois.
Tragamos forte.
Vou ler um trechinho para você, Orozimbo:
“Não compreendo você – disse Hans Castorp. – Simplesmente não compreendo como alguém possa viver sem fumar. Priva-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida. Em todo caso lhe escapa um prazer magnífico. Quando acordo pela manhã, já me alegro com a idéia de poder fumar durante o dia, e quando tomo uma refeição, já penso em fumar depois. Sim senhor, posso dizer, com um pouco de exagero, que como apenas para ter uma oportunidade de fumar.”
- Ota vida boa! fala Orozimbo soltando a fumaça pelo nariz e pela boca enquanto toma de minhas mãos A Montanha Mágica, de Thomas Mann, do qual havia lido o pequeno trecho.
Imediatamente me oferece desta vez não a brochura com a figura do Duque de Caxias na capa, mas duas folhas de papel pardo escrito a lápis.
- Rascunho ainda, falta passar a limpo, me disse.


MARIQUINHA PRECATA CONTA A HISTÓRIA DO CASAMENTO DE DURVALINA

Saí da moradia da Mariquinha Precata no lado dos pobres do cemitério e fui visitar o lado dos ricos. Cumprimentei o Dr. Eduardo, advogado famoso, que respondeu ao meu bom dia com sua voz de trombone:
- Boa noite!
Aqui, no fundão do cemitério, sempre me perco e nunca sei se é dia ou se é noite.
Está muito úmido e os probientes espirrando por causa da friagem: deve estar chovendo muito lá em cima, penso enquanto continuo a caminhar. A vontade de ouvir histórias e de palestrar me leva de volta ao lado dos pobres. Lá encontro a Mariquinha Precata encolhidinha em sua morada: magra, pele enrugada, mãos quase azuis de tanto frio.
- Bom dia Mariquinha!
- Boa noite Orozimbo!
- Me explique Mariquinha, agora aqui é dia ou noite?
- Aqui é o sempre, Orozimbo. O eterno! Desencarnei à noite, então é noite.
Queria prosas mais amenas.
- Me conte mais da Durvalina?
- Conto sim, gosto de contar...onde eu parei da última vez, se lembra?
- Lembro sim. Você parou quando sua irmã Durvalina tinha trabalhado na cozinha ajudando a servir o almoço e viu, nas mãos do patrão, o anel que enfeitava a mão que, à noite, em sua rede, tocava e alisava seus seios, seu ventre e tirava sua camisolinha de algodão....lembrou?
- Pois é claro que me lembro Orozimbo. Pois então, depois foi assim:
A vidinha de Durvalina continuava no normalmente. De dia continuava sua prática obrigatória de lavar roupas, tratar dos porcos no chiqueiro, buscar água na mina e cuidar do Sebastiãozinho e do Lindomar.... Agora seu descanso, de ficar só consigo mesma, começava depois que o patrão, no início da noite, antes de ir para a cama com a patroa, passava em sua rede para bolir com ela. Só depois é que dormia de verdade, descansada, alegre em sua solidão.
Foi aí então , em uma semana de lua nova, destas de total escuridão, a noite escura como breu chegando mais cedo tornando o dia mais curto que aconteceu o seguinte: naquele início de noite escura, impossível de alguma coisa se ver, Durvalina se viu desvestida de sua camisola de algodão e as mãos do patrão tatearem seu corpo com uma fúria maior e suas pernas serem abertas; daí foi que sentiu um peso enorme sobre si, uma respiração descontinuada, ofegante e quente aquecendo de calor seu rosto e uma forte dor queimando seu ventre adentro. Aquilo tudo só sossegou depois que gemidos balbuciados de dentro do corpo enorme do patrão inundaram a tulha onde estava sua rede.
Dormiu.
Manhã seguinte acordou com os risinhos de Rosa e de Rita:
- Doeu? perguntou Rita.
- Doeu, mas foi bom, respondeu Durvalina.
Passou todo o dia com dor forte no corpo, no ventre, temerosa da outra noite que viria.
Acostumou-se.
Foi daí também que percebeu que a patroa, que até lhe dedicava minutos de afetuosa conversa, virou-lhe a cara. Rosa e Rita evitavam falar com ela mesmo na hora do almoço ou quando lavavam a louça. Só Sebastiãozinho e Lindomar continuavam a lhe exigir as mesmas brincadeiras e cuidados.
A festa de São João estava para chegar. O mastro, feito com um tronco de guatambu, com a bandeira de São João em seu topo, enfeitava o curral; os galhos do guatambu foram cortados de modo a facilitar que laranjas maduras fossem enfiadas por todo o mastro; bandeirinhas de papel colorido cruzavam e descruzavam os moirões do curral. Tudo muito bonito.
No baile dançou com Oscar, moreno alto e forte, peão de confiança do patrão. Sentiu, enquanto dançava que seu corpo e seus seios, eram forçados, carinhosamente, a se aproximar do peito forte do peão. E foi assim que dançou e dançou. Sentiu, enquanto dançava, a mesma respiração ofegante e descontinuada sair do peito de Oscar; só que agora via o rosto, sabia quem respirava, quem apertava carinhosamente seu corpo frágil contra o peito forte.
Terminado o baile alojou-se em sua rede e dormiu sem ter sido tocada pelo patrão, cansado e bêbado da festança e do baile.
Por aqueles dias duas coisas mais aconteceram.
A primeira foi que ouviu, enquanto cuidava do Lindomar e do Sebastiãozinho, berros chorosos da patroa em conversa com o patrão:
- Não quero puta aqui em casa, ainda mais cuidando de meus filhos. Deus me livre! Livre nossos filhos dela, lhe imploro de joellhos.
A segunda coisa foi uma conversa com Oscar.
O patrão havia comprado uma outra fazenda longe dali, lá pelos lados de Assaré, e queria que ele fosse lá, cuidar de tudo como peão principal:
- Vou mas quero você junto. Quer casar comigo?
- Oscar, não sou mais moça.
- Sei. Te amo, Durvalina.
E lá se foi, feliz, a Durvalina, mulher casada de papel e tudo com Oscar, importante peão principal da Fazenda da Esperança, pro sertão do Ceará.
- Estou contando muito devagar, Orozimbo? Quer que eu me apresse nos relatos, pule coisas menos importantes, pequenos detalhes?
- Não Mariquinha...estou gostando de ouvir, de saber da vida de Durvalina, respondi.
- Ta bom, mas por agora chega. Cansei. Está muito frio, deve estar chovendo até canivete lá por cima. Outra hora conto o resto.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina


Aos mais esquecidos relembro: tenho o hábito de, na hora do almoço, ler e fumar sentado em um banco da pracinha. E é lá, entre um cigarro e outro, enquanto visito meus livros preferidos, que encontro Orozimbo.
Ofereço um Continental e:
- Enquanto fuma vou ler para você Orozimbo:
“Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.”
Gostou Orozimbo, é do Manuel Bandeira?
- Não, quero mais um cigarro.
Não gostou, conforme me disse, mas logo tomou o livro do poeta de minhas mãos, e, curioso o folheou enquanto tirava do bolso de seu paletó marrom o caderno com a figura do Duque de Caxias na capa.
A lápis, com sua letra firme, uniforme e um pouco dobrada à direita, li mais esta história do Orozimbo.


