quarta-feira, 1 de outubro de 2014

ESCREVER E CAMINHAR–5 -

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Há dois anos estive em Portugal e, saindo de Porto, fiz o Caminho Português para Santiago de Compostela: coisa de uns treze ou quatorze dias de caminhada, mochila às costas, andando – devagar para sentir os cheiros, os ares - quilômetros e quilômetros por milenares estradas romanas, colhendo doces e negros figos no pé, apreciando o estrelado céu e procurando, sem muito sucesso, a estrela Vênus e a constelação do Cruzeiro do Sul naquele outro ponto da abóboda celeste (e já que o assunto é escrever e caminhar é importante a expressão Abóboda Celeste, título de uma composição que Dona Tarsila escreveu na lousa com data marcada para a entrega e eu deixei para a última hora e por isso perdi o treino com o time de futebol cuidando da redação da Abóboda Celeste que, para mim, foi um marco: percebi, ao término da redação, que poderia escrever sobre garrafa, pedra, torres, montanhas). De volta de Santiago de Compostela, em Lisboa, comprei o último livro do Vargas Llosa – O herói discreto – com direito a pequeno um carimbo na primeira página: Bertrand Livreiros – Este livro foi comprado na livraria mais antiga do mundo, e sempre que reiniciava a leitura do livro dava, antes, uma passadinha e re-relia o carimbo: chegando ao Brasil vou contar para o meu neto, acho importante; mas o que quero mesmo contar do livro é uma frase do filho Fonchito ao pai Rigoberto: “nunca é tarde para isso, papá – retorquiu o miúdo . – Ainda tens muito tempo, podes dedicar-te àquilo de que realmente gostas. Agora estás reformado e tens toda a liberdade do mundo para fazer o que quiseres.” Vou escrever as duas ou três próximas frases com cuidado redobrado, mas mesmo assim, antecipo: por favor, não as entendam como uma apologia à pobreza e muito menos como possível desculpa pela não condução da minha vida tal como poderia tê-la feito; então vamos lá: sou o décimo filho de uma família de roceiros – colonos e depois meeiros em lavouras de café – e fui o único da família que teve a oportunidade de estudar; os demais labutavam nas roças de café ou de arroz ou de milho de sol a sol, e só chegaram, quando muito, ao segundo ou terceiro ano - alfabetizados em escolas rurais, fazendo contas de cabeça melhor que por escrito, enfim: bons e rudes irmãos, carinhosas irmãs, pai e mãe e todos - orgulhosos – sorriam quando aos sete anos me ouviam dizer vou ser professor. E porque toda essa história? o que tem é que nunca em meu interior – nunca, repito – foi aventada a possibilidade de viver de uma profissão artística e o mais interessante é que, penso agora, caso essa possibilidade tivesse ocorrido e – eu tivesse força e talento para tanto - teria me tornado artista plástico, vivendo a vida a desenhar e a redesenhar os periquitos e as igrejas barrocas que aprendi – ao colo do Tio Olímpio – quando criança, e que vivia a rabiscar em mesas, folhas de papel e grossas areias. Agora e viver da escrita, da escrevinhação pura e simples? jamais passou pela cabeça tal possibilidade, embora quando adulto e na ativa, sempre que frequentava Seminários e Cursos me via “reescrevendo” palestras dos doutores, dos altos executivos, transcrevendo fitas gravadas, “passando a limpo” aquele falatório todo, transformando a linguagem falada em um discurso escrito: imaginando que viveria bons momentos com aquele trabalho, nunca, realmente, executado. Então no dia a dia no trabalho - e em suas tensões - à prática e o exercício da escrita se resumiam a projetos, planos, propostas e quando resultado desta prática era “aprovada com certo louvor” eu colocava o mérito da avaliação aos componentes técnicos e objetivos que eu havia repassado para o papel, enfim, nunca vi – nestes trabalhos – uma possível habilidade na escrita. De fato, enquanto na ativa, escrevi umas cinco ou seis histórias, que mostrava – envergonhado - a poucos amigos. Outra hora conto desta minha mania – que tenho agora, depois de aposentado - de escrever: no momento vou cumprir o compromisso com o jovem e sorridente jornalista Anselmo e escrevinhar a prometida crônica.

“Fomos rever o poste.

O mesmo poste de quando a gente brincava de pique

E de esconder.

Agora ele estava tão verdinho!

O corpo recoberto de limo e borboletas.

Eu quis filmar o abandono do poste.” : Manoel de Barros, Poemas Rupestres .

Já disse, em outro escrito, que o caminhar pelos cerrados, atravessando pequenas cidades, subindo e descendo pela Mantiqueira, instiga o carinho com que carrego as memórias de minha meninice, mas cuidadoso, repito: memórias atravessadas pelo prisma da idade que alcancei, e assim, fico - a todo momento, enquanto caminho - revendo e vendo postes verdes, “cobertos de limo” , repletos de saudades, de inocentes amores, de medos e de orgulhos; quintais onde, meio a bananeiras e pés de mexerica enredeira se misturam galinhas e galos e pintinhos e patos e porcos e leitões e cachorros e, vez ou outra, uma mansa jacutinga e joãos de barro e sabiás laranjeira, todos à espera da comida, aguardando ansiosos e barulhentos – uma sinfonia, dodecafônica a ouvidos mais apurados, mais uma sinfonia – aguardando, repito, o “pritititititiii” da dona da casa, o milho debulhado no avental sendo jogado, esparramado pelo quintal – pri ti ti tiiiiiiiii- e todos avançam ao milho amarelo esparramado ao chão, meio a ciscos e cocôs e penas caídas – céleres e egoisticamente engolindo cada grão como se fosse o último, o quintal se transformando em uma flutuante nuvem de penas e pernas e pius e coins e que que qué; quieto, ainda sem latir, apenas o cachorro vinagre, atento ao olhar e à mão da dona que vai, a qualquer momento, apontar : é aquele ali Lulu e aí, sim, disparado, o esperto Lulu - acatando à ordem - avança e logo tem sob seu peso, preso, o frango carijó de oito meses que cacareja forte, esperneia de medo de ser cozido com quiabo, jiló e com comigo ninguém pode, a faca afiada primeiro abrindo caminho suave estradinha entre as penas do pescoço, e só depois – a estrada amarela meio as carijós penas - alcançar fundo a veia aorta, o pires embaixo para colher o sangue, misturado com o limão para não coalhar e virar galinha a cabidela.

