quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Estórias do Ribeira - 1




A necessidade de sair de casa e buscar, sozinho, novos rumos era visceral. Hoje, ao longo dos sessenta anos, bem e mal vividos, talvez - moendo e remoendo – entenda aquela necessidade tão vital. Sei não.
Sei que se procurasse provavelmente encontraria, lá pelos meus lados, um emprego todo engravatado em um banco, talvez em um hotel, ou mesmo – como queria o Cônego Arnaldo - na velha Casas Pernambucanas, que naquela época já reinava em Ribeirão vendendo tecidos que eram a alegria das costureiras.
Não procurei.
Sabia que no litoral estavam precisando de professores e eu havia terminado o curso Normal e o de Aperfeiçoamento. E já me via dando aulas de manhã e passeando, à tarde, por belas praias, talvez pescando, só, feliz.
Fui parar na Delegacia de Ensino de Registro. Lá a promessa do Sr. Manoel – Inspetor de Ensino – da Escola de Emergência do Bairro Lagoa Nova. A vantagem de assumir uma escola de emergência era o contrato anual que ia de fevereiro a fevereiro.
Aceitei.
“Mala de couro forrada...cheirava fedia mal”. E lá fui eu, perto do dia 15 de fevereiro – início das aulas- munido de duas malas e um guarda-chuva. Em Cubatão morava um irmão, Antônio, operador de pesadas máquinas motoniveladoras, que generosamente deu o dinheiro da passagem de Santos a Registro e uns trocados a mais.
Dinheiro curto. A noite, em Santos, enquanto aguardava a saída do ônibus no dia seguinte, se deu na estação rodoviária e na praia. Um pouco ali, um pouco aqui. Sempre de olho, vigilante, carregando as duas malas e o tal do guarda-chuva, que – automático – vez por outra, desobediente, resolvia abrir sem o menor sinal de chuva. E daí a chatice de ter que colocar as malas no chão para fechar o teimoso guarda-chuva ia se repetindo, na calçada da praia ou em escuras ruelas próximas da rodoviária.
Nas malas roupas, alguns livros e os famosos cadernos da Débora: fornecedora dos conteúdos a serem desenvolvidos nos segundos e terceiros anos do antigo primário.
O ônibus Santos- Registro não margeou, como imaginava, mares azuis e praias brancas. Alcançou a Praia Grande, depois Monguanguá, Itanhaém e Peruíbe. Daí se enfiou por uma tortuosa estrada rodeada, como uma ilha, por intermináveis plantações de banana até chegar à BR 116. Apesar da precariedade das estradas e do ônibus chegamos a Registro: eu e mais uns quinze ou vinte passageiros.
Reunião no Grupo Escolar, onde recebemos o “livro” de chamada, pacote para se fazer os “resumos mensais”, a data da próxima reunião de professores foi marcada e, claro, um dedo de prosa naquele contato inicial com os outros professores.
E eu orgulhoso e feliz.
Mas o que quero mesmo contar foi a ida, pela Lancha Sete, de Registro até a triunfal - para mim - chegada na Escola de Emergência do Bairro da Lagoa Nova.
A escola estava localizada a uns vinte e poucos quilômetros de Registro e naquela época do ano – cheias no Ribeira – o acesso só era possível pelo rio.
Assim vamos lá – eu, minhas malas e meu guarda-chuva – para o “porto” de Registro, tomar a Lancha Sete rumo à escola.
O “porto” onde ancorava a Lancha Sete e outras lanchas menores, estas responsáveis pelo transporte da banana na região, era na verdade um prolongamento, um estuário mesmo da Avenida Fernando Costa, principal avenida da cidade e que cortava Registro ao meio.
A Lancha Sete tinha um percurso único: subia o rio ás terças-feiras de Iguape a Registro onde pernoitava e na quarta iniciava o percurso de volta à Iguape. Foi assim, então, que numa quarta-feira, tive meu primeiro contato com a Lancha Sete, serviço de transporte público da antiga estrada de ferro Sorocabana. Era uma grande lancha, com o “mestre” a guiá-la, dois ajudantes, e em épocas de estiagem, descobri depois, contava com o serviço de um “prático” que conhecia todas as malesas do velho Ribeira: seus bancos de areia, seus canais e seus outros segredos.
As nove, ou às oito horas, não me lembro mais, os motores são acionados, a Sete lança seu apito rouco e todos a bordo. Os passageiros, talvez saturados de tantas viagens como aquela, iniciaram logo os jogos de baralho, outros se reuniam para falar da última cheia ou do último jogo...enfim rotina pura. Eu lá a bordo, parado, segurando as benditas malas e o tal do guarda chuva que, não respeitando momento tão solene, ainda teimava em abrir.
Fortes emoções e um leve disparar das pulsações me obrigam a decisões rápidas. Com um barbante arranjado dei um nó e amarrei o teimoso guarda-chuva que junto com as malas foi para um canto perto da cabine do mestre. O momento, para mim, eterno, urgia silêncio absoluto e olhar para todos os lados, tudo observar. Nada se podia perder. O Ribeira, com suas águas cor de garapa seguia largo, margeado por bananais. Tudo novidade. Esperava a surpresa da próxima curva e na vista quase igual, ia descobrindo grandes diferenças. Ou então via e sentia pequenas e sutis diferenças. A altura do barranco, a casinha de pau a pique e o próximo porto. Êxtase puro. A novidade que se aproximava a cada nova curva do Ribeira de Iguape me transtornava. Mudo, só, com um inexplicável orgulho e feliz. Muito feliz.
À margem do cansado Ribeira bambus vestidos com sacos plásticos, imitando uma bandeira, sinalizavam a existência de um porto. A lancha Sete, obediente, manobrava e atracava nestes portos. Alguém descia, às vezes alguém descia e outros subiam, outras vezes sem o sinal, a Sete teimava em manobrar , atracava e os ajudantes deixavam no porto sem bandeira sacos com mantimentos, encomendas, cartas, engradados de aguardentes e muito mais. Em outros portos desciam pessoas que eram carinhosas e recatadamente recebidas. Desciam com seus sacos carregados apoiados pelos ajudantes da Lancha Sete e tomavam logo rumo no meio dos bananais se escondendo da gente e do rio.
Meu futuro amigo, Baiano, puxou conversa e saí do etéreo estado em que me encontrava.
- ”Quer jogar 21?”
- “Não sei”.
- “É fácil, é só contar 21, vamu?”.
Não fui mas perguntei se Lagoa Nova estava longe. Faltava ainda, segundo Baiano, umas dez ou doze curvas. Antes disse, teríamos que passar pelo porto de Guaviruva, do Toshio, do Saito....
Duas horas de viagem já haviam se passado comigo calado, quieto, saboreando cada curva, namorando as águas verdes do rio, olhando as ondas que a Sete fazia no Ribeira balançando canoinhas de pescadores que pareciam ir à deriva.
Paramos em Guaviruva e eu, pasmo e num outro mundo, quase me esqueci de dar um “tchau” para a Kioka, professora da escola daquele bairro e que se tornaria minha protetora em futuras disputas profissionais e amorosas. Depois do Guaviruva, só mais umas quatro ou cinco curvas, dizia o Baiano. “Logo a gente chega”, dizia, creio que face a abusivas mostras de ansiedade que eu – sem saber - demonstrava.
- “É ali”.
No porto não havia o bambu embandeirado com o saco plástico solicitando a parada. De tanto pedir informações, tanta ansiedade, não só o mestre mas toda a lancha sabia que era ali onde eu deveria descer. A Sete manobra, encosta e desço com minhas malas e meu guarda-chuva.
A escola em frente, a uns trinta metros do rio, separada apenas por uma estradinha. Coloco as malas e o guarda-chuva no chão batido da estradinha e fico indeciso sobre se olhar para frente e ver a escola ou se para trás e ver a Sete partir.
Estava ainda ali parado, calado, mudo quando - naquele tempo sem Internet, nem mesmo telefone havia por lá - do nada surgiu um japonezinho:
- “É o professor? A chave da escola.”
Saí daquele estado de indefinido torpor, apanhei a chave e abri a escola. Que era também minha casa: uma cozinha com um fogão de lenha, uma salinha e um minúsculo quarto com uma cama e colchão meio aos pedaços, e claro, a sala de aula.
Era a concretização da Escola de Emergência do Bairro da Lagoa Nova. Eu abri as janelas e vi em cada uma um novo ângulo, uma nova paisagem, um novo mundo. Na da frente o rio, na de um lado o imenso bananal, de outro ao longe uma azul montanha...Tudo muito quieto, nada de casa ou gente por perto ou pelo menos à vista.
- “Pai tá chamando professor para almoçar”.
Do nada surgia, mais uma vez, o japonezinho futuro aluno do terceiro ano.
Ao almoço na casa do sr. Seishum, pai de Mário o tal do japonezinho. Enquanto comia e falava de onde vinha era alvo de curiosidades. Olhares espertos me fiscalizavam entre as aberturas das portas, ou mesmo, entre os vãos das tábuas que separavam os cômodos da casa. Seria lá o local onde faria minhas refeições. Acertado e combinado voltei para a escola.
Munido outra vez de um orgulho indescritível e emocionado entro em “casa”, passo em revista todas as janelas e respectivas paisagens; e em uma reverência maior paro, dentro na sala de aula, frente à porta aberta para a futura entrada dos alunos. Numa premonição, antevejo o dia seguinte, onde, naquele mundo sem Internet, telefone e jornal, as crianças irão surgir pela estrada beirando o rio, pelos corredores dos bananais ou de canoa atravessando o Ribeira. Virão quietas, desconfiadas, com suas sandálias havaianas presas nos dedos das mãos. Chegando no “porto” da escola lavarão, no rio, os pés para calçá-las. Aí vou agrupá-las nas três seções do primeiro ano que ocuparão as fileiras da esquerda, o segundo ano as filas centrais e o terceiro ano na última fila à direita. Incorporava minha autoridade de professor, já tomava importantes – pelo menos para mim - decisões e muito feliz fazendo jus ao salário que após alguns meses de atraso receberia e que eu achava alto e bom.
Passado o êxtase revejo mais uma vez cada uma das paisagens em cada uma das sete janelas. Vou para a frente da escola até o rio e recordo a viagem de lancha.
Volto para dentro e enquanto a luz do dia favorece coloco querosene na lamparina que irá fornecer luz à noite.
Fica claro a solidão que me rodeava. Seria a primeira noite longe de tudo e de todos.
Será que vou ter medo?