MARIQUINHA PRECATA CONTA A HISTÓRIA DE DURVALINA DA INFÂNCIA À ADOLESCÊNCIA

O Tatu Galinha mais manso, andava arredio naquela época da quaresma. O motivo do seu arredio era que no fundo da sua toca a companheira carecia de comida para ela e para os três tatuzinhos filhos, de quem cuidava receosa de ataques àqueles corpinhos frágeis, ainda sem a casca protetora, lindos em sua ainda cor rosa.
Ofereci três pães, torresmo, duas folhas de couve frescas em troca da viagem até o fundo do cemitério.
- Vou mas te deixo lá e te busco dias depois, quer assim?
Fomos.
Dito e feito: nem bem chegamos Tatu Galinha já buscou o caminho de volta saudoso de sua toca, da companheira e dos tatuzinhos cor de rosa. Gostei de ficar só, sem pressa de voltar, com tempo por demais para gastar ali no fundão do cemitério: queria e queria ouvir histórias, palestrar com os mortos. Gostava daquela escuridão, me fazia bem o musical silêncio das profundezas da terra e a companhia dos probiontes e das moneras, como gosta de dizer o Dr. Netto. Engraçado do Dr. Netto: acho que por ser comunista tão ardoroso, se sente proibido de falar de almas: para ele é tudo probiontes, moneras...
Hoje não quero conversa difícil com ele: quero histórias amenas, verdadeiras, humanas. Tenho tempo! Vou longe até o lugar da Mariquinha Precata, velha puta da cidade, que em vida foi freqüentada por quase todos os homens de lá: alguns aproveitando a situação de bêbados, outros insatisfeitos com os prazeres nos limpos leitos caseiros, buscavam, em sua cama suja, prazeres outros.
- Me conte uma história, Mariquinha?
- Conto sim, qual você quer?
- Me conte a da sua irmã, aquela que ainda vive e mora lá pelos sertões do Ceará?
- É assim:
Durvalina é o seu nome. Lá em casa todas as mulheres foram batizadas com os nomes terminados em ina: Durvalina, Emanoelina, Ernestina, menos eu, de nome Marianinha. Durvalina, a mais nova, nasceu no meio do pasto, sob a sombra de um umbuzeiro; nossa mãe, gordona dela, pastoreava cabritos morro adentro quando sentiu as dores do parto. Foi pai quem ajudou o nascer de Durvalina: berrou forte o primeiro choro, assustando os cabritos e até mesmo o carcará que vigiava guloso um bando de preás.
Eu a vi crescer e cuidei dela até seus sete anos quando, ainda mocinha, descabaçada por Anselmo, filho do patrão, fui-me embora de casa para viver a profissão de puta.
Assim sei de sua vida mais do que ela me contou, pela nossa proximidade de irmã e não por companhia constante; esta foi pouca, porque me vim embora.
Mas, continuando: Durvalina cresceu forte, bonita em sua pele morena, cabelos crespos, com os dentes brancos por demais ajudando a iluminar o rosto alegre de se dar inveja.
Mocinha, peitos ainda pequenos começando a apontar foi trabalhar na casa dos patrões, cuidar dos netos do seu Sebastião, lavar roupas pequenas e dar comida aos porco; eram estas suas obrigações em troca de cama, comida e roupas que não mais serviam para Julieta, neta do patrão que tinha ido para a cidade estudar.
A vida dela era assim, me contou: passava a maior parte do dia a cuidar dos pequenos Lindomar e Sebastiãozinho; tinha que brincar de esconder a cara e achá-los e esta brincadeira era bem fácil para ela; tinha também que brincar de pega-pega e aí pegar o Sebastiãozinho já era mais difícil porque ele corria rápido e tinha também de brincar que era mula e sair carregando os dois nas costas, levar chicotadas para pular até conseguir derrubá-los. Essa brincadeira cansava mais.
A noite era seu descanso. Armava a rede e ficava quietinha a ouvir, em silêncio, a conversa que Rosa tinha com Rita, outras duas empregadas da casa. Dormia logo de cansada e também para ficar só com ela mesma, não ter que de nada dar satisfação, não pensar em buscar água na mina, em tratar dos porcos no chiqueiro, nem em brincar de mula.
A noite era, para ela, uma felicidade só até que uma manhã acordou não sabendo se havia sonhado um sonho, meio ruim e meio bom, de ter seus seios acariciados e seu ventre tocado.
Prometeu não dormir a noite seguinte para descobrir se tinha sido mesmo sonho aquele prazer e medo que ocorrera na noite passada. Naquele dia Lindomar e Sebastiãozinho quiseram brincar de mula quase que o dia todo. À noite seu corpo doía, cansado, maltratado pelos chicotes e pelo peso dos patrõezinhos: caiu na rede e dormiu. Tornou a sonhar. Neste sonho sentiu as mãos mais firmes, menos trêmulas, acariciou seus seios e seu ventre com intimidade maior que no sonho anterior. Tocou a mão que acariciava seus seios e sentiu o frio de um metal, de um ouro, de um anel.
Prometeu, outra vez, não dormir para saber se o que ocorria era sonho ou realidade. Mais uma vez cansada dormiu e as mãos, mais ousadas, menos temerosas examinaram todo seu corpo e a despiu de sua camisolinha branca. De manhã, ao ver-se despida, soube que não era sonho o que havia sonhado.
Na hora do almoço foi chamada para ajudar Rita a por a mesa e servir a refeição dos patrões. Sobre a toalha branca de renda, ao lado do prato de louça, dos garfos e das facas pousava a mão do Seu Anselmo: em um dos dedos, o enorme anel de ouro.
Mas agora me cansei de falar Orozimbo. Quero silêncio e descanso; outra hora te conto o resto.
Também eu estava cansado de ouvir: muitas palavras confundem minha mente.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: TATU GALINHA


Muitas chuvas, o frio do final de inverno assim como mudanças súbitas e inesperadas em minha vida fizeram com que eu faltasse semanas e semanas ao delicioso costume de ler e fumar no banco sob o pé do ipê amarelo.
Mas - tem sempre um mas - o corpo e a cabeça se acostumaram às mudanças que ocorriam, ao frio e ao vento cortante e molhado das chuvas que teimavam em não parar. Triste e ensimesmado voltei, em uma quarta-feira, logo após o almoço às minhas leituras no banco do jardim.
Nem acabara de acender o primeiro cigarro quando Orosimbo para em minha frente e, como sempre, insistentemente olha o maço de cigarros. Ofereço, aceita, senta-se ao meu lado e traga gostosamente. A terceira tragada já é dada com seus olhos fixos no “Velório sem Defunto” do Mário Quintana que eu havia levado para ler. Toma o livro nas mãos ossudas e, ao mesmo tempo, me passa sua brochura com o Duque de Caxias na capa.
Inicio a leitura:

TATU GALINHA

Minha vontade de conversar com os mortos só se tornou possível quando aprendi a me transferir para dentro do tatu Galinha. Tinha que ser tatu Galinha porque se eu me transferisse para o corpo de um tatu Peba não daria certo; os mortos têm medo, e com razão, dos tatu pebas que vão até os locais não para conversas e amizades, mas, sim, para abocanhar suas carnes.
Já o tatu Galinha, não: visita os mortos para conversar, dar notícias, levar recados.
De casa ao cemitério, morada dos mortos, era coisa de meia hora. Em noites de chuva, como o terreno mais macio era um pouco mais rápido, mas enlameava todo meu paletó e a umidade resfriava e atacava meus pulmões. Assim preferia ajudar o Galinha a escavar o seu túnel ate o cemitério, em terras duras e pedregosas, em dias de sol ou em noites de muita lua. Melhor espirrar com a poeira do que com a lama fria.
Íamos à noite ou de dia: nos fundões era sempre escuro; era um puro breu de escuridão até os olhinhos negros do Galinha se acostumar. Logo depois da chegada, lágrimas limpavam seus olhinhos da poeira, um clarão ia surgindo e, logo, tudo se enxergava, tudo se via.
O Dr. Netto, médico morto há tempos, com seu túmulo sempre rodeado de flores e velas, era o meu preferido para conversas. Foi ele quem primeiro me explicou, com seu palavreado e linguajar difícil:
- “Aqui Orosimbo, você nos encontra como os probiontes e as moneras da matéria: materiais quanto a nossa natureza, mas imaterial em nosso estado; se não entende e tiver dúvida leia A Montanha Mágica, do Mann, assim ficará mais claro para você!”
Para mim coisa de muito difícil compreensão!
Melhor mudar de assunto, saber e contar novidades.
- “Adivinha quem morreu ontem, Dr. Netto?” e fui continuando: “o Miguel, alfaiate, marido da Dona Cida; mas está morando longe daqui, na área mais dos pobres”.
- “Nossa: morreu? Antes ele do que eu”, disse querendo terminar ali a conversa.
- “Dr. Netto, venho de longe para palestrar e encontro o senhor bravo.”
Fui interrompido:
- “Já te disse que não gosto de aqui onde me puseram fixo, perto de minha mulher de cartório. Queria mais era perto da Marina, sentir seu calor nas noites de chuva, aquecê-la e amá-la, aqui nestes desconhecidos.”
Impossível conversar! De lamúrias, lamentações e reclamações o mundo dos vivos, o meu mundo, estava cheio, lotado.
Vou procurar o Anor e suas histórias.
Quando em vida, o Anor me dizia , em conversas sob o pé de eucalipto, perto da Santa Casa, que em nossa pequena cidade, com seus três loucos e três veados, ele era o mais amaldiçoado.
- “Me conte dos benzimentos e de sua morte Anor?”
- “Morri por causa de amor e medos, morto a tiros, por balas de fuzis dos mineiros da Revolução de 32. Já te contei tantas vezes. Não te enjoa ouvir sempre a mesma história?”
- “Enjoa não, gosto.”
- “De contar eu também gosto. Ajuda passar o infinito tempo daqui... Foi assim:
Me juntei com Didi, faceiro filho de fazendeiros da cidade, contra a vontade de sua família e, penso que por isso jogaram praga e pegou. Moço bonito, rico e estudado gostar de um velho veado que só sabia benzer não era costume muito aceito. Esperavam dele casamento com mulher, filhos, tudo no normal. Mas, nos juntamos!
E o Didi com sua mania de política, aprendia em seus livros e em conversas que teria que lutar para fazer valer a Constituição da República e estas coisas... Em uma noite clara de lua Didi me disse que a revolução estava chegando e que iria à luta. Tentei e tentei mudar suas idéias, mas nada. Nem seu amor por mim, me disse, faria mudar sua posição. Acreditava que venceria e que continuaríamos nossa vida juntos, protegidos pela sombra de uma Constituição.
Você, Orosimbo, me diz que muitas vezes me procura porque não entende o linguajar do Dr. Netto; pois o mesmo se sucedia comigo. Ouvia o Didi e não entendia, mas tinha muito medo de sua morte e, também, da minha. Ele se alistou. Eu lhe disse, na estação de trem, garboso e lindo em sua fantasia de soldado com armas às costas: te espero aqui em nosso quartinho, mas se a tal da Revolução chegar fujo: tenho medo. Se ela chegar aqui por perto vou me embrenhar pelos lados do córrego do Bom Jesus e nada me acha, nem Deus. Te espero!
Lá se foi o Didi lutar para a revolução da Constituição e fiquei só, muito só.
Parece que até as pessoas que me procuravam para benzimentos de quebrantos e espinhela caída haviam sumido, indo atrás ou fugindo de medo da revolução.
Resolvio ir pescar no Bom Jesus, córrego pedregoso de águas limpas, transparentes e frias, cheia de mandis, gambevas, bagres e lambaris. E foi lá no Bom Jesus, só, muito sozinho, que ouvi passos e conversas: eram os soldados mineiros, armados com seus fuzis às costas, à caça do Didi e dos paulistas...
Fugi com minha vara de pescar. Pensava em me embrenhar pelas profundezas do Bom Jesus, ir vivendo de vento, de água limpa e de bagres até a volta de Didi e da vitória da Constituição.
Mas os mineiros armados eram rápidos, muito rápidos. Pertinho da cachoeira e de seu poço fundo fui cercado, molestado, maltratado e morto: uma bala foi entrando cabeça adentro, e eu, naquela hora, aliviado de tanto sofrer, não senti dor e dormi. Meu corpo foi ficando por lá, esticado e duro, por demais de morto, sem mais poder ouvir o barulho da cachoeira ali tão perto. Vieram os urubus e começaram a me beliscar até que foram tocados, espantados pelos berros e pedradas atiradas pelo seu Eduardo, pai do Didi. Seu Eduardo ali ficou, ao meu lado, me vigiando dos urubus até chegar mais gente para ajudá-lo a me embrulhar em um pano de catar café. Me levaram para a cidade, passaram na igreja mas o padre não quis benzer meu corpo!
Me enterraram aqui.
Foi assim, Orosimbo.”

