domingo, 4 de julho de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: ANGELINA



Eis que surge, no centro da arena, uma mulher para contar uma história!
Surpresa geral: até o momento apenas homens haviam participado como contadores.
Nair, era o seu nome. Aparentava ser uma matrona com seus sessenta anos, forte, cabelos grisalhos, vestido de algodão sobre o bonito corpo gordo. Quadris largos, seios salientes, sobrando pelo colo, orgulhoso dos filhos que haviam tirado dali seu alimento. Os cabelos grisalhos, levemente ondulados, cobriam os ombros. Tinha uma voz doce e suave, comum às mezzo sopranos.
Inicia, sorridente, sua história:
“Pois bem pessoal, quero contar a vocês a história da Angelina.
Esta história eu ouvi, pela primeira vez, ainda menina moça, contada em uma noite fria, ao calor da fogueira em uma festa de São João. Quem a contou foi Dócio, um cego gordo, com enormes papadas sob o queixo. Mais tarde, tornei a ouvir esta história, desta vez contada pelo Diquinho, um meu primo distante, também muito bom contador de histórias. Não houve grande diferenças entre a história contada pelo cego Dócio e pelo primo Diquinho.
Vou, agora, contar para vocês.
Angelina era a primeira filha de um dos casais de italianos que, como nós, viviam em pequenos sítios nos pampas do sul do país. A maioria destas famílias, premidas pela miséria, imigraram do sul da Itália, e, aqui, plantavam e cultivavam videiras, faziam vinho e vinagre, criavam porcos e bois; todos católicos, crentes e após as missas dominicais, quando havia padre para celebrá-las, se reuniam para, saudosos, contar as venturas e memórias da Sicília, tão brava, tão longe e, agora, tão somente em seus sonhos.
Angelina era uma menina forte; na escola se destacava pela facilidade de aprender as letras; em casa, pequena, já cuidava dos porcos, dos irmãos menores e tecia na roca.
Mas o que a todos instigavam e a tornava motivo de admiração e curiosidade eram seus poderes de adivinhação. Assim: se um bezerro sumia, Angelina tinha a resposta, sabia em que pasto e sob a sombra de qual árvore se escondia o fugidio bezerro. Mesmo no desaparecimento de pequenas coisas, em grande parte por culpa da desordem típica dos imigrantes italianos e da simplicidade de suas moradias, era Angelina que, consultada, como São Longuinhos, indicava corretamente o local onde se encontrava a perdida agulha de tricô da nona, o sumido canivete do nono ou a faca afiada da mãe...
E até casos mais difíceis, ou no mínimo mais delicado, como a história do porco, um cachaço que tinha sido castrado recentemente e colocado para engorda pelo seu tio Alfredo. E não é que o enorme porco sumiu! Fugir não era o que se podia imaginar:como pular a cerca do chiqueiro com tamanho peso e gordura? Impossível, concluiu a família reunida. Só podia ter sido roubado. E Angelina, consultada, denunciou quem havia feito tão condenável ação. Foi de seu pai a pergunta:
- Sabe do porco que tio Alfredo capou para engorda Angelina? Sumiu o danado.
- Foi o Agnaldo que levou, respondeu sem pestanejar.
Susto maior não poderia. Logo o Agnaldo, filho do velho senhor Baltazar, amigos de mesa e de jogos, teria cometido tal crime?
Pois tinha.
E a longa amizade que havia entre as famílias, comprovado o ocorrido, estremeceu; e mesmo dentro da família dos Baltazar, vergonhosa do ocorrido, muitas desavenças aconteceram.
Mas voltando a Angelina!
Seu poder de adivinhação, ganhou fama e, como tocada pelo vento, fugiu do domínio das famílias italianas, avançou por outros sítios até chegar aos ouvidos de Frei Marcos, pároco em vizinha comarca. E veio, então, a primeira condenação: quando o bondoso, porém severo padre, chegou até a pequena comunidade para batizar os pequenos rebentos e realizar a primeira comunhão da criançada, proibiu Angelina de receber o Santo Sacramento da Hóstia Santa .
- É pecado grave. Essa menina está com o diabo no corpo! justificou Frei Marcos.
E por estar com o Demo no corpo, Angelina foi proibida de a de fazer a primeira comunhão, apesar de saber de cor e salteado a Salve Rainha, o Creio em Deus Padre, recitar sem erro os Dez Mandamentos, enfim, apesar de ter sido, sem sombra de dúvida, a melhor aluna no catecismo.
E, com isso, Angelina passou a sofrer dor imensa; inocente e ingênua: “e o meu vestidinho branco, de organdi, tão lindo, para o dia tão esperado de, com ele e de grinalda, receber, toda de branco o Corpo de Cristo? Vai ficar sem uso, dependurado?”, lamentava quieta enquanto trabalhava a roca.
Tanta dor, muita dor! Ter o Diabo no corpo era, pra ela, a pior das doenças, a mais triste das sinas.