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

1968: A torre do Banespa x 2008: a torre do Santander.



Homenagem ao "ARQUIVO 68”

Como disse no “intróito” deste blog o ARQUIVO 68 foi, de verdade, “meu” primeiro blog. Assim antes que este ano de 2008 termine, e parece que o fará rapidamente, quero homenagear aquele blog transpondo para o OFÍCIO: CONTADOR DE HISTÓRIAS um texto especialmente escrito para o ARQUIVO 68.



"1968

Foi em 1968 que iniciei, em São Paulo, minha participação junto a um movimento operário de Osasco, do qual Sérgio, meu colega de curso, era uma das lideranças. Era um grupo pequeno, formado por representantes de diferentes fábricas da cidade, e seus participantes não ficavam implicando e nem mesmo nos questionando pelo fato de sermos professores e não operários: éramos, simplesmente, aceitos como trabalhadores.
Suas principais lideranças eram vinculadas ao Partido Comunista Brasileiro e o grupo buscava desenvolver ações não só nas fábricas, mas, também em favelas, clubes de futebol. Dava para sentir, em seus participantes, uma certa “birra” com o pessoal do movimento estudantil: “filhinhos de papai, que não agüentam um “pum” do Fleuri”, diziam.
Dois “quadros” que pertenciam ao grupo haviam sido presos durante ações de mobilização, em suas respectivas fábricas, e a principal discussão que ocorreu, naquela reunião de domingo à tarde, foi relativa a como denunciar “a toda a sociedade, a prisão de nossos companheiros.”
Uma das ações propostas, e aceita, foi a de imprimir panfletos, relatando o acontecido, e “soltá-los” da torre do Banespa, no centro de São Paulo. Sérgio foi designado o responsável pelo planejamento e operação desta ação.
- “Topa?”
- “Sim, topo.”
À época, usávamos umas bolsas feitas com plástico grosso e zíper: eram nelas que carregávamos nossas apostilas, livros e cadernos. Numa manhã da semana seguinte, eu aguardava pelo Sérgio, em frente aos Correios, com minha bolsa recheada, não pelas apostilas e cadernos de sempre, mas por dois pacotes de panfletos impressos, em papel vagabundo, em Guarulhos. Haviam sido trazidos pelo Sérgio, um dia antes, e passados para minha “guarda”, no banheiro da escola onde estudávamos. Sérgio me encontrou em frente aos Correios e trazia, em sua pasta, duas garrafinhas com meio litro de álcool cada, o suficiente para encharcarmos os pacotes de panfletos e deixá-los no parapeito da torre: a evaporação do álcool e o vento se encarregariam do resto. “Deus queira, pensava eu”, ansioso.
Chegamos, juntos, ao hall do Banespa e anunciamos nossa intenção de visitar a torre, para “ver São Paulo inteira, lá de cima”. Por causa do sotaque caipira, fui o porta voz:
- “Somos do interior e estamos passeando aqui...Meu primo, que trabalha no Banespa, em Botucatu, foi quem nos orientou para este passeio. Ele disse que é lindo.”
- “Como se chama seu primo?”
- “Paulo, trabalha no Banespa lá de Botucatu.”
Lá fomos nós. Utilizamos um silencioso elevador, até o vigésimo-sexto andar, onde aguardamos, no amplo hall, um outro, que nos levou até o trigésimo-segundo. Dali, “a pé”, subimos dois ou três lances de escada e alcançamos a torre.
O dia estava nublado e havia duas pessoas visitando a torre: “tomara que saiam logo”, pensava eu, nervoso.
A bolsa com os panfletos pesava...
Fomos, Sérgio e eu, para o lado que avistava a Zona Sul e conversamos um pouco, na tentativa de nos acalmarmos mutuamente. De lá, com o rabo do olho, vimos que os dois outros visitantes iniciaram a descida, pelas escadas.
Imediatamente, iniciamos nosso trabalho: retirei um dos blocos de panfletos da bolsa e o encharcamos, rapidamente, com álcool, deixando-o no parapeito da parte sul da torre; o outro bloco ficou, também encharcado, na parte norte.
Guardamos as garrafinhas de álcool, uma delas com algum conteúdo, e iniciamos a descida, pelas escadas. O cheiro de álcool, na bolsa do Sérgio, era forte, o que nos levou a um banheiro, no trigésimo segundo andar, para jogar, em um vaso sanitário, o conteúdo restante. Demos descarga e Sérgio aproveitou para molhar o rosto e pentear seus cabelos crespos.
Tomamos o elevador para o vigésimo sexto andar e, no hall, ficamos aguardando por outro, que, finalmente, nos deixaria no térreo. Aqueles segundos, ou minutos, de espera, no hall do vigésimo-sexto andar, pareciam horas: o elevador nunca chegava e o tempo não passava. Minhas axilas estavam molhadas e pequenas gotas de suor corriam pelo peito, sob a camisa, fazendo uma coceirinha gostosa. Aí entendi porque Sérgio havia molhado o rosto e os cabelos: seu rosto e peito eram puro suor.
Chegou o elevador, que nos deixou no térreo e, logo depois, aguardávamos, no Anhagabaú, a “tempestade” de panfletos que denunciaria, a toda a sociedade progressista de São Paulo, a prisão de nossos companheiros. Por segurança, nós nos separamos e fiquei em frente aos Correios, “vigiando” a zona norte da torre.
Nada!
Naquele momento, o sol aparecia, forte, sob as nuvens, e a neblina ia, aos poucos, sumindo... “Será que colocamos álcool demais? Por que está demorando tanto a evaporação? Será que falta vento? Deus do céu, ajude-nos”, pensava.
Foi aí que Deus resolveu ajudar e o “milagre” ocorreu: não uma “tempestade” de panfletos, mas uma “garoazinha” de papéis caindo no Anhangabaú. Algumas pessoas pegavam, outras, distraídas, ignoravam.
A ansiedade havia passado e eu me sentia confortável.
Resolvi, então, caminhar pelo Anhangabaú, apanhar, distraidamente, um panfleto e ler, demonstrando surpresa e indignação.
Puxei conversa com um senhor que havia me visto apanhando o panfleto:
- “Nossa!!! Está “falando” que tem dois operários de Osasco presos, aqui no Dops”; eu disse, ao mesmo tempo em que lhe ofereci o panfleto.
Procurei acompanhá-lo durante a leitura. Leu rapidinho, só o acompanhei por uns dez passos, e com ares de desinteressado, me devolveu e não disse nada além de:
- “Não jogue na rua, para não emporcalhar ainda mais a cidade.”
Desconcertado, apanhei o papel de suas mãos e guardei em minha pasta, agora vazia.
Encontrei-me com o Sérgio, perto do Mappin, em um ponto de ônibus, no qual tomamos o “929 – Largo da Concórdia – Cidade Universitária –” e fomos, com a alma leve, assistir às aulas do nosso curso de Especialização para Professores de Quinta e Sexta Série.

2008.
No hall do Santander, há, agora, além do lustre de cristal que, segundo o panfleto colorido que apanhei na recepção, “se destaca, com 13 metros de altura, 2 metros de diâmetro, 900 lâmpadas, 10 mil peças, pesando cerca de 1,5 tonelada” , uma exposição permanente de obras de arte.
Correntes com elos de plástico amarelo formam um corredor para organizar a fila dos interessados na visita à torre. Entro na fila que tem, à minha frente, quatro ou cinco pretendentes, como eu, à visita. Antes de chegar a minha vez de ser atendido, percebo que, a todos, será pedido um documento de identidade, que uma ficha será elaborada e que a atendente, manipulando uma camerazinha minúscula, solicitará que se coloque o rosto em determinada posição para a fotografia. Para um rapazinho que estava pouco à minha frente, é solicitado que deixe sua mochila na chapelaria.
Retiro, de minha mochila, a carteira de motorista e entrego-a à atendente, em resposta ao seu pedido de “um documento de identidade, por favor.” Depois, tive de fornecer o número de meu telefone residencial e obedecer ao “olhe para câmara, por favor, vamos fazer uma foto do senhor.” Obedeço, sorridente: gosto de sair sorrindo em fotos.
- “A mochila, senhor, por favor, queira deixá-la na chapelaria.”
- “Gostaria de levá-la comigo: tem meus documentos, meu celular e, também, dinheiro.” Na verdade, o que havia de importante na mochila era um exemplar do Sentimento do Mundo, da Coleção Grandes Escritores Brasileiros, da Folha de São Paulo, do mineiríssimo Drumonnd, comprado, há pouco, em uma banca...
- “Não pode, senhor. Questão de segurança. Tire dela o que o senhor quiser, e pode deixá-la em nossa chapelaria; é superseguro.”
O que eu queria, de fato, era testar a possibilidade de visitar a torre com minha mochila e, como todo velho chato, continuo:
- “Mas...”
- “Por favor, senhor, não insista, veja a fila que está se formando atrás do senhor.”
Deixo minha mochila e recebo uma senha para retirá-la na volta: “E o que faço com meus panfletos?”, penso.
Enfrento outra fila para aguardar a autorização para subirmos, o que só ocorreria quando o grupo que está na torre descer, segundo nos informa a moça de uniforme preto e revólver na cintura.
- “Está liberado, senhores...é só seguir a segurança, por favor.”