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: RUA RIO BRANCO




Não morreu, sabe porquê? Porque mentiu. Histórias deles eram inventadas “, in Mia Couto, A varanda do frangipani.


Eram boas, mais que boas mesmo, as horas que passava, à tarde, sentado no banco do jardim, fumando e lendo livros retirados na Biblioteca. Como tinha um intervalo de três horas entre o primeiro e o segundo turno do trabalho acostumei-me a, logo após o almoço, pegar um livro e ir para a pracinha, sentar-me em um banco para fumar e ler.
Os bancos do jardim, na praça, eram daqueles moldados em cimento com minúsculas pedrinhas, sinuosos e gordos e, cada qual, tinha em seu encosto o “anúncio” do seu doador grafado em negro: em um, “Casa do Rádio”, o outro era “Oferta da Família Saad”, em um outro “Netos&Irmãos Exportadores de Café”, e assim por diante. Este último era o meu preferido, talvez por estar sob o pé de ipê amarelo, cuja sombra rala deixava vazar pedacinhos de sol que aquecia partes do corpo, e aí, quando aquelas partes estavam bem quentinhas era hora de mudar de posição para esquentar o outro lado, num jogo gostoso enquanto lia e fumava.
Na cidade havia três loucos: todos “loucos mansos”. Cidade muito pequena e, por isso penso que três loucos era um número significativo, grande, e com certeza teria inspirado Machado de Assis, caso tivesse vivido por lá, a escrever O Alienista. Quero contar do Orosimbo, um deles, talvez o mais “manso” de todos os loucos, em seu terno marrom, camisa aberta no peito peludo, barba já grisalha, cabelos negros apontando um início de calvície, rosto com as maçãs salientes e dentes fortes, muito brancos sob os lábios escuros e salientes.
Orosimbo, nem sempre diga-se de passagem, ao passar por lá e me ver sentado parava frente ao banco e olhava fixa e alternadamente para o livro que eu lia e para o cigarro em minhas mãos ou nos lábios.
- “Quer um cigarro, Orosimbo?”, eu dizia.
Quando aceitava sentava-se ao meu lado e fumava um ou dois cigarros. Tragava forte, levando a fumaça do cigarro ao fundo de sua alma e soltando-a toda pelas narinas repletas de cabelo.
Naquele dia aceitou o cigarro e enquanto fumava não tirava os olhos do Memórias do Subsolo, do Dostoievski.
- “Você gosta de ler Orosimbo?”, pergunta a qual não se dignou responder; continuando, no entanto, a olhar com seus olhos lânguidos o livro em minhas mãos.
Marquei mentalmente o número 109 da página que estava lendo, fechei o livro e tentei:
- “Quer ver?” e apontei o livro em sua direção.
Orosimbo, ainda mudo de palavras, tomou o livro em suas mãos ossudas. Olhou curioso primeiro para a capa cinza do livro, fixou os olhos nas grandes letras do título impressas em negro e passou a percorrê-las com o dedo indicador como que desenhando-as. Continuou ali sentado ao meu lado, mudo,sem nada falar, com o livro fechado em suas mãos agora com os olhos fixos no maço de cigarros Continental que nos separava no banco e, com o olhar implorou outro cigarro. Peguei o maço de Continental, ofereci-lhe , peguei outro no maço e acendi ambos com o mesmo palito de fósforo. Orosimbo tirou então, do bolso de dentro de seu paletó marrom, uma brochura de cinqüenta folhas, com o Duque de Caxias na capa colorida e colocou-a quase em minhas mãos. Feito isso, abriu o livro em uma página qualquer, que não era a primeira me parecendo estar mais interessado em ver o desenho das letras do que interpretar as palavras escritas.
Abri sua brochura. Letra impecável, um pouco tombada para a direita, uniforme, semelhante aos exercícios que fazíamos nos cadernos de caligrafia.
Escrito a lápis, com alguns pequenos e raros sinais de que havia usado a borracha para “deletar’ palavras, letras ou vírgulas.
Iniciei a leitura de sua brochura pela primeira página:

“RUA RIO BRANCO

Melhor agora que aprendi a, logo ao amanhecer, fazer tremer todo o corpo, bater firme mas com delicadeza sete vezes na face esquerda com a mão direita e seis vezes um pouco mais forte com a mão esquerda na face direita, ao mesmo tempo em que sussurro, a meio tom “BRUUUUIIIOOOAAA!”. O lento e demorado sussurro tem que sair bem entre os dentes, fazendo soprar um ventinho morno nos lábios, os quais devem, também, acompanhar o movimento do corpo e tremular com delicadeza, embora de modo consistente e sem interrupções. Antes de aprender este meu novo modo de amanhecer, meu corpo doía por demais e a dor só era extinta às custas das trinta e sete cabeçadas que era obrigado a dar, quinze na parede e dezessete na porta da cozinha, para onde ia bater a cabeça e, assim, evitar evitar que o barulho das batidas na parede não incomodasse e acordasse os meus mais de trinta irmãos e bois que dormiam juntos na varanda que ligava o quarto à rua. Minha mãe não: ela dormia no alto, quase junto ao teto, só, em cama limpa, com lençóis brancos e cobertores de lã de ovelha que ela tecia; assim não passava frio e acordava sempre com seus olhos azuis limpos, com a face corada e fazia café amargo, sem açúcar, cujo odor se espalha por toda a rua, indo até o cemitério, acordando os mortos sem nenhum barulho: só com o cheiro bom, amargo e forte.
Também agora, que não acordo ninguém com minhas cabeçadas na parede da cozinha, posso sair mais cedo à busca de café doce, caminhando ainda no escuro pela Rua Rio Branco. Não gosto e não me acostumo com café amargo, não sou defunto! Só minha mãe e os defuntos do cemitério, mesmo os anjinhos, gostam de café amargo.
Na Rio Branco todos dormem, até mesmo os cachorros que sempre me atacam pensando que vou roubar café de seu dono, o que não é verdade, vou é pedir café doce, porque o que minha mãe faz é amargo.
Ando sempre na calçada da esquerda quando vou e sempre pela direita quando volto: assim não erro o caminho e não me perco. A cada dois passos que dou, tenho que realizar um pequeno movimento circular com o pé direito; as pessoas pensam que é um tipo de dança mas não é: este pequeno movimento que faço com o pé direito, sempre a cada dois passos, tem o poder de afugentar bandidos, põe a correr cachorros e gatos, não deixa se aproximar o demônio que me persegue a noite toda e não me deixa dormir e roncar como minha mãe, meus irmãos e os bois lá de casa.
Por dia tenho que subir dezessete vezes a Rio Branco até a Praça da Igreja e descê-la, sempre pela calçada da direita, passando pela garagem do Eliseu onde o cachorro preto com seus dentes enormes me ameaça, mas ao ver que sempre obedeço a superior ordem de a cada dois passos fazer o movimento circular com o pé direito me deixa sossegado e vai morder o Lázaro e o Nascimento que não acatam meu conselho de, a cada dois passos, fazer o movimento circular com o pé direito. O Lázaro e o Nascimento são os outros loucos daqui, mas são menos espertos, os cachorros os atacam e as pessoas da rua Rio Branco não lhes dão café doce, pois têm medo deles. De mim, não.”.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Histórias do Ribeira: casamento fugido!