Nas praças das pequenas cidades, quase sempre frente a uma igrejinha bem cuidada e de portas abertas para solitárias orações, os homens velhos se reúnem para conversas: chegam, quietos, em suas bicicletas e vão se reunindo aos outros dois que já chegaram, fazem uma roda à sombra do jacarandá mimoso que protege do sol suas as cabeças – todos cerimoniosamente vão retirando os chapéus, deixando à mostra os poucos cabelos brancos, molhados de suor – e falam de suas bicicletas, do jogo de ontem que viram na televisão e vão se acalmando, se acalmando e ficam de cotó, tiram do bolso traseiro da calça o canivete e o pedaço de fumo goiano, alisam a palha de milho na língua, conversam e picam o fumo, e esfarelam o fumo na concha da mão esquerda, acertam o fumo macerado na mão como uma pequena leira – ou lera? – que é cuidadosamente jogada na palha de milho, já bem alisada com as costas do canivete e com a baba da língua e pacientemente, dedos ágeis, enrolam o cigarro, e agora sim, o pito pronto, sentam confortável no bando de cimento, sob a sombra do pé de jacarandá mimoso, riscam a binga e acendem o cigarro, fortes tragadas, a fumaça branca saindo pelo nariz e continuam a falar da vida, do Seu Barbosa que Deus levou domingo passado e deixou viúva Dona Gertrudes: ainda faceira, diz um; mas que falta de respeito pensar assim; reclama outro: a pobre coitada ainda não saiu do luto e já se fica pensando besteira; mas o que conta é que sou viúvo e sei o quanto é dura essa vida de solidão nas noites; e todos riem, alegres e maliciosos: mais o compadre, ainda tem essas vontades? a idade não acabou com elas?; que nada, compadre, inda padeço de amores e sabores. Mais calado e quieto um senhor alto, magro, camisa aberta ao peito, atento às conversas – percebo isso pelo acenar com a cabeça para baixo e para cima quando aprovava o assunto e balançando de lado quando o que ouvia não lhe agradava o ouvido, discordando com a cabeça, e depois me contou que largou de fumar pito de fumo por ordem médica – o diabo de uma tosse e o doutor me disse que se eu não largasse ia morrer de longa morte sofrida e aquilo me meteu medo – e as mãos acostumadas com o canivete herdado do pai – a folha já gasta, pela metade – com necessidade de se sentirem ocupadas se dedicam a raspar e modelar galhos de goiabeira e de mangueira, tirando as cascas, acertando ângulos e produzindo carrinhos de boi, carrocinhas de carregar leite, cavalinhos que quando prontos oferece, de presente, para a meninada da região, que nos de agora, segundo ele, andam mais é se interessando pelos desenhos da televisão. A tarde toda a praça é ocupada pelos velhos e os brancos alpendres das casas, o vaso com a samambaia de metro – verde, verde – pendurado no teto e ocupando enorme espaço, quase cobrindo a mesinha de ferro pintada de branco e os três banquinhos o chão de ladrilhos brilhando de tão bem encerado, vermelho, sobre a mesa a branca toalha de algodão, xícaras de louça e as velhas ocupam as mãos e as mentes com agulhas de tricô, de crochê, conversam quietas e fabricam sapatinhos e casaquinhos de lã que prontos serão doados para o leilão da creche, bebem elegantemente - o dedinho minguinho para cima - o café coado na hora, comem biscoito de polvilho assado, falam da vizinhança, do padre novo que chegou na cidade e vive a falar no celular, isso é mau exemplo; que isso comadre, deixe o coitado do padre usufruir das modernidades; gosto disso não; mas das conversas da mulheres dava para eu ouvir pouco, apenas quando passava frente ao alpendre e dizia boa tarde e vez ou outra o assunto encompridava: o senhor é peregrino?; sim; está indo praAparecida? sim, estou; reze por nóis lá; rezarei.

A noite a praça é dos jovens e seus celulares: dois rapazes frente a frente, cabisbaixos manipulam com o dedo indicador a minúscula tela: olha só, viu, o Romeu tá saindo com a Marisa, me mandou mensagem agora; e o outro rapaz: verdade, mesmo? sem tirar o olho da tela de seu celular, de onde escuta ou vê alguma coisa e solta uma escandalosa gargalhada – e percebendo o inconveniente da altura de seu riso tapa a boca com a mão esquerda – mas continua sorrindo do barulho estridente: piada suja meu foi aquela mina de São Paulo quem mandou, porra, forte demais, meu, forte demais; no banco de cimento o casal de namorados, as costas pequenas e magras da bonita menina apoiada nas largas e fortes costas do rapaz moreno, também bonito, os pés no banco, cada qual com seu celular, os dedos manipulando minúsculas teclas: você não me ama mais; bobagem, sua, ti amo cada vez +; então pq ficou com a Luiza no baile de sáb?; tudo mentira, fiquei ñ, num fui ao bailei; verdade?; juro por deus nossa sra; me dá um bj?; um bjão amor!