No elevador que nos levará até o vigésimo sexto andar, uns dez interessados na visita: duas venezuelanas, com sua guia, o rapazinho da mochila, um casal de rapazes falando inglês que, aproveitando o aperto do elevador lotado, se tocam e se olham de maneira apaixonada.
Como há quarenta anos atrás, no vigésimo sexto andar, temos que ir para o hall e aguardar outro elevador, que nos levará até o trigésimo segundo andar. Aproveito para folhear o panfleto que havia recebido no hall de entrada, colorido, com fotos e informações: a altura da torre é de 161 metros, é possível avistar de sua altura até quarenta quilômetros, foi inaugurada no dia...
Chegamos ao trigésimo segundo e me recordo do hall. Outra espera até que o grupo que está na torre desça. Aproveito para visitar o banheiro, onde, há quarenta anos, fizemos, Sérgio e eu, “xixi” de álcool.
Todos assinam um “livro de presença”, onde descubro a nacionalidade das venezuelanas e a do simpático casal de jovens ingleses.
Uma outra segurança, morena bonita, também com seu uniforme negro e revólver na cintura, dá a ordem:
- “Podem subir, senhores...boa visita.”
Aguardo todo o grupo: quero ser o último a subir os três lances de escada
A torre continua extremamente igual: suas pastilhas cinzas e o seu guarda corpo largo, tão adequado para acolher panfletos embebidos com álcool e sonhos...a cidade enorme, agora não muito estranha para mim, lá embaixo, e o barulho rouco de seus carros, de suas pessoas...
Deixo o grupo com o seu emaranhado de comentários: “olha ali..é o Copan?, veja o mercado municipal, it´s beautiful, mui lindo”...e desço para o triogésimo segundo. Ali, nova espera: não posso descer só para o trigésimo segundo andar, tenho que aguardar o restante do grupo, me informa a linda segurança, com seu uniforme negro e seu revólver na cintura. Ela me oferece uma cadeira, que aceito e onde sento e releio o panfleto colorido.
A bela segurança fala ao rádio, com sua colega da torre:
- “Horário de visita encerrado, peça ao pessoal que desça, câmbio.”
A resposta vem rápida:
- “Pessoal descendo, câmbio.”
- “TKS”.
Fomos autorizados a descer até o trigésimo segundo andar. No hall, outra vez em fila de espera, até ouvirmos, com um bonito timbre, da segurança: “por favor, senhores, podem tomar o elevador. É só seguirem a segurança: muito obrigado pela visita.” O mesmo ritual de fila, espera e rádios de comunicação, com seus “câmbios” e “TKSs”, se repete no vigésimo sexto.
No térreo, a outra segurança e seu revólver, também bonita, mas não tanto quanto a do trigésimo segundo nos pede, com voz calma, que lhe entreguemos os crachás.
Vou até a chapelaria e retiro minha mochila vazia: sem panfletos, sem sonhos... só o Sentimento do Mundo, do Drumonnd.
Vou até o prédio dos Correios, agora, totalmente reformado, lindo, à espera de uma tempestade ou, mesmo, de uma garoazinha.
Nada....
Na boca, um gosto amargo de derrota: minha geração fracassou. "

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O fim do mundo e outras histórias.




