domingo, 9 de novembro de 2014

ESCREVER E CAMINHAR 6

 

Em 2008 um grupo de amigos resolveu criar um BLOG para comemorar os 40 anos do ano de 1968 – ano de péssimas memórias, ano do recrudescimento da violência imposta pelos generais de plantão responsáveis pelo golpe militar de 1964 - e me interessei, de imediato, em participar; tive, naquele momento, o apoio – muito grande - e o estímulo de amigos no sentido de que minhas limitações no uso da internet não bloqueassem ou dificultassem minha participação no ARQUIVO 68, sugestivo nome do blog. Mas o que importa aqui, neste relato, é que àquela época já havia escrito algumas histórias e algumas delas, mero acaso, remetiam às vivências do ano de 68 e naquele ano – 2008 -, nascimento do ARQUIVO 68, andava a experimentar um período de profunda e generalizada descrença, vivia um momento de forte niilismo e consequente péssima sensação de descrença nas possibilidades do HOMEM em superar suas injustiças e suas desumanidades.

E foi então, vivendo o estado de espírito acima, que iniciei a redação das histórias a serem postadas no ARQUIVO 68 e ao redigi-las ou revisá-las percebi que algo de novo ocorria comigo: tive, enquanto trabalhava nas histórias, a consciência de que o escrever me libertava das “garras” do niilismo, da descrença e enquanto escrevia voltava a crer nas possibilidades de reação às misérias humanas, me rejuvenescia (pode isso, aos 65 anos? pode, sim) e lutava – enquanto escrevia – tal como havia lutado, quando jovem, em 1968. O escrever me transforma: creio em mim, no homem, na luta e mais que isso: o escrever passou a integrar a minha vida, dando a ela mais sentido e saúde. Penso que vale a pena abrir aqui um parênteses: havia interrompido a escrita destas memórias há semanas em função de viagem a São Paulo para acompanhar minha esposa internada em hospital para tratamento de problema cardíaco e como sabia, de antemão, que o período de internação seria longo comprei o pesado e “volumoso” A interpretação dos sonhos, do Freud, para fazer com que as horas corressem mais depressa e – surpreso – encontro meio aos sonhos e ás teorias do velho Freud esta passagem, na verdade, uma carta do filósofo-poeta – assim Freud o chama - Schiller ao amigo Körner: ...“A razão de tua queixa, segundo me parece, se encontra na coação que o teu entendimento impõe à tua imaginação... Não me parece bom, além de desvantajoso para as obras criativas da alma, quando o entendimento examina com demasiada severidade, já nos portões, por assim dizer, as ideias que chegam...” e foi aqui no hospital, anos e anos após ter consciência do prazer que o escrever me proporciona, que fui encontrar o “suporte” teórico ao que instintiva e solitariamente havia ocorrido em minha alma ao me por a escrever; e fecha o parênteses.

Então... então, claro, a partir de 2008, entusiasmado, passei a fazer do ato de escrever um exercício diário – nem sempre tão diário assim - de sensibilização e de crescimento no processo de humanização e de busca da integração e de entrega interior ao belo, às causas e aos caminhos que objetivam o aperfeiçoamento e o desenvolvimento. E isso tudo comigo quieto: o eu comigo mesmo e o escrever oferecendo mais sentido à vida, o ato de escrever, de rever e reescrever cada palavra, cada parágrafo, da tentativa de descobrir a equação que soluciona o final de uma história e do pensar uma nova história se tornando momentos de felicidade, me fazendo mais humano, mais comprometido e, importante, mais feliz!

E plagiando o professor Pasquale: É isso!

Vamos, então, à crônica prometida ao jovem jornalista Anselmo.