A primeira comunhão, perdida esta oportunidade, só ocorreria no próximo ano, quando novamente Frei Marcos voltaria à pequena comunidade para batismos e a cerimônia do Sacramento da Comunhão. E para não acontecer outra proibição, antes de partir, o padre se ofereceu para exorcizar seu corpo e tirar dali o Capeta.
Angelina, convocada, compareceu até a casa de Dona Cecília para o ritual. As portas foram fechadas, as luzes apagadas, sobrando apenas, no oratório, em um canto da sala, uma trêmula chama de vela:
- Tem algum espírito presente?, declama em voz respeitosa e grave Frei Marcos.
E, imediatamente, o corpinho de Angelina tem inícios de convulsão, retorcendo-se todo; seus olhos parecem saltar da órbita, com o branco tomando o espaço do que antes eram das negras pupilas; no rosto uma expressão de pânico e dor enquanto balbuciava, entre gemidos, incompreensíveis palavras!
- “Vá-te embora Satanás. Liberte o corpo deste anjinho. Vá-te demônio! Em nome de Cristo, vá-te.”, ordenava, com voz segura, Frei Marcos.
E o corpo da pequena Angelina, todo suado, foi vagarosamente voltando à sua normalidade: foram diminuindo, aos poucos, os tremores e os retorcimentos, cessaram de sair de sua boca, que ainda espumava, palavras incompreensíveis enquanto os olhos voltavam ao brilho normal: Cruz Credo!
E após o ritual, por ordem de sua mãe, familiares e vizinhos foram proibidos de pedir socorro e adivinhações a Angelina e a menina proibida de, caso solicitada, realizá-las. Mesmo as simples e tão corriqueiras seções para São Cipriano, para adivinhar o sexo das crianças das mulheres grávidas foram proibidas. E no início, sob o impacto da negativa da primeira comunhão e do ritual de exorcismo estas ordens foram rigorosamente cumpridas e vigiadas, mas, com o passar dos dias a vida voltou ao seu normal.
E Angelina, mesmo vez ou outra realizando inocentes ou mais complexas adivinhações, passou o ano sonhando em receber o Corpo do Senhor, em fazer sua primeira comunhão com o vestidinho branco de organdi.
Chegou a hora e no confessionário, confirmam-se as dúvidas de Frei Marcos: a menina continuava possuída e mais uma vez proibida de receber o Santo Corpo de Cristo. Houve um outro ritual de exorcismo, e, para manter a família alerta do perigo de nova invasão do Demo no corpo da menina, Frei Marcos passou um castigo: escrever, diariamente, pela manhã, no caderno de caligrafia, com as letras bem definidas: "SENHOR JESUS: LIVRAI E PROTEGEI MEU CORPO DO SATANÁS".
E o ano foi se passando com o exercício diário de caligrafia, com pequenos rituais de adivinhação invocando São Cipriano - usando uma chave presa no Evangelho - , e alguns pedidos de adivinhação impossíveis de serem recusados...
Foi então que, na noite que antecederia sua confissão para realizar a sua primeira comunhão, Angelina teve um pesadelo terrível. Sonhou, se é possível chamar isso de sonho, que, estava toda de branco, com sua grinalda de tule e as mãos postas sobre o peito, pronta para receber Hóstia Santa; e foi aí que, ao se aproximar do altar e ajoelhar-se, abrir suavemente a boca, e, como havia sido orientada por dona Cecília, colocar delicadamente a ponta da língua para fora, para, respeitosamente, receber a Santa Hóstia teve início seu martírio: ao receber a Hóstia Santa, sentiu primeiramente sentiu um gosto forte de sangue e a Santa Hóstia crescer sob sua língua, transformando-se em uma esponja úmida que tomava a boca toda que começou a sangrar, vertendo sangue peito abaixo, manchando de vermelho o vestido de organdi, suas mãos postas e o terço que tinha entre elas. Acordou na manhã seguinte febril e com uma rigidez facial que a impedia de pronunciar palavra qualquer; não pode se confessar e, mais uma vez, participar da cerimônia da primeira comunhão.
Frei Marcos, desta vez, não se ofereceu para o ritual de exorcismo.
Desesperançada Angelina passava o tempo na roca, tecendo. E, junto à roca, teve início as primeiras visíveis e terríveis aparições. A primeira aparição visível aconteceu assim:
Sua mãe tinha a diária rotineira obrigação de levar, até a plantação de uvas ou outra roça onde os homens labutavam, as marmitas com o almoço do marido e dos tios. Era sua tarefa. E na volta para casa, após o cumprimento da obrigação, tinha o hábito de, antes de entrar em casa, sentar-se no banco sob o pé de amora e ali enrolar um cigarro e deliciar-se com profundas tragadas. “É a hora do meu descanso, de ficar comigo mesma. Gosto muito.”, dizia.
E foi um dia então que Angelina, orientada pela luz que o sol fazia entrar na porta do celeiro onde ficava a roca, calculou que já era hora de sua mãe estar voltando da plantação de uvas com as marmitas, que teve sua primeira aparição. Em um misto de sonho e pesadelo, viu que, naquele dia, sua mãe não parou para fazer o cigarro de palha, passou indiferente sob a sombra da amoreira, entrou em casa, deitou em sua cama e logo depois morreu.