Nos tempos de hoje – viagens a Marte, desclassificação do Plutão, e-mails e até sexo virtual - não têm mais cabimento aquelas antigas histórias do fim do mundo, dos meus tempos de criança, quando cursava o primário. Eram tempos em que o mundo costumava se acabar, no mínimo, umas duas vezes ao ano. Não se sabe de onde surgia a notícia. Morrendo de medo e, aí sim, com um sério motivo para faltar à aula, tínhamos, mesmo assim, que ir, temerosos e meio na marra, para a escola. No caminho e no recreio, o assunto era um só: o mundo ia acabar.
Morria de medo.
O mundo, quase sempre, ia acabar em fogo ou em água e eu, que nem nadar sabia, já me via sendo engolido por um mar de águas sujas, barrentas, que vinham lá do alto da serra inundando tudo, a tudo matando: cavalos, bezerros, cobras, cabritos, gente. As casas se desmanchavam ao furor das águas ou do fogo. Só restava rezar.
Nós nos juntávamos em uma roda, discutíamos e votávamos as nossas preferências: seria melhor o mundo acabar em água ou em fogo? Eu votava em um desses modos do mundo acabar mas, logo ao primeiro argumento, já mudava de idéia; e, volúvel, mais uma vez, mudava meu voto, que, logo em seguida, já era outra vez mudado...assim infinitamente. O que eu não queria, mesmo, era morrer.
O salto do antigo primário para o ginásio era súbito e radical. Tínhamos que abandonar as calças curtas, o carinho e os cuidados de uma só professora para encarar um montão de bravos e sérios professores, cada qual cuidando de sua matéria, pouco interessados, indiferentes, mesmo, para saber e comentar se o nosso caderno estava sujo, se a nossa letra estava feia ou bonita, se as “orelhas” no canto do livro estavam em demasia; enfim, uma mudança das bravas.
De bom nisso tudo eram as aulas de educação física, nas quais se jogava futebol, os cigarros que fumávamos escondidos, no pátio, os desfiles de sete de setembro, e a delícia que eram as folgas entre as aulas, quando faltava um professor. Nada de professor substituto, como no Grupo Escolar: era folga mesmo e das boas.
Foi numa dessas folgas que o fantasma do fim do mundo, que andava tão esquecido e fora de moda por ser coisa de criança de Grupo, voltou a atacar.
Vou contar.
Do pátio do Ginásio Estadual, onde estudava, dava para ver a linha de trem da antiga estrada de ferro da Mogiana. Antes das aulas, ou durante os seus intervalos, vigiávamos a Maria Fumaça, que chegava trazendo - ou não, o que era melhor - os professores que vinham da cidade vizinha para nos ensinar. Todos, professores e professoras, vestidos com um guarda-pó para proteger os ternos e os vestidos e blusas das faíscas expelidas pela furiosa Maria Fumaça. Aqui, quero contar algo que nada acrescenta a esta história, mas que vale a pena: até hoje, ao ouvir o Trenzinho do Caipira, do Villa, vêm fortes, coloridas e barulhentas as antigas imagens do trenzinho da Mogiana. Dá uma saudade gostosa de seu passar, choc, tchoc, choc, tchoc..., e de seu longo e lastimoso piuiiiiii.... Uma vez, na comemoração do Dia das Mães, não sei se planejado ou não, o sr. Godinho, nosso professor de Canto Orfeônico, tocava uma variação para violino desta ária, quando lá vem a Maria Fumaça, que, pouco se importando se a partitura a contemplava ou não, incorpora à peça o seu gracioso piuiiii fumacento e o seu tchock, tchock das pesadas rodas. Emoção a ponto de, envergonhado, enxugar com a manga da camisa as lágrimas que, teimosas e independentes de meu querer, corriam rosto afora. E voltando ao principal da história, como dizia antes, ficávamos vigiando a passagem do trem para ver se haveria ou não a deliciosa, para nós, falta de algum professor. Pois, justamente naquele dia, a nossa Maria Fumaça não trouxe a bela e morena professora de Geografia: dona Maria Euzébia. O nome, hoje para muitos estranho, na época, era doce. Ela era, longe longe, a mais bela de todas as professoras. “Vamos folgar a segunda aula; dona Maria Euzébia não veio”. E enquanto estávamos aguardando, ansiosos pela folga - pensando nos cigarros que fumaríamos, escondidos, nas piadas, na combinação do próximo jogo de futebol, entra na sala o Sr. Carlos, inspetor de alunos:
- “O Dr. Paulo ordenou que é pra vocês ficarem na classe. Ele virá até a sala daqui a pouco.”
- “Mas a dona Maria Euzébia faltou e agora é aula de Geografia”, rebateu Jaime, o único entre nós a ter coragem de contrariar ordens e enfrentar o Sr. Carlos, que, solene:
- “Sr. Jaime, o Dr. Paulo, diretor deste Ginásio, virá aqui e ordenou que é para...”
Não deu tempo de terminar: o diretor, dr. Paulo, em seu impecável terno de linho branco, entra na sala. Nós o recebemos, disciplinadamente, de pé. Hoje, penso que o respeitoso costume de receber autoridades de pé deve se restringir aos músicos, à entrada dos maestros.
Voz calma e grave:
- “Podem sentar”.
Sentamos.
O Dr. Paulo era secretário concursado do Ginásio e sempre que, por transferências ou sei lá porque, a escola ficava sem diretor, ele assumia a vaga. Uma vez, candidatou-se e se elegeu prefeito da cidade: construiu uma linda fonte luminosa na praça em frente da igreja, aumentando o prazer e a beleza do “footing” das noites de sábado. Naquele tempo, tanto para mim como para os meus amigos - de escola, de brinquedos, de jogos e, também, de brigas - havia duas palavras que só dizíamos em voz baixa e das quais morríamos de medo: comunista e maconha.
O Dr. Paulo, diziam, era comunista: prova disso é que não ia às missas de domingo.
Voltando, mais uma vez, ao assunto: sentamos e aguardamos. Resumindo o que ainda hoje recordo, lembro-me, perfeitamente, de que ele prometeu, entre outras coisas, voltar para falar conosco sempre que algum professor faltasse e que, nessas conversas, trataria de assuntos práticos, modernos e “necessários às pessoas de nossos tempos.” Isso lá pela década de cinqüenta e naqueles cafundós do interior: - “pessoas de nosso tempo” - achei bonito.
Também me lembro, e isso, sim, tem a ver com a história, quando, muito calmo, voz pausada e clara, disse ele:
- “Imaginem se o mundo acabasse hoje; e se vocês, cada um de vocês, ficasse - como gostam de dizer - para a semente. Só. O que ficasse vivo, para a semente, depois do fim deste mundo, com certeza se lembraria: no mundo de antes tinha eletricidade; era bom, útil e...o que vocês sabem de eletricidade? vocês saberiam desenvolver uma usina para produzir eletricidade?”