Então foi assim: no primeiro ano, dei aulas lá no Bairro da Lagoa Nova; no segundo ano, fui para o Bairro de Votupoca, no município de Sete Barras, e, no terceiro ano, na cidadezinha de Sete Barras. Em Votupoca, havia um antigo projeto de Grupo Escolar Rural e, naquele ano, trabalhamos, lá, em quatro professores: a Mineko, a Eloina, o Luís e eu.

Em minha classe, a maioria dos alunos era do segundo ano e havia, também, uns sete ou oito do quarto ano primário. Entre meus alunos do quarto ano, havia um, o Valter, que era um assombro de inteligente.

Na época, havia um exame para ingressar no antigo ginásio e, desde o meu tempo de estudante, lá em Pedregulho, havia cursos preparatórios para o exame de admissão ao Ginásio. Resolvi, por conta própria e sem ônus para os alunos, dar as tais aulas de admissão, à tarde. Vieram, inicialmente, o Gilson e o Walter, ambos com condições de, se aprovados, freqüentarem o ginásio estadual em Sete Barras. O Gilson desistiu do curso preparatório e ficou o Walter. Foi aprovado em segundo lugar no exame de admissão.
Por isso e por outros, fui “pegando” fama de bom professor, daqueles que o prefeito exige da diretora que seu filho freqüente sua classe. Resumindo, a diretora do Grupo Escolar de Sete Barras me convidou para assumir uma classe do quarto ano e o compromisso do diretor do Ginásio para eu assumir a docência do curso preparatório para o exame de admissão. Era tudo o que eu, na época, queria.
Assim, fui parar em Sete Barras, trabalhando, de manhã, no Grupo e, à tarde, no Ginásio.
Quando ainda estava em Votupoca, veio de Ribeirão, para trabalhar na região, um professor de Ribeirão Preto, o Samuel. Sujeito engraçado o Samuel. Alto, com mais de um metro e oitenta, magérrimo, pesava lá seus sessenta e cinco quilos. Lembrava muito o Caetano Veloso de alguns anos depois. Tocava, mal, violão e era realmente um tipo. Um dia chegou e me disse: “Orlando, comprei uma égua”. “Mas Samuel, retruquei, onde você vai deixar a égua quando você deixar esta escola?” “É linda, marchadeira e paguei um bom preço...” No fim do ano, em busca de uma escola melhor, teve que vender a bendita égua pela metade do que havia pago. Em outra vez, vínhamos de Ribeirão e, na Rodoviária, em São Paulo, enrabichou com uma loira oxigenadíssima e trocou de ônibus. Em vez de Registro, foi para Curitiba. Dia seguinte, meio desconsolado, estava lá o Samuel falando de seu novo e não correspondido amor. A oxigenadíssima era casada e o marido, um mulato de quase dois metros, estava a esperá-la na rodoviária de Curitiba. Samuel tomou o rumo de volta e encontrei-o na pensão onde morava, lastimando e recolhendo suas malas que havia deixado para eu trazer.
Em outra vez, resolveu comprar uma winchester. Só ele - e creio que nem ele - sabia para que. Nas férias ou em um feriado prolongado, não me lembro, levou a winchester para Ribeirão, também não se sabe para que. A nossa volta de Ribeirão para Sete Barras coincidiu, nada nada, com uma enorme e desbaratada reunião de estudantes, em Ibiúna. Esta reunião, embora organizadíssima como todo o movimento estudantil da época, foi descoberta pela polícia e entre os presos, se me lembro bem, estavam entre outros o José Dirceu, o Travassos e um grande amigo meu lá de Pedregulho, o Pedro Ferreira.
E o Samuel com a tal winchester na, naqueles dias, vigiadíssima rodoviária de São Paulo.
Brincou com fogo: “São flores secas”, respondeu ao policial civil que nos abordou. “Vamos ver, então.” E lá fomos nós para a polícia civil, na Rodoviária de São Paulo.
Um tempão por lá. Acredito que foi minha juventude, ingenuidade e persistência, aliadas a uma dose de sorte, que nos livrou da enrascada. Deixamos lá na polícia da Rodoviária nosso endereço de trabalho e o compromisso, não cumprido, de telefonar assim que chegássemos ao nosso destino.
Aí o Samuel foi dar aula no Bairro da Formosa. Lá havia duas classes e a maioria dos alunos eram descendentes de japoneses. O Bairro da Formosa era um centro receptor de imigrantes japoneses, que visava a adaptação dos mesmos ao país para posterior encaminhamento para outras regiões.
Um parênteses em relação ao bairro da Formosa: ficaram famosas as brigas entre os “baianos” brasileiros que trabalhavam nas plantações de chá e laranja ponkan e os japoneses. Havia na comunidade um campo que uns – os “baianos” - o queriam de futebol e outros – os japoneses - de basebol. Assim, aos domingos de manhã, os japoneses, escondidos e silenciosamente, tiravam as traves do campo de futebol e iniciavam seu joguinho de basebol. Logo, logo eram ameaçados pelos “baianos”, que, ruidosamente e sem nenhuma cerimônia, julgando-se eles os donos, recolocavam as traves no local e iniciavam suas peladas meio a fugitivos e silenciosos japoneses. A coisa chegou a tal ponto que houve necessidade da intervenção do delegado da cidade, Sr. Higino, que, na verdade, era açougueiro e sitiante de profissão; um barrigudo lutador de “sumo”, muito cordial e querido.
Voltando ao nosso amigo Samuel, que, agora, tinha lá como colega, na outra classe, uma bela nissei: a Helena. Convidou-me para ir vê-lo num domingo. Insistiu tanto no convite que lá fui eu. O que consegui do amigo foi um curto “Bom dia”, logo me falou de sua paixão – segundo ele, correspondida – pela Helena e só. Me deixou lá no meio do laranjal e foi namorar. Completamente ignorado, voltei embora antes do pensado.
Mas o namoro se firmou e a família da Helena não aceitava. Japoneses tradicionais não admitiam namoro e casamento que não fosse com descendentes. Helena, no entanto, teimava. Assim, o Samuel estava certo: desta vez, seu amor era correspondido.
Solução da família: mandaram a moça para São Paulo, interna em um colégio de moças, no bairro da Liberdade. E lá se fica uma das escolas do bairro da Formosa sem a professora, que, agora, segundo o Samuel, vivia sofrendo de saudades de seu amor e aprendendo a modelar argila e a fazer ikebana.
Houve um feriado prolongado e Helena veio ver a família em Sete Barras; e o Samuel, estranhamente, foi para Registro. Houve jogo de futebol, no Domingo, e eu não saí: precisava jogar.
À noite, cansado do jogo e da surra que havíamos tomado de um bom time de Itapetininga, estava quieto lá na pensão, quando o seu José me chama: “oh.. Ribeirão, telefone para você”. Naqueles tempos, telefone e telegrama eram, normalmente, para más notícias: mortes e doenças. Corri atender, assustado.
Do outro lado, o Samuel.
- “Então... eu estou aqui em Ribeirão com a Helena e vamos nos casar daqui a alguns dias. Queria que você fosse até a casa dela e avisasse lá seu pai, o Odissam.”
- “Mas, Samuel, como é que é isso? Vocês fugiram?”
- “Não, não fala que fugimos. Fala que estamos aqui em casa, que minha mãe está preparando o vestido de casamento e, outra coisa, queria que você fosse padrinho”.
A família de Helena era constituída por, além de seus pais, já idosos, pela Dona Alice, secretária do Ginásio, mais uma professora, a Nobu, e por um seu irmão, o mais velho da família, o Shinzo. O Shinzo tinha uma fábrica de esteiras de junco e toda noite descia até o bar da pensão onde eu morava para beber até se embriagar. Aí, diária e repetidamente, contava de seus tempos de exército, falava mal do prefeito e, como ninguém lhe dava ouvidos, cochilava um pouco, resmungava sozinho, tomava a última e, cambaleando, pegava sua Kombi; e, graças ao “intenso” trânsito de Sete Barras, chegava são e salvo em sua casa. No dia seguinte, a história se repetia.
O Samuel havia me alertado para ter cuidado ao dar a notícia ao pai de Helena: o velho Odissam, coitado, era cardíaco. Eu cá não sabia como dar a notícia ao velho cardíaco com sutileza tal que não afetasse seu coração doente, na medida em que ele não entendia nada de português e eu não falava nada de japonês.
Saí rumo à casa do Shinzo, encabulado em como cumprir minha missão casamenteira. Penso, repenso. Paro em frente à casa, sigo em frente como não se quer nada e volto. Uma eternidade. Poderia ir duas ruas abaixo e falar com a Dona Alice, talvez fosse melhor. Mas ela já é casada e seu marido não se dá com o Shinzo. Falar com a Nobu não! Era choradeira certa! E se eu falo e o velho morre na minha frente, pensava. Eu devia era matar o Samuel. Então, melhor, em vez de assassinar o amigo, é voltar e telefonar para ele: o Samuel que ligue para o Shinzo. Correto, penso, e tomo o caminho da pensão.
Mas...
Bato palmas e sai de dentro o Shinzo, mais para lá do que para cá, embriagado.
- “E aí professor? Que foi?”
- “Bem, vem aqui fora que preciso te falar”
- “Aí fora? Então vou pegar meu revólver. Tá escuro”
- “Shinzo, sou eu, o professor. Deixa de besteira de revólver e vem aqui fora. Tá ficando louco? Mania de revólver. E ainda fica falando mal de baiano. Merda”.
Ele veio.
- “Então, Shinzo, o Samuel me ligou e disse que a Helena está em sua casa, com sua família e que eles vão casar logo. A mãe do Samuel está fazendo o vestido e ele disse que gostaria que vocês fossem....”
Falei, falei, falei e o Shinzo cambaleava em minha frente.
Finalmente, resolveu dar o ar de sua graça e com a voz embargada pelo álcool e pela notícia:
- “Vou lá buscar minha irmã. Onde eles moram?”
- “Shinzo, não adianta. Ribeirão é longe, você não pode guiar porque bebeu e acho melhor você entrar, contar para seus pais, pensar melhor...”
Indignado por eu ter dito que ele não podia dirigir, Shinzo fez um embolado e confuso discurso, durante quase meia hora. Sua excitação melhorou seu estado geral. Eu lá parado, ouvindo, e ele que queria porque queria saber o endereço do Samuel para buscar a irmã. “Tudo menos casar fugida”, resmungava nervoso, misturando português com japonês em sua fala embriagada.
- “Fugiu não”, eu dizia. “Estão lá se preparando para casar. Quando foge, o ato se consuma antes do casamento e não é este o caso”. Nestas alturas, tirei o pai do Samuel da cama de casal e lá coloquei a Helena junto com Dona Esperança, mãe do casadoiro.
A conversa não tinha fim. Não convencia o Shinzo a entrar em casa e comunicar aos seus a festança que se aproximava.
- “Bom, Shinzo, tchau, até.”
Voltei pensativo. Será que ele vai buscar a irmã? Irá armado? E se ele for mesmo, como aviso o Samuel?
Deitei e dormi.
Duas semanas depois, com o amigo Nobuioshi, fui para Ribeirão. O casamento foi na Catedral, quem os casou foi um grande amigo, o Cônego Arnaldo, e lá estavam, sãos e salvos, os pais da noiva, dona Alice, a Nobu e o Shinzo. Voltaram todos, inclusive o Samuel e a Helena, na Kombi do Shinzo. Em Sete Barras, o seu José os levou de volta a Formosa.
Aproveitei para ficar mais um dia em Ribeirão, com minha família, e, à noite, como o amigo Nobuioshi, fomos beber e farrear na Zona.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