Estava, salvo engano, no sexto dia de caminhada quando nuvens começaram a cobrir o céu que até aquele dia de caminhada vivia um azul infinito e belo, seu constante anil cobrindo as montanhas e vales e rios e riachos até aquele sexto dia quando, já de manhã, claras nuvens cobriram o sol até então imponente - e senhor – com seus raios queimando as costas e os braços e os pastos e as plantações pondo tudo a secar: os rios como que se desnudando e mostrando pedras antes não vistas, volumosas e barulhentas cachoeiras se transformando em magros fiapos d’água a pingar em negras pedras, o nariz a sangrar; mas... tem sempre um mas: o caminho pelo qual andava naqueles dia era de “roxas” terras - de bonitos cafezais - que quando encharcadas pela água da chuva se transformam em vermelhas e grudentas piçarras que colam no solado das botas aumentando absurdamente seu peso, impedindo o caminhar; e também tem outra coisa: além do desconforto do caminhar sob chuva pelo peso das botas e risco de escorregar, o que ocorre – de fato – é que o mal estar que sinto ao caminhar sob chuva é o ancestral medo de raios e trovões, muito presentes naquela região. E daí? Daí que apesar da importância de boas e molhadas chuvas na região, torcia – escondido de mim mesmo - para não chover e a covardia egoísta floresceu quando, à noite, acessei o clima tempo – em uma lun-house que lembrava um vulcão tanta fumaça de cigarro - e ao constatar que a previsão era – em toda aquela semana - apenas nuvens e zero de chuva, vergonhosamente, fiquei feliz.

Continuando: penso já ter confessado que o caminhar faz deslizar em minha memória - como em um sonho - a infância! Paisagens, cheiros, silêncios e cantares e voos de pássaros e de velhas casas brancas com suas janelas azuis...