Não sabia e tinha lá meus consolos: pelo menos em casa, só se usa energia para acender as luzes na hora em que escurece; não tínhamos geladeira e outros que tais. Assim, acabando o mundo, e fosse eu o escolhido para ficar para a semente, sentiria muita falta das lâmpadas acesas ao anoitecer. Já o Antônio Henrique sentiria a falta da geladeira e seu pai, dentista, sentiria uma falta enorme: como girar aquele motorzinho dolorido de curar e fazer doer dentes, sem a energia? Mas... talvez eles, se ficassem para a semente, soubessem produzir energia. Eu não. Sabia fazer fogo como os índios: esfregando um pauzinho no outro; mas, gostaria de, ficando para a semente, achar uma grossa lente de óculos, pois já tinha treino de colocá-la entre a luz solar e os tocos de cigarros para, com sucesso, acendê-los e, gostosamente, fumar.
Um outro assunto que o Dr. Paulo tratou naquele dia e que me marcou, não sei porque, foi da necessidade de economizar água. Também isso nada tem a ver com o que quero mais contar, mas, como me recordo bem disso - chego mesmo a lembrar do timbre da voz do circunspeto diretor - não posso deixar de lado. “Não se deve deixar a torneira aberta enquanto se escova os dentes.” Passei a acatar. O engraçado é que, há pouco, lendo um artigo de um colunista da Folha de São Paulo, o mesmo disse ter o mesmo hábito: economizar água ao escovar os dentes, lavar o rosto e se barbear. Este hábito lhe rendeu, entre seus amigos, a fama de “ridico”. A palavra, que há tanto tempo eu não ouvia ou lia, me transportou àqueles tempos e, sem o Aurélio por perto, fico a pensar se o mesmo a contempla. Caso não contemple, vão aqui, então, alguns sinônimos meio chinfrins para ridico: pão duro, munheca, mão de vaca.
Aqui, um comentário paralelo: minha mulher e minhas filhas, nesta parte da história, já estariam bravas de tanto eu mudar de assunto, o que, às vezes e segundo elas, faz com que eu me perca e, de tantos rodeios, fuja do principal, do que eu quero mesmo contar. “Você se perde de tanto dar voltas”, dizem elas; e é verdade, mas já me acostumei.
Para não perder o costume, então, sei, também, e isso é importante e não posso, mesmo, deixar de falar aqui, que foi a partir daquela aula, ou conversa como dizia o Dr. Paulo, que passei a ter coragem de não ter mais medo de comunista. Quando rapazinho, tive medo, de novo, por pensar que católico, como era, não podia ser comunista. E aí fui salvo pela JEC – Juventude Estudantil Católica: dava sim, dizia Cônego Angélico, para conciliar. Ainda bem, pensava: queria muito ser comunista. Hoje, fico a pensar se um velho ateu pode acreditar em comunismo; acho que não, mas não importa.
Agora, voltando, mesmo, ao fim do mundo. Eu havia, em uma saída para caçar passarinhos, machucado e cortado um pé, que ficou inflamado e dolorido. Naquele dia, estava muito vermelho e inchado. Um amigo meu, o José Américo, havia, há pouco, morrido de tétano por um ferimento com prego no pé.
Naquela noite, fui deitar com o pé doendo muito e com medo de morrer, do mundo acabar, de ficar para a semente.
E foi assim que o mundo acabou.
De repente, eu estava no pico do Morro do Cruzeiro e, daquele alto imenso, via, vindo dos lados de Franca, onde o sol nasce, uma bola de fogo alta e vermelha e, do lado de Jeriquara, onde o sol se esconde, uma bola d´água imensa, enorme, azul. A bola de fogo e a de água vinham ao meu encontro e eu quis correr e fugir: corria, corria até cansar, e não conseguia sair do lugar, com o fogo e a água cada vez mais próximos. Envolveram-me completamente e, aí, eu morri: o mundo acabou.
Logo que morri, mas também tinha ficado para a semente, eu estava em uma campina infinitamente verde, plana, sem nenhum monte, morro, nada...só plano e mais plano. À minha frente, a cerca de uns duzentos metros, uma mula preta. Resolvi montá-la e foi então que adivinhei que só conseguiria se a chamasse pelo seu verdadeiro nome. Quis gritar um primeiro nome: “Taturana” – que era o nome de uma égua muito amiga minha, e aí foi que percebi que naquele mundo dos mortos não havia voz. Tudo era mudo. Só tinha pensamento. Tinha que pensar forte: pensei Taturana e a mula não respondeu. Pensei Negra, por causa de sua cor, mas ela não respondeu. Negra podia ser apelido, não o nome. Pensar cansava muito e eu chegava a suar para poder pensar forte, porque era preciso. Mudei o pensamento para Rifaina, por causa do lado em que ela estava, e a mula não se moveu. Cansado e suado, porque pensar cansava por demais, pensei Restinga e ela veio doce e obediente.
Montei.
Restinga me conduziu e fomos para a Venezuela. Chegamos e vi que a Venezuela era uma infinita seqüência de morros verdes, com a relva cerrada e nenhuma árvore. Cada morro seguia o outro com uma beleza que encantava. No céu azul, nuvens brancas, estrelas, o sol e a lua: tudo de dia, porque não havia noite e eu não sentiria falta da eletricidade. Uma hora - eu já havia envelhecido e estava com barbas brancas, feito as de Deus naquele quadro que havia na igreja do mundo dos vivos que eu freqüentava - olho para o horizonte e vejo que o último morro verde, lá do fundo, começou a mudar de cor e a crescer, se transformou em uma bola gigante, enorme, e que rolava em nossa direção. Quis outra vez gritar, mas não havia voz naquele mundo dos mortos: pensei forte na necessidade de mudar de direção. Pensei e Restinga obedeceu.
Mudamos do norte para o sul, do leste para o oeste, quando, de repente, às nossas costas, veloz, correndo a nos perseguir, aparecia, agora, o capeta, o demo, a “coisa”, com uma capa enorme, igual à do super-homem, balançando ao vento; o garfo tridente de ferro - vermelho de tão quente - e os chifres soltando fumaça de enxofre. Não conseguia mover as mãos para fazer o sinal da cruz para o capeta, com medo de Deus, fugir. Pensei forte o “em nome do pai, do filho...” e o capeta não desaparecia, ria alto da prece e se aproximava com a capa balançando e chacoalhando. O chocalhar da capa contra o vento fazia um barulho forte, como de asas de passarinho se batendo. Pensei: “Pai Nosso que estais no Céu...” nada.
Restinga, minha mula, sumiu e eu fiquei sozinho no alto de um morro, sentado em um monte de cupim, com o capeta perto, muito perto. O barulho da capa aumentava: queria gritar mas não dava. Suava de tanto calor que a quentura do tridente do capeta me passava. Pensava forte “Deus nosso senhor Jesus Cristo”, para a “coisa” desaparecer, mas nada; só o calor do tridente e de seu corpo perto de mim é que aumentava. O capeta estava muito perto, sua capa balançava e fazia barulho cortando o vento. Eu estava muito cansado e suado de tanto pensar. Vou morrer.
Morrer não dava porque já havia morrido. Então o que?
Minha mãe e minha irmã acordaram com os gemidos e vieram ao quarto. A luz da sala ao lado foi acesa, espantando o passarinho preso na gaiola, que, assustado, batia com força suas pequenas asas, cortando o vento e fazendo um barulho seco igual ao da capa do diabo. Eu me sentia febril e com sede. Minha mãe me deu água doce e pôs uma folha de beladona quente no ferimento de meu pé.
Desmorri.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