PULA GOIABADA!



Tem um pouco a ver com rodeios, esta historinha que vou contar.
Mas nada a ver com os rodeios de hoje, de peões famosos com curtíssimo tempo para ficar montado nos gordos bois...
Nada disso.
“Se não era assim, como era então?”
Muito mais simples.
De repente, sem muito alarde, chegava na cidade, em um caminhão velho, paus e tábuas e gentes para mais um rodeio. Escolhido o terreno tinha início à montagem do “picadeiro”, como era chamado; na verdade uma pequena arena circular e, à sua volta, os andaimes com as tábuas colocadas em degraus onde as pessoas se acomodavam para os espetáculos que ocorriam , normalmente, no início da noite, exceto aos sábados onde havia os rodeios diurnos.
No caminhão, entre as gentes, além dos operários que montavam o picadeiro e cuidavam de sua manutenção, precária, diga-se de passagem, vinham dois ou três peões que realizavam as montarias. Nos espetáculos, além desses, digamos, peões profissionais, havia os peões locais, domadores de cavalos e de burros da região, convidados a montar as novilhas, garrotes ou os bois e cavalos bravos, também selecionados nas fazendas e sítios da região.
Muitos destes rodeios traziam um animal treinado para saltar. Do rodeio que estou falando veio a besta Ruana. Alta, elegante no porte, com longas pernas que deviam lhe dar os famosos “sete palmos de altura”, da famosa Mula Preta da canção, que não tinha como não ficar assobiando quando se chegava para o espetáculo.
Ruana era menos famosa que sua amiga Mula Preta, mas ninguém parava sobre ela e até música ela já tinha merecido.
“Música, como a da Mula Preta?”
Sim, música mesmo, tocada e cantada nos rádios, mais mesmo nos programas da Rádio Nacional as segunda, quarta e sextas, comandados pelos famosos Torres, Florêncio e Nininho. Da letra toda, direitinho, não me lembro, mas guardo bem na memória que falava e enaltecia a beleza da Ruana e da fama que sobre seu dorso peão nenhum conseguia ficar nem três segundos.
Dito e feito: no primeiro rodeio Chupança, o mais famoso da cidade, montou a besta, segurou forte no “sofrete”, ajeitou e fincou suas pernas fortes meio no peito e sob as longas pernas dianteiras da mula, tirou o chapéu e fez o sinal da cruz e, com a cabeça avisou ao dono da Ruana, dizendo com aquele meneio de cabeça, que estava pronto para enfrentar os saltos da Ruana.
E lá se foi:
- “Pula, Ruana!”, gritou seu dono.
E a bela mula, que até então obediente aguardava a ordem de comando, se transformou imediatamente; seus olhos antes tão doces agora soltando faíscas, e, como um raio de tão rápida saracoteou, deu um salto enorme e ainda no ar, deu um volteio jogando em terra o bravo Chupança.
Caiu o Chupança, depois foi a vez de cair o Santista, veio de Franca o Pernambuco que também caiu...
O único que permanecia sobre o lombo da besta, após a ordem “Pula, Ruana!” era ou o seu dono ou um peão e tratador da Ruana que acompanhava o rodeio. Estes dois sacolejavam e acompanhavam com o corpo retorcido os volteios e os saracoteios da Ruana, se contorciam todo agarrados ao sofrete mais que os três segundos, e se agüentavam até o berro “Pára, Ruana!”, dado em alto tom pelo seu dono, este o único a quem a besta obedecia.
Só depois de ouvir a ordem é que Ruana parava de pular e outra vez se travestir em um calmo e doce animal.
E foi assim que começou o outro o pedaço desta história.
Alguns meses depois da passagem da Ruana pela cidade, um colega de classe, com quem estudava na segunda série do Ginásio, me abordou na hora do intervalo, e entre uma tragada e outra de um cigarro Continental sem filtro:
- “Treinei a Goiabada para saltar igualzinho a Ruana. Não quer ir montar lá em casa no domingo?”
Fui.
O sítio onde morava Dirceu, dono da Goiabada, era próximo ao de meu cunhado e assim, sábado à tarde, após a aula lá fui eu. Domingo bem de manhã fui para o sítio do colega e mal chegando em sua casa, ansiosos, fomos para o pasto buscar a Goiabada.
Nada a ver com a bela Ruana. Goiabada era uma potranca alazã de pelos longos, raquítica, olhar inocente, crina mal feita, pequena, com um peitoril acanhado...
Espiga de milho nas mãos e Goiabada não resiste ao “Vem, Goiabada” do Dirceu.
No curral, agora já com uns cinco ou seis adolescentes, vai ter início o rodeio. Um sofrete de cordas é amarrado na pequena potranca, passando pelas suas pernas da frente, dando uma volta até o início de suas crinas, onde uma pequena argola feita com a mesma corda servia como ponto de apoio para se segurar. Todos queriam ser o primeiro. Sorteio foi a solução. Ganhou o Alcebíades.
Foi o primeiro a cair. Montou, agarrou-se ao sofrete, e, imitando os peões “de verdade”, fez o sinal da cruz e, logo após ter se benzido, fez com a cabeça o sinal que estava pronto.
- “Pula Goiabada”, gritou Dirceu.
A pequena e raquítica Goiabada se transformava na besta Ruana: obedeceu à ordem, tirando todas as forças do fundo de seu corpo frágil, deu um salto alto e longo e antes de por as patas no chão, ainda no ar, realizou o saracoteio fatal.
Pimba: chão.
O próximo foi o Agostinho, já maiorzinho, e que havia treinado montando em bezerros chucros no curral da a fazenda do pai.
O mesmo ritual de montagem e benzimento foi realizado.
- “Pula Goiabada!”
Também, já no primeiro salto, Agostinho foi ao chão.
A grande diferença entre o salto de um animal treinado e de um xucro pode ser resumida na forma. O animal xucro salta sempre para frente, com saltos médios de altura média, mais extensos seguindo determinada direção. E é aí que surge a diferença básica entre permanecer no lombo deste animal e de um treinado em saltar: o inusitado. O animal de rodeio, treinado para isso, realiza um salto menos extenso, porém mais alto, o que lhe dá condições de um saracoteio em pleno ar; este volteio no ar aliado à imprevisibilidade da direção, ao inusitado de novos e diferentes saracoteios é o que subjuga o domador e o derruba.
- “Sim, pensei, é a isso que devo estar atento, na minha vez.” ·Muito seguro montei, agarrei o sofrete, apertei minhas curtas pernas em seu peito, fiz o sinal da cruz e, àquela hora me sentindo o próprio Hopalang Cassid, ou o Durango Kid, sinalizei com a cabeça ao Dirceu que já estava pronto.
- “Pula Goiabada!”
Durou pouco minha fantasia de Durango Kid: ao primeiro salto e meneio, fui ao chão.
- “Impossível este tombo. Que fiz de errado? Vou de novo”.
Outra rodada, chega minha vez e um novo tombo.
E assim foram vários domingos e domingos. A rotina se estabeleceu. De cá eu sempre achando que “agora, desta vez, não caio e agüento” e de lá a teimosa Goiabada me desmentindo e me pondo ao chão antes dos fatais três segundos.
Apenas Dirceu parava sobre a Goiabada.
Se apenas os treinadores param sobre o lombo das Ruanas e das Goiabadas, concluí que a solução seria treinar um animal e, na falta de uma potranca e para me treinar na função de treinador, comecei treinando cachorrinhos a “sentar”, a deitar de costas, a dar as mãos, estas coisas.
Agora, velho e aposentado, passei a treinar jacutingas para virem comer em minhas mãos. Bem menos perigoso, penso.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