E Angelina, assustada, correu para o terreiro de frente da casa e viu que sua mãe vinha da roça com as marmitas vazias às mãos. E a pequena, que torcia e rezava para que sua mãe obedecesse à rotina do cigarro de palha sob o pé de amora, horrorizou-se ao vê-la não parar sob a sombra amiga, entrar em casa à procura de sua cama e deitar. Logo após ouviu os gritos desesperados da avó: “Acudam: Lourdes morreu. Deus do céu, acudam!”
Seu pai, temeroso pelo fato das normais mudanças que ocorriam no corpo da menina, transformando-a em mulher, achou por bem mandá-la viver sob os cuidados de uma irmã, que tinha filha moça e, por ser mulher, poderia melhor cuidar de Angelina. Não se sentia preparado para tal educação.
E, na casa da tia, Angelina viveu a realidade das histórias dos livros que havia lido a respeito das temerosas e ciumentas madrastas: desprezada pela tia e transformada em criada servil pela prima; seu único refúgio era a roca, onde tecia e deixava a vida passar.
Mocinha passou a ser importunada pelo tio:
- Pode ser ou está difícil, Angelina? perguntava o tio, olhar lascivo, ao passar sob a janela do celeiro onde ficava a roca.
- Tá difícil, respondia temerosa.
E veio a segunda aparição:
Seu tio passava sob a janela fumando seu cigarro de palha e fez a habitual pergunta à qual Angelina respondeu: Pode ser. E os corpos nus se misturaram com os fios tecidos na roca; soluços, gemidos de prazer e de temor quebraram o silêncio sepulcral do celeiro. E Angelina, sob o pesado corpo do tio, viu, na janela, sua tia que, horrorizada, a tudo observava.
E imediatamente após sua visão ouviu os passos de seu tio se aproximando:
- Pode ser ou está difícil Angelina?
- Pode ser tio.
E, a partir dali, sua vida que era difícil tornou-se insuportável.
Pelo acontecido a tia impôs castigo: isolamento total no celeiro; as refeições passaram a ser levada até a janela na pequena marmita de alumínio e, como castigo, copiar até encher toda a folha de papel de embrulho: “EM MEU CORPO MORA O DEMÔNIO” .
As visitas do tio passaram a ocorrer com maior freqüência e, imediatamente após casa visita, sua tia aparecia na janela com uma folha de papel de embrulho, com uma frase escrita no alto, que deveria ser copiada até preencher toda a folha.
Angelina sentia-se só. Sua solidão era amenizada com os exercícios de caligrafia e com a roca. Para passar o infinito e interminável tempo Angelina passou a brincar com as letras assim como brincava com a roca. A solidão tornava-se, desta forma, suportável com as folhas de papel de embrulho se acumulando ao lado dos fios de lã tecidos na roca.
Dias, semanas, meses e anos foram passando. Sentia saudades de ouvir palavras e de emitir o som de sua voz. Passou a cantarolar em voz cada vez mais baixa até cantarolar apenas para dentro de si, em sua mente. Esquecia os sons, as palavras. E mesmo as únicas palavras que ouvia do tio querendo seu corpo foram sendo economizadas. Do inicial: “Pode ser ou está difícil Angelina”, passou para “pode ser ou está difícil?”, economizando o Angelina, para ficar apenas no “pode ser?”.
Em um domingo ouviu vozes, falas e cantos misturados ao som da sanfona. Eram as reuniões familiares. Algum aniversário provavelmente.
Outra visão: Seu tio bêbado de pinga e de vinho, chegou até a janela e com a voz pastosa dos bêbados : “pode ser?”, entrou no celeiro, tomou Angelina nos braços, deitou-a no colchão de palha, que era sua cama e a possuiu. Levantou-se, abotoou as braguilhas das calças e deixou o cigarro aceso ao lado da cama. Saiu, como sempre, pelas portas do fundo do celeiro, deixando-a aberta, de onde veio uma rajada de vento que deu brilho á pequena faísca do cigarro,tomou conta do colchão de palha, alcançou os fios da roca e os papéis de embrulho. Em segundos o celeiro tornou-se em uma labareda única queimando tudo e todos.
Logo após esta sua visão seu tio chegou à janela, pernas cambaleando de bêbado, e, sem aguardar resposta para o “pode ser” dito em voz pastosa adentrou-se no celeiro e colocou-a na cama...
Saiu pelas portas do fundo do celeiro e Angelina abotoou o vestido em sua parte superior, cobriu os seios, arrumou a saia sobre as pernas, pegou o terço nas mãos, deitou e esperou o calor do fogo.
A tia, como sempre, chegou até a janela com o papel do castigo e viu a labareda já alta consumindo e alimentando-se das palhas do colchão, dos fios da roca, dos papéis de embrulho e do corpo de Angelina.
Atirou pela janela, para o centro da labareda, o papel de embrulho com o cabeçalho: “ARREPENDEI-VOS, PORQUE É CHEGADO O REINO DOS CÉUS”