O primeiro soutien!




O primeiro soutien.....

...a gente nunca esquece.

Lembra dessa propaganda? Premiadíssima no Brasil e, parece, também fora do país, era de uma delicadeza só. Há muitas, na verdade, há um montão de “primeiras vezes” que a gente nunca esquece.
Eu, por exemplo, não consigo, nem quero, esquecer a primeira vez em que vi o mar...

Foi assim:
Tinha lá meus dezessete anos, morava no interior, em Ribeirão Preto, estava prestes a me formar professor primário e cuidar da vida. Tinha um irmão, o Antônio, que trabalhava em Cubatão, na Cosipa, operando aquelas pesadas e desajeitadas máquinas motoniveladoras. Era meu padrinho de crisma e tinha uma alma boníssima.
Em suas visitas a Ribeirão, conversávamos muito e ele havia prometido me levar, qualquer dia daqueles, para ver o mar, em Santos. Finalmente, o dia chegou. Numas férias de dezembro, tomamos ônibus da Viação Cometa com destino a São Paulo, e, de São Paulo, também de Cometa, fomos até Cubatão, onde ele morava. Eu, excitadíssimo, pois, finalmente, iria matar a vontade, segundo ele, meio boba, de ver o mar:
- “Não tem nada demais, é um montão d´água. Bom mesmo são as mulheres quase peladas que tem por lá, tomando banho”.
Eu, mais interessado no tal montão d´água:
- “Maior que o Rio Grande?”
- “Muito maior, sem comparação; não se vê o fim”.
- “Deve, então, ser igual ao Amazonas, que tem lugar onde não se vê a outra margem, de tão grande, isso eu vi nos livros de Geografia”.
- “É, mas a água é salgada.”