MARIA FUMAÇA: LEMBRANÇAS, MEMÓRIAS.



Esta historinha foi escrita para o http://trensdavida.blogspot.com/ , do amigo Tonhão, orgulhoso filho e neto de ferroviários. Seu filho, Ricardo, desenvolveu este “banner" para meu blog. Assim quero, aqui, render aos dois uma pequena homenagem; ao pai, Tonhão, pelo incentivo para eu criar e manter meu blog e ao filho Ricardo pelo bonito “banner” que agora ilustra o Ofício: Contador de Histórias: muito obrigado.


“Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força...”
Sim, era preciso de muita força para alcançar os 1032 metros de altitude, conforme indicava placa de ferro fundido, visivelmente fixada na branca parede da estação de PEDREGULHO. Sim, amigo, é bom repetir: muita força, muita lenha queimada, muita água fervida se transformando na força do vapor, fazendo sair da chaminé negra a nuvem de fumaça branca que se esparramava pelos ares até, logo, ser misturada como uma outra nuvenzinha, e muitas, mas muitas faíscas atiradas ao longo da estrada de ferro, bitola estreita, da Companhia de Estradas de Ferro da Mogiana.
Chegar tão alto exigia força, muita força e é por isso é que a Maria Fumaça chegava bufando, quase parando de cansada na pequena estação. E não era só vencer as alturas, tinha também a longa distância percorrida, pois para chegar á pequena estação de Pedregulho tinha que muito serpentear soltando seus apitos longos e roucos. Sim, coisa de mais de cem quilômetros.
- “Mas como assim?”
Sim senhor, era assim: ela, a Maria Fumaça, saía, diariamente, de Ribeirão Preto, passando pela pequena Brodósqui, depois passava e parava na estação de Batatais, pertinho da igreja com a “via crucis” toda feita com pinturas do Portinari, partia de lá e passava por Restinga, onde minha mãe se casou, para então chegar até a “Franca do Imperador”; ali, na enorme estação, parava para tomar fôlego e aproveitava para apanhar parte dos nossos professores do Ginásio e só depois seguia passando e, também parando, às vezes simplesmente sem ninguém descer ou subir, para nada, mas porque tinha que parar, em Cristais Paulista; daí só mais uma paradinha, onde ninguém podia descer, nem mesmo para necessidades urgentes, pois ali só parava para “beber água” na Chave da Taquara, a uns sete ou oito quilômetros de Pedregulho.
Mas, escuta só, não terminava ali sua viagem, se bem que ela, a Maria Fumaça e eu, certamente, ficaríamos felizes se seu descanso já iniciasse; ela para poder descansar logo e eu para poder tê-la próxima por mais tempo. Mas não era assim: logo partia de Pedregulho, ia embora, passando por Rifaina, já à beira do Rio Grande, passava por Conquista, em Minas Gerais, para chegar, aí,realmente muito cansada, exaurida mesmo, em Sacramento. E era só lá que descansava todo o fim da tarde e a noite, tomando fôlego para o retorno no dia seguinte.
A linha de trem, por onde passava a Maria Fumaça, dividia a cidade de Pedregulho. Havia o “lado de cá da linha” que era maior, onde tinha a igreja, a praça, o campo de futebol, a Santa Casa e o cemitério e o “outro lado da linha”, menor, mas grande o suficiente para formar um time de futebol do “atrás da linha” com quem o nosso time, o “do lado de cá” , jogávamos e, quase sempre, ganhávamos.
Era também na linha de trem que dividia a cidade que ocorriam as brigas, tramadas na hora do recreio no Grupo Escolar ou do Ginásio Estadual, transformando-a em nosso ringue; e era também sobre os trilhos da Mogiana que disputávamos corridas de equilíbrio “sobre os trilhos”: ganhava quem chegasse à frente sem desequilibrar o corpo dos trilhos e não colocasse os pés nos dormentes.
Mas, para precaver a Maria Fumaça dos perigos, penso eu, os trilhos que cortavam a cidade em duas eram protegidos por cercas com seis fios de arame farpado e por uma cerca de ciprestes sempre podados e cuidados pelo pessoal da estrada. Em apenas dois ou três locais, onde a linha atravessava diretamente sobre a rua, sem cerca de arame e sem ciprestes, haviam cancelas que eram fechadas na “hora de passar o trem”; assim, as cancelas fechadas e a sirene ligada impediam que carroças, charretes, cavalos e alguns carros que trafegavam pela da cidade se chocassem com a poderosa Maria Fumaça. Então era assim, protegida de trombadas, que ela passava faceira, soltando fumaça pelas ventas, apitando forte, avisando à cidade que, soberana, havia chegado ou estava indo.
Na plataforma da estação, forrada com limpas e alvas pedras mineiras, eram descarregados os sacos com cerveja e guaraná que vinham de Ribeirão Preto e desembarcavam seus passageiros: alguns desses, esperados por parentes e amigos, ficavam se cumprimentando e se abraçando, matando saudades ali mesmo na plataforma, enquanto outros, como nossos como nossos professores, desciam rapidamente, tirando os guarda-pós que usavam para impedir que a faíscas queimassem seus ternos ou vestidos, e seguiam conversando entre eles até o Ginásio, a uns quatro quarteirões da estação, onde cumpriam a tarefa de nos ensinar.
Mas tem outra coisa que preciso contar... é que nas passagens onde os trilhos atravessavam diretamente sobre a rua havia uma placa com os dizeres: PARE, OLHE, VIVA. Estas placas, e seus dizeres, claro, por um bom tempo me confundiram. O que ocorria é que eu lia e pensava no PARE e no OLHE como formas verbais conjugadas em seu imperativo, enquanto que, não sei porque motivo, lia e pensava o VIVA como uma interjeição expressando felicitação e alegria; aliás, eu chegava a pensar que deveria haver um ponto de exclamação logo após o VIVA. “Assim que der vou perguntar à Dona Tarcila, professora de português se não está faltando o ponto de exclamação” pensava. Mas continuando: toda vez que passava pela placa, olhava e lia com atenção e achava-a louca, meia sem sentido. Explicando melhor, era isso o que se passava dentro de mim: “o PARE, está certo, indica a ação que eu devo parar; o OLHE, também entendo, indica que eu devo olhar antes de atravessar a rua, mas e o VIVA? Será que devo dar pulos de alegria e gritar VIVA! porque o trem não está passando? O VIVA, para mim, tinha o mesmo sentido do HOSANA! de nossas missas. Agora e se fosse para pular e gritar VIVA!, ou mesmo berrar bem alto um HOSANA!, ficava a dúvida de a que horas deveria fazê-lo, se antes ou depois de atravessar a rua. Sei não, há alguma coisa errada nesta placa”, concluía.
Deixando isso para lá! Viagem na Maria Fumaça que mais me lembro? Foi uma que fizemos até Tambaú. Fui com minha mãe e meu pai. Viajamos “de segunda”, em bancos de madeira até a cidade do Padre Donizetti: minha mãe levou frango com farinha, Tia Voca levou requeijão e Dona Alice, nossa vizinha, levou biscoitos de polvilho; no meio do caminho as famílias trocavam as matulas e nós, crianças, ensaiávamos escondidos, pequenos abraços e beijos, nos cantinhos do vagão.
E as paisagens?
Para mim, a mais bela paisagens, a mais esperada era quando o trem voltava de Franca em direção a Pedregulho. Antes de chegar a Cristais Paulista, do alto via-se longe, bem longe, as montanhas de Minas Gerais e um orgulhoso prédio totalmente caiado de branco, isolado de tudo e de todos: era o Mosteiro dos Monges Cistercienses, que hoje em dia está bem menos solitário, já que está cercado por uma pequena comunidade, de nome Claraval. Também não dá também esquecer, nas viagens que fazíamos até Sacramento ou Conquista, quando se passava pela Serra da Rifaina: alta, coberta de aroeiras e ipês amarelos e dela podia-se ver ao fundo o Rio Grande, cristalino, cheio de dourados, bagres, mandis, piaparas e lambaris.
Agora o que não posso deixar mesmo de contar é o que acontecia com a Maria Fumaça na festa de São Pedro, em junho, quando a Igreja Católica organizava uma grande festança. Durante todo o mês de junho, antes da festa do dia 29, orientados por um sanfoneiro da cidade, ensaiávamos a dança da quadrilha, que com o casamento caipira, aconteceria no salão paroquial, antecedendo a reza do “terço” na igreja e a quermesse na praça.
Era uma festa esperada pela cidade.
Em seu dia um caminhão nos levava, os dançarinos da quadrilha, até a Chave da Taquara. Lá tomávamos o trem que realizava aquela parada, como já disse, apenas para abastecer-se de água, mas naquele dia todo especial, nos recebia, fantasiados de caipira, como se não o fôssemos, como passageiros. Lotávamos um vagão para chegarmos, gloriosos, na estação. Ao se aproximar da cidade a Maria Fumaça apitava a todo vapor, o maquinista botava mais água na fornalha para aumentar ainda mais a nuvem de fumaça, e, ao barulho da Maria Fumaça e do seu apito longo, foguetes eram queimados para celebrar a chegada dos noivos e seu séqüito para o esperado casamento e dança da quadrilha...Toda a cidade nos aguardava na plataforma da estação, de onde, ao som da bandinha da cidade e de foguetes e mais foguetes, seguíamos em carroças, todas elas e os pensativos burros que, vagarosamente, as conduziam enfeitadas com papel crepom coloridos, em procissão até o salão paroquial. Era lá que aconteceria o casamento, com o padre usando um balde velho e espigas de milho para jogar água benta para abençoar o povo e os noivos. Logo depois do casamento, e aí para mim era o melhor de tudo, animados pelo som da sanfona do Seu Tião, dançávamos a quadrilha.
Enquanto isso, a Maria Fumaça que não podia ficar para a festa, tinha continuado sua viagem, e àquelas horas, já devia estar descansando em Sacramento.
Era assim.