Do alto de uma pequena montanha se via, lá embaixo, o sinuoso o vale, a estrada vermelha de chão batido com seu solo socado e moldado por rodas de pesados e lentos caminhões e carrocinhas que transportam galões e galões de leite; mais ao fundo do vale a antiga, velha e imponente casa de fazenda, à sua frente – como em um desenho - o curral e suas vacas ruminando, descansando e os bezerros socando forte as tetas da mãe à busca de leite, no ar o forte e quente cheiro de curral; pouco mais abaixo – em direção ao sul - as altas e verdes árvores ladeando a estrada e protegendo do sol a casa branca e seu telhado vermelho e suas janelas azuis descoradas e mais a frente à pequena e delicada ponte que atravessa o córrego de águas claras, transparentes; deve ser bom de pescar – vara de bambu e minhoca de isca - prateados e espertos lambaris do rabo vermelho, e ao me aproximar passei a ouvir o barulho da correnteza, córrego pedregoso com forte correnteza o que me leva a concluir que além dos lambaris, sob as negras pedras formando as locas – moradia das escuras gambevas, dos amarelos bagres e dos cinza escuros mandis e manditingas; e eu ia assim caminhando distraído, pescando e fisgando, ágil - em minha imaginação - lambaris e gordas gambevas quando vi – rodeado por dois cachorros vira latas - um senhor gordo e alto, andava com as dificuldades impostas pela idade, o bastão de guatambu ajudando o equilíbrio; o cão late nervoso e o velho gira bravo o bastão de guatambu, berra alto, voz forte e rouca ameaçando arrebentar os ossos do vira-lata cor de vinagre: sai Duque! cachorro desgraçado, não me obedece, mais não? então leva cacete seu cão de merda; e vai sacodindo o bastão de guatambu no ar tentando, sem sucesso, quebrar as costelas do Duque, que continua a ganir, dentes brancos à mostra, e eu – medroso - me preparando para enfrentá-lo com meu cajado de bambu, a adrenalina nas últimas e dizem que o cachorro percebe o homem que tem medo pelo cheiro da adrenalina que exala, será mesmo meu deus do céu?, não devia ter tanto medo assim, nasci na roça, acostumado com cachorros, e então – felizmente - os berros e as maldições jogadas ao ar pelo senhor Mário - o gordo e velho senhor dono da fazenda de casa branca e janelas azuis descoradas, moreno, barba branca de dois ou mais dia, paletó preto, camisa de flanela, chinelos havaianas nos pés - deram resultado, o Duque fugiu com o rabo enfiado entre as pernas, latindo chiado, vez ou outra criava coragem e voltava a cabeça em direção ao velho e mostrava os olhos tristes – como que pedindo perdão - pela brabeza do dono que aliviado com a obediência do cão: bom dia! este desgraçado do Duque vez ou outra teima em não me obedecer e eu tenho que meter o cacete nas costelas dele, mas o senhor vai indo para Aparecida?; sim, estou indo para lá; posso andar um pouco com o senhor?; claro que sim, a gente aproveita e conversa um pouco; quer água de mina? tem uma mina d’água logo ali, é a mina que buscamos água para uso na cozinha e para beber, água pura que nasce ali embaixo das pedras do morro; vamos sim até a mina. Abrindo um parênteses: nessas caminhadas pelas pequenas cidades de Minas se percebe claramente o orgulho das pessoas da região com a qualidade das águas das minas que brotam aqui e acolá: elogiam suas águas frescas, claras e falam do prazer em beber água na concha das duas mãos, sugando e molhando o peito, o que ali, naquele dia frio não era de todo agradável e fecha-se o parênteses. O senhor mora aqui?; sim moro naquela casa ali e o senhor de onde vem? Venho de Salvador; nossa que longe, veio andando pé de lá?; não, venho caminhando desde Alfenas; desde Alfenas, tá louco, longe, tenho parentes por lá, um irmão e uns tios; achei a cidade bem bonita, grande; e bebíamos água e parlamentávamos quando fomos interrompido pelo ganir do Duque: latia nervoso ao mesmo tempo ciscava o chão em volta de uma moita de gabirobas, e no espaço entre um latido e outro se ouvia, do meio da moita de gabiroba o chiiiii...nervoso: é cobra, é o chiado do guizo de cascavel, com a seca brava elas vêm a procura d’água, melhor ter cuidado, cobra venenosa; rápido, medroso, meti a mochila às costas e junto com seu Mário que esqueceu o doloroso reumatismo e andou célere para a estrada, deixamos Duque às turras com a cascavel e já distantes, seguros, sentamos no barranco da estrada: eu ainda ajeitando melhor a mochila e seu Mário se recompondo da rápida fuga, se põe a contar: minha filha, quando tinha sete anos foi mordida por uma cascavel e eu tive que ir com ela para a cidade em busca de socorro e o médico da Santa Casa receitou sete injeções e falou que a menina podia estar salva, mas que eu cuidasse bem dela porque a doença do veneno poderia voltar a aparecer depois de sete meses, e caso não aparecesse logo aos sete meses que poderia voltar depois de sete anos e, aí sim, caso não aparecesse – depois de sete anos – é que se poderia considerar minha filha curada de vez da doença e foi isso que aconteceu, ela está viva, mãe de sete netos, e foi depois daquilo, quando a cascavel mordeu minha filha, que aumentou mais o meu medo de cobra e se uma cobra cascavel tivesse me picado quando criança eu seria hoje um homem morto, naqueles tempos não tinha recursos, nem médicos, e é acho que é por isso que muito cuidado e ando sempre a olhar o chão, não enfio a mão para catar gabiroba de medo de cobra; e o Duque continuava ainda às turras com a cascavel e o seu Mário voltou aos seus berros e a lançar pragas no cachorro: sai seu desgraçado, quer morrer seu puto? – e enquanto berrava atirava – desajeitado - pedras no cachorro e na cascavel seu Mário contou que as cascavéis moram mais ao fundo no cerrado e que aquela que o Duque queria morder tinha um guizo de sete gomos, era então uma cobra já criada com sete anos de idade, cada guizo demora um ano para crescer. Até mais obrigado pela água da sua mina; até logo, boa viagem e chegando a Aparecida, reze por nós; sim, rezarei.

Caminhei por mais três horas e cheguei faminto à pequena cidade – me foge agora o nome: acho a pousada, o banho, onde tem um restaurante com boa comida? logo ali, vire a direita depois de dois quarteirões da praça, tem um bom; muita fome e no pequeno restaurante a memória da infância reativada: comi moganga, chouriço, torresmo, couve, frango com ora-pro-nobis...!