Esta história da primeira vez em que vi o mar tem, dentro dela, um monte de outras “primeiras vezes”. Explico: foi também a primeira vez em que viajei em estrada de pista dupla, pela antiga e velha Anhanguera, que, naqueles tempos, tinha pista dupla de Campinas a São Paulo. Inesquecível, para mim, aquela noite: uma pista, a do nosso ônibus, com as luzinhas vermelhas dos carros que iam e, do outro lado, separada por um canteiro, a outra pista, com os faróis amarelos dos carros que vinham. Meu irmão dormia e eu, muito aceso, encantado com tantas luzes e com a beleza daquela estrada.
Foi, também, a primeira vez em que vi São Paulo. Lembro-me de como estava a Avenida São João, naquela madrugada meio escura, com as lâmpadas acesas, e uma garoazinha que, parece, hoje, não tem mais.
Claro, foi a primeira vez, também, em que, de ônibus, desci a Anchieta com destino a Cubatão. Além da pista dupla, naquela viagem com tantas novidades, inimaginável a sensação de descer a Anchieta; o ônibus lá naquelas alturas, a gente tudo vendo abaixo: os vales, as curvas, pequenas cachoeiras e, me lembro, uma enorme garrafa de Tatuzinho lá “embaixão”, entre as árvores, no meio da mata. Numa época em que o verde e o ecologicamente correto ainda não eram alvos de sérias preocupações e bandeiras, aquela garrafa de pinga, do tamanho de uma casa ou maior ainda, plantada junto às árvores, lá no meio da mata, era um encantamento e uma magia só.
Chegamos a Cubatão, onde meu irmão morava em uma pensão “para homens”: todos trabalhadores braçais, a maioria migrantes do nordeste ou do interior de São Paulo, como meu irmão. Lá, ganhavam a vida e viviam, jogando muita sinuca, baralho, bebendo pinga com cinzano e freqüentando a zona de meretrício, na cidadezinha de Piassaguera: “mais barata que a putas lá de Santos”, que, segundo eles, eram muito chiques e careiras, mas, “tão bonitas que nem putas parecem”.
Chegamos no domingo, na hora do almoço, e, na segunda, logo de manhãzinha, fui enfiado no caminhão de peões que ia para a Cosipa. No meio do caminho, em Casqueiro, atendendo a um sinal que meu irmão fez, o motorista parou o caminhão e o Antônio me orientou em como fazer para chegar à praia:
- “Aqui você desce, toma logo um ônibus para Santos; peça para o motorista te deixar na praça perto da rodoviária e, de lá, toma um outro ônibus escrito Praias.”
E me deu uns trocados. Fiz tudo direitinho e deu tudo certo; certo até demais: da rodoviária para a praia, tomei não um ônibus igual ao que estava acostumado em Ribeirão, mas um trolebus, que me fez sentir importante e crente que fazia o que havia de melhor. Eu lá naquele trolebus todo aberto, sem paredes e com o cobrador batendo um martelinho nos ferros, fazendo barulho - Plim! Plim! Plim!, cobrando as passagens.
Assim, nesta coleção de “primeiras vezes” que acompanha a primeira vez em que vi o mar, teve mais esta também: a primeira vez que andei de trolebus. E eu, de tão encantado com aquele ônibus sobre trilhos de trem, com os olhos e ouvidos curiosos por aquela cidade tão nova, não percebia que tudo se passava tão depressa; sem mais nem menos, estava em uma avenida em frente à praia do Gonzaga.
Desci.
O mar enorme em minha frente.
Atravessei a avenida e me preparei.
O mar, enorme, tocando o céu lá no fim...sem limites de tamanho, sem a margem do outro lado, como o Amazonas. Nunca tinha visto nada tão grande assim.
Sob as calças, o calção de banho que minha irmã havia feito para mim. Tirei os sapatos, a calça e a camisa, dobrei-as cuidadosamente, fiz com elas um pacote, que coloquei junto à guia da calçada, na areia do mar.
Ainda era muito cedo: na praia e no mar, eu e minha trouxinha de roupas, mais ninguém.
Deixei meu pacote na beira da calçada e fui caminhando pela areia, em direção ao mar. Na frente, aquele infinito de águas. A todo momento, voltava o olhar para vigiar meu pacote de roupas, que ia ficando menorzinho, lá longe, longe...
As espumantes e mornas águas do mar tocaram meus pés.
No interior, para os que já tinham ido ao mar e para os que, como eu, nunca tinham ido, o que se falava, e era dado como certo, era que as ondas deveriam ser puladas: senão, era tombo na certa, com possíveis afogamentos e outras mazelas.
Será que é mesmo salgada, a água? Uma vontade louca de experimentar!
Coragem!
Pés na água: batismo de fogo!
Enfim, era o nunca visto mar, o Oceano Atlântico dos livros de Geografia, o marzão de Deus, que não tinha fim, logo ali na frente, encostado, ao meu alcance, real.
Tudo de verdade, não se via,mesmo, o fim: incrível!
As primeiras ondas, hoje sei que ridiculamente pequenas, com seus vinte ou trinta centímetros, eram mais do que puladas: eram, rigorosamente, saltadas. Devagarinho, e sempre pulando e saltando todas, a coragem só deu para ir até ficar com a água na altura dos joelhos. Mesmo pulando todas as ondas, com medo de me afogar ou de ser por elas levado não sei para onde, dava tempo para ver o mar sem fim no horizonte; ao lado, uma ilha que, depois, descobri que era a Pochat; em arroubos de coragem, olhava para trás e, à procura de minha trouxa de roupas, via prédios tão altos, de muitos e muitos andares, difícil até de contar, lindos, coloridos.
Estava lá, com a água na canela, pulando corajosamente as ondas, até que chega
à praia um senhor, meu futuro amigo de praia, o Seu Mário, de Sorocaba, que
estava de férias por lá. Já vinha de calção e percebi que foi calmamente
caminhando pela água, atravessando, e não pulando, as pequenas ondas até ter a
água na altura dos peitos.
Tudo que ele fazia eu, por perto, imitava.
Foi assim que aprendi a delícia de mergulhar e furar a onda, a gostosura de boiar e ela me carregar devagarinho, como num colchão enorme; o céu lá em cima, azul, e eu quase a alcançá-lo, de tão altas eram as ondas... Fui até mais fundo e, agora cheio de coragem, olhei para os lados e, como não havia ninguém, além do Seu Mário, bebi um pouco d´água para ver se era mesmo salgada.
Surpresa: era salgada, e bastante!
Bebi mais.
Puxei conversa e muito falei com o atencioso Seu Mário; fui para a água, pulei e furei ondas; boiei e nadei desajeitamente; voltei ao mar infinitas vezes; tornei a boiar, nadar e provar a água para comprovar e poder, depois, contar para todos que era mesmo um mundão de água salgada.
Chega à praia um bando de rapazes, monta-se lá um time de futebol. Participo da pelada e logo já era convidado para, no domingo, jogar com eles, contra um time de uma outra praia.
Fiquei o dia todo na praia. Comi duas coxinhas de frango, tomei um guaraná; à tarde, tomei de novo o trolebus até a rodoviária e, de lá, um ônibus para Cubatão. À noite, eu estava louco para contar tanta novidade para meu irmão e ele interessado em jogar sinuca, a dinheiro, com um “baiano novo”. O remédio era ir deitar, não para dormir: ir para a cama, contar e recontar para mim e para todos e, assim, reviver tantas novidades ...
Cansado, dormi logo.
No outro dia, senhor da situação, passei o dia todo na praia. Entrei calmamente n´água, deixando as pequenas ondas roçarem minha canela e fui até a água chegar no peito: aí, boiei e furei as ondas. Revi o Seu Mário, que me pagou um pastel com guaraná. Joguei bola e me senti em casa, com aquele marzão de Deus na minha frente.
Vida boa, pensava.