domingo, 5 de julho de 2009

MUTIRÃO




Sábado, bem de madrugadinha!
Era uns tempos, aqueles, que tínhamos aulas aos sábados e as lidas na roça, também, aconteciam normalmente naquele dia: folga mesmo, das aulas e do pesado trabalho na roça, só aos domingos e dias santos guardados. Eu estava morando na casa de uma irmã para poder estudar e era uma alegria só ir para a casa dos meus pais naquele sábado com mutirão: faltar da escola, ver minha mãe e meus irmãos e por causa do mutirão, pensava, comer muito arroz doce ao meio dia.
Saímos de madrugada, bem cedinho, em dois animais: eu fui na garupa da égua Briosa, levando uma capanga com meu estilingue e uma roupinha nova que era para usar no baile da noite. Briosa era uma égua marchadeira, com a garupa tão gordinha que quase não precisava de colocar forro de tão macia. Meu cunhado ia no Brotinho: este um cavalo tordilho forte, trotador, assustado, de tudo refugava e, por isso, animal perigoso para crianças. Era lindo o Brotinho e me enchi de orgulho e medo quando, certo dia, fui autorizado e o montei para ir, sozinho, até a fazenda dos Polos para trocar milho por fubá.
Era cedo ainda, com o dia acabando de clarear, quando chegamos na casa de meus pais. Na chegada misturou, em mim, uma felicidade grande pelos carinhosos abraços de meus irmãos e de minha mãe, das lambidas do Vinagre – cachorro por demais de querido – com o espanto de ver tanta gente chegando no curral de casa, atrapalhando um pouco os afagos com os quais estava acostumado ser recebido.
Naquela manhã de sábado, dia de mutirão lá em casa, as atenções tinham que ser distribuídas...
Chegavam e chegavam pessoas pela estradinha: vinham a pé, a cavalo, sozinhos, com a família:
- “B’dia seu Juca”
- “B’dia cumpadre... e a comadre, porque não veio? Maria tava contando qüela promodi fazê o arroz doce”?
- “Lerdeza pura cumpadre...vem vindo atrás.”
E logo chegava outro e outro, todos se cumprimentando com sonoros e parcimoniosos “b’dias”; Vinagre latia, nervoso, com tanto movimento: “que será isso? de onde aparece tanta gente?” provavelmente devia estar pensando em sua cabeça de cachorro.
Entrei em casa.
Chegava da mina, onde tinha ido buscar água, um irmão, ano e meio mais velho que eu, o Homero. Rápido abraço e me convida:
- “Vamos na capoeira caçar...tá cheia de juriti por lá.”
Fomos.
No caminho até a capoeira passamos pelo córrego e enchemos a capanguinha com pedras negras e redondas, estas, sem dúvida, as melhores para, de estilingue em punho, acertar no peito as nossas futuras caças: rolinhas, sabiás, juritis, fogo-apagôs...já sanhaço, tisiu, beija-flor, alma de gato, pintassilgos e canarinhos era pecado matar. Só se matava o que se podia comer a carne.
E vem conversa:
- “O Tonho tá namorando a Maria...vi os dois na maior pouca-vergonha ontem atrás do cafezal... pai não sabe, então não conta para ninguém, viu?”, disse Homero.
-“Não conto...você sabe que não sou mixirica enredeira.”
De tudo sabia aquele meu irmão: de brigas, de afetos e desafetos, de intrigas, de namoros e de doenças... Ficava imaginando em como ele conseguia saber de tudo e o invejava; como invejava meu cunhado por conhecer todas as pessoas que encontrávamos. Sempre que íamos a cavalo por qualquer estrada, e quando lá na curva vinha um cavaleiro, ele sempre sabia quem era:
-“ Lá vem o Aníbal, do seu Chico de Barros.”
Não errava: os cavalos se cruzavam, respeitosamente paravam, cada um tirava o seu o chapéu e:
-“Dia Aníbal..como está seu pai, o Seu Chico?”
-“Dia seu Dari... pai tá bom...mandou chamar o senhor ir lá em casa, qualquer hora dessas, jogar truco.”
-“Vou sim; qualquer hora vou. Até mais, hoje estou com pressa, estou indo pro Alto Porã.”
Eu pensava: como sabe o nome de todos, a todos conhecem? Deve ser coisa de adulto e sonhava em ficar adulto logo. Já o Homero não era ainda adulto mas conhecia muito mais gente e sabia de todos os segredos.
Chegamos na capoeirinha. Estilingue em punho, agora era observar os pássaros e torcer para uma pedrada certeira. O tal bando de juritis, percebi, era invenção de meu irmão. Ficamos lá acocorados sob a copa de uma enorme aroeira a espera.
Eu era um excelente atirador de estilingue e bodoque.
Para caçar tínhamos que ficar imóveis, à espera do pouso, e procurar o ângulo que tornasse, por entre tantos galhos, possível a pedrada certeira, de preferência no peito dopássarinho. Enquanto não chegavam por lá as prometidas juritis mais conversa e alguns segredos que me estarreciam:
-“ O Feu vai roubar a Fia, esta noite no baile.”
Percebendo meu susto:
-“Ninguém sabe, só eu; vê então, se fecha esta boca. O pai da Fia, seu Chiquito, é briguento, vive com faca na cintura e você sabe que o Feu não tem medo de homem nenhum... Mas logo depois que ele cantar o Forró do Mané Vito, hoje a noite no baile, ele vai roubar a Fia.”
Feu, na verdade Alfeu, um de nossos irmãos mais velhos.
A chegada e o pouso de uma juriti no alto da aroeira interrompe a conversa. Silêncio absoluto. Paramos a conversa, os olhos fixos no pássaro e com passos pequenos e lentos, sem nenhum barulho, iniciávamos a busca de uma boa posição para disparar. O melhor era com o pássaro “de peito”: o alvo se tornava maior e a morte era certa...Estávamos, ali, quase sem respirar, buscando a melhor posição quando Homero, descalço, pisa em um espinho, desequilibra-se, força o peso do corpo no pé direito e os estalidos dos gravetos pressionados pelo seu pé afugentam a juriti.
Fico bravo:
-“Vocês estão espantando os passarinhos... estão ariscos demais. Já disse que não se atira a toa: só quando tem certeza que vai matar...”
-“Sou eu não...é o Zé do Biba que anda caçando por aqui.”
-“Para caçar passarinho tem que ter paciência. Atirar pedra a toa afugenta e eles ficam ariscos, duros de se ver de perto...”
Era a minha vingança: não sabia dos segredos das pessoas, das fugas, dos namoros e nem, como meu cunhado, conhecia e sabia o nome de todas as pessoas daquela furna enorme, mas na caça de passarinhos eu era o melhor.
Sentado sobre uma pedra , tentando tirar o espinho do calcanhar, mais assunto novo:
-“Já sei onde o Dito e o Luís Ernesto “vai” esconder uma garrafa de pinga para beber na hora do baile; sabe o pé de araticum que tem perto da mina? Pois então: bem debaixo dele.”