E tem mais uma “primeira vez” que quer contar: a primeira vez em que andei de avião.
Foi num Caravelle da Cruzeiro do Sul.
Quando hoje penso que meu netinho, de 10 meses, já andou de avião, fico a imaginar o quanto está desatualizada esta história. Mas era assim. As grandes companhias de aviação, na época, eram a Varig, a Cruzeiro do Sul e a Vasp. Havia outras menores.
O Caravelle era o Boeing de hoje: moderno, grande e confortável, se é possível conforto em classe econômica de avião; isso já um enjoamento meu, de hoje, porque naquele dia, ou melhor, naquela noite eu achava tudo muito, mas muito confortável mesmo. Como o começo desta história tem origem em uma propaganda, a do Caravelle era também bonita e, até hoje, recordo e, mesmo, me pego cantando: “No ar, mais um Caravelle da Cruzeiro do Sul, a bordo, tudo azul”.
Estava já no segundo ano de Pedagogia e, graças a uma experiência como professor primário, fui convidado a desenvolver um trabalho para a Secretaria de Educação de um estado do Norte. O pagamento pelo trabalho de um mês era uma viagem de avião e hospedagem em um hotel três estrelas, com tudo pago: mais do que suficiente, para mim, na época.
A viagem programada inicialmente era para um vôo de mais de oito horas de duração, em uma companhia estatal de aviação do estado do Pará, com escalas no Rio, Brasília, São Luís do Maranhão e muito mais. O avião era um Hirondelle e, para efeitos de comparação, alguma coisa como um Folker 100, dos dias de hoje. Para minha decepção, fui informado, uns dias antes da viagem, de que o vôo seria cancelado e que embarcaríamos no Caravelle da Cruzeiro do Sul, com apenas uma escala no Rio de Janeiro e, depois, direto até Belém do Pará. Além do monte de escalas e de cidades que pensava em conhecer, o pior, para mim, naquela mudança: o vôo seria noturno e eu não veria, do alto, os rios, as fazendas, as cidades e tudo o mais que minha imaginação permitia.
Mas...não teve jeito e vamos lá.
Eis-me em Congonhas, ansioso, aguardando a chamada para embarque e, de tão excitado, quase não acreditando em tudo aquilo: bom demais!
Pouco depois, já estava dentro do Caravelle; tomei meu lugar e obedecia a todos os comandos, reais ou imaginários: “apertem os cintos”; desajeitado, eu os apertava; “levantem o banco”, e, rapidamente, já o fazia.
As aeromoças eram lindas e o avião, maravilhoso. Clima hollywoodiano: quem estava a poucos metros de mim? Ninguém menos que a Divina Elizete Cardoso: linda, negra, quieta e calma. Dava para acreditar? Eu, viajando de avião e, mais que isso, ao lado da Divina?
A enorme máquina sobe, toma conta do céu. Eu lá pensando em como contar daquela experiência que, de tão calma, estava ficando chata. Nada acontecia.
E o pior é que era verdade que o copo com guaraná podia ficar na mesinha e que não derramava, de tão “macio” era o vôo; também era verdade que estávamos a mais de quatrocentos quilômetros por hora. Tudo era verdade: comida gostosa, quando...turbulência! Eu, assustado, me vi agarrando, com força, os braços do banco; olhei para todos os lados, antes de pedir ajuda a Deus, e vejo lá, calma e linda a Elizete: serena, corpo ereto, olhos abertos e um pré-sorriso em seu rosto de deusa africana.
A turbulência foi coisa de segundos e eu pude voltar para a minha refeição; e, envergonhado, sempre que dava, voltar a olhar para a Divina e ver se ela havia percebido todo o meu medo.
Peço um autógrafo? Falo que adoro sua voz e que a vi no Municipal, cantando as bachianas do Villa?
A Divina desceu no Rio e a timidez me impediu de ganhar o almejado autógrafo. Bem mais tarde, em um outro vôo, agora já mais experiente, deixei de lado a timidez e bati um longo papo com o Elomar, arquiteto e cantor baiano arretado, dos bons.
A volta de Belém se deu no Hirondelle, em vôo diurno; o avião parava em várias cidades, “não pode ver porteira aberta que para”, segundo um mal humorado passageiro ao meu lado.
Eu lá, gostando de ver, do alto, as nuvenzinhas, as cidades, os rios, e de brincar de adivinhar onde eu estava, no mapa do Brasil.
Foi assim.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

PIAGETIANAS


A sala de visitas, por sinal a única da casa, foi naquele remoto ano, subitamente transformada em Escola Municipal. Na carroça do velho Biba chegaram as carteiras e a lousa preta. Uma de minhas irmãs: a professora. Naqueles mundaréus de furna era assim.
Eu tinha lá meus cinco anos e vivia com nove irmãos, todos mais velhos: uns servindo de pai, outras de mãe, mais o pai mesmo e a mãe de verdade, um poço de carinho. Não sei como, que tipo de acordo foi feito; nem como as pessoas ficaram sabendo; o que sei é que de repente, de manhãzinha, chegava lá em casa um bando de crianças, uniformizadas ou não, que se enfiavam na antiga sala de visitas, agora escola, para assistir as aulas que minha irmã iria dar. Hoje sei que minha irmã havia cursado até o antigo terceiro ano.
Também não sei se pedi para assistir as aulas ou se lá me enfiaram. O que sei é que gostava e aprendia rapidamente. Ganhei cartilha, caderno, lápis e uma inveja danada dos colegas que tinham que, a pé, sair de suas casas e por horas e horas caminhar pelos campos e pastos até chegar à escola.
Pela pouca idade e também por um certo nanismo que possuía tornei-me orgulho da família: tão pequeno aprendendo a ler, escrever, contar, somar e dividir. Chegavam os tios de outros sítios, namorados de minhas irmãs e o pai, quando estava de bom humor, pegava lá um pedaço qualquer de jornal e eu tinha que ler em voz alta.
Sucesso total.
Veio o exame final e, pela idade e por não estar matriculado, ficou decidido que eu faria as provas, mas independentemente dos resultados, não haveria, pelo carrancudo examinador, o ato oficial de aprovação. Mas ele também, todo bravo no início, se encantou lá com meu pouco tamanho, minha pouca idade, pela letra bonita, pelas contas certas, pelo ditado corretamente feito e pelos probleminhas de uma conta só bem resolvidos, se dobrou e chegou, dizem, a me elogiar para minha irmã professora e para meus pais, na hora do almoço que lhe foi oferecido. Mas, afirmava, o exame não tinha validade: eu não tinha idade e não estava matriculado. Minha irmã professora, que havia me alfabetizado e me iniciado nos princípios da aritmética, era orgulho só.
Virei notícia em toda a furna.
Ano seguinte, logo em janeiro, ela se casou e a escola acabou. Na mesma carroça do Biba lá se foram as carteiras e a lousa deixando a sala vazia – enorme - e em mim uma grande saudade da hora do recreio.