A informação, como sempre, seguida da orientação de que ninguém sabia daquilo, só ele, e que eu não deveria contar para ninguém.
A conversa foi, àquela hora, interrompida por um grito de nossa mãe que nos chamava para que fôssemos levar água para o pessoal que trabalhava no mutirão.
Para meu irmão estava preparado um latão de dez litros com água da mina. Para mim uma cabaça menor. E fomos até o cafezal do pé da serra, onde estavam a carpir, os convidados para o mutirão.
Cedo, de manhã, e o sol já ardia de quente naquele fevereiro de muito calor e pouca chuva.
Chegamos para servir água aos trabalhadores.
Em mutirão era assim: cada um pegava uma rua de café para carpir de seu início até o fim; o trabalho era entremeado de muita conversa, disputas, cantorias e piadas sujas, estas eram sempre contadas pela metade para não se falar besteira na frente de meninos pequenos; mas meu irmão sabia das coisas e assim resolvíamos fingindo que íamos mas, na verdade, orientado por ele, ficávamos deliciosamente excitados, ouvindo piadas e “causos” escondidos debaixo de um pé de café: quietos, mudos e sem mesmo poder sorrir aos seus finais jocosos.
No trabalho de carpir, naqueles mutirões, disputas, as mais diversas ocorriam: seu Biba disputava a velocidade de carpir com Arnaldo, apostando que aquele que vencesse, carpindo mais ruas de café até o final do dia, teria a preferência para tirar Sebastiana, filha do Jorge Ferreira, para dançar no baile que ocorreria logo à noite; isso porque, todo bom mutirão, além da comida farta e do arroz doce ao meio diz, tinha que ter baile animado e para isso meu pai havia convidado sanfoneiro afamado, tocadores de triângulo e de zabumba; já Alcindo apostava com Tim quem ficaria mais tempo mergulhado no fundo d´água, no poço da cachoeira, onde iriam tomar banho ao final daquela tarde, se preparando para o baile: o que ganhasse teria a preferência de dançar com Ercília... Assim, as disputas ocorriam e às vezes eram levadas a sério por demais e brigas ocorriam, mesmo, antes do baile e das pingas...
O almoço, lá pelas nove da manhã foram dois caldeirões de comida: um com arroz e galinha e outro com mandioca e carne seca. O pessoal deixou a carpição de café e foi até em casa almoçar. Cada qual se servia, procurava uma pedra em uma sombra para sentar e enquanto comiam conversavam: falavam do baile que teria à noite, das moças mais bonitas, das qualidades do Geraldo Sanfoneiro, que viria tocar, das músicas que pediriam para ele... Nesta hora do almoço, a presença das mulheres que haviam feito a comida impunha respeito e impedia piadas, conversas em voz alta e palavrões. E enquanto os homens almoçavam elas já iniciavam o preparo do arroz doce que seria oferecido lá pelas duas da tarde.
O clima era de festa e o ambiente era de uma alegria só.
De noite o baile!
Melhor impossível. Terreiro de casa limpo e varrido e o toldo armado com panos de colher café: estava pronto o salão de baile. Cadeiras e bancos de madeira colocados à beira do pano para que as moças e as mulheres pudessem sentar: umas aguardando, ansiosas, o pedido de dança, outras conversando, enquanto outras amamentavam seus filhos como os seios e a cabecinha do bebê protegidas por xales de crochê ou panos de chita. Os bancos e cadeiras eram também reservados aos mais velhos que proseavam, fumavam cigarros de palha, bebiam quentão e cochilavam quando o sono apertava.
Nós, as crianças, nos divertíamos dando soco nas costas das moças por trás dos panos de colher café que formava o toldo: nos deliciávamos com o susto que levavam e com os gritinhos que soltavam. Socávamos e fugíamos para o mato.
O sanfoneiro dá início ao baile.
Toca, acompanhado pela zabumba e pelo triângulo, Saudades de Matão. Os rapazes procuram, primeiro com o olhar as, moças e as tiram para dançar. E lá vão leves, ritmados, passos combinados rodopiando pelo terreiro de dança, sempre sob os olhares reguladores dos pais das moças.
Para os mais corajosos, escapar de tamanha vigilância, o recurso era fugir dançando mais para o meio do salão terreiro, e só ali, criar coragem para uma conversa mais ao pé do ouvido, um aconchegar mais os corpos, que voltavam à se distanciar assim que a música e o bom senso, a contragosto dos pares, definia como hora de voltar a dançar dando voltas pelas beiradas do terreiro.
Em uma certa hora, Alfeu, meu irmão, é convidado para cantar o Forró do Mané Vito. Muito bonito, moreno dentro de um terno de linho branco, não se faz de rogado, sobe em um caixote e afinado, com o corpo obedecendo ao ritmo da sanfona, inicia sua cantoria:
“Seu delegado, digo a vossa senhoria,
Que eu sou filho de uma família,
Que não gosta de brigá.
Mas trás antonti,
No forro do Mané Vito,
Tive que fazê bonito,
A razão vou lhe explicá...”
Homero me chama de lado:
- “ Não sei se você viu mas a Fia já saiu do terreiro de baile; daqui a pouco, você vai ver: sai o Feu. Vão fugir. Rincão, o cavalo do Feu, já está arriado e amarrado no pé de ipê, na beira da porteira.”
-“Será mesmo?”, digo eu e me ponho a observar.
Um advinho o meu irmão: obedecendo ao que me informou, vejo o Alfeu sair do terreiro de dança, entrar em casa à busca de quentão na cozinha e assoviando alto o Forró do Mané Vito, atravessar o quintal, rumo ao pé do ipê.
Uma ou duas horas depois as ausências são percebidas: sorrisos maliciosos, olhares furtivos, perguntas e insinuações enchem o toldo.
- “Cadê o Feu?”
- “Cadê a Fia. Onde foi parar a moça?”
Pai confabula com minha mãe: “Feu fez besteira, sei não. Isso vai dar encrenca.”
Seu Chiquito e dona Terezinha, pais da Fia, vão para casa, na esperança de que a filha esteja por lá. Moravam em uma casinha depois do córrrego, na direção oposta ao pé de ipê, à beira da porteira onde Rincão estava amarrado, esperando o casal de fugitivos...
O baile continuou até de madrugada!
No sábado seguinte outro baile: festa de casamento do Feu com a Fia.
Pude, outra vez, a faltar da escola, caçar juritis e, à noite no baile, dar socos nas costas das moças por trás dos panos de café que formavam o toldo de baile.
E mais uma vez Feu subiu ao caixote e, acompanhado da sanfona do Geraldo Sanfoneiro, cantou o Forró do Mané Vito.
Mairiporã, junho 2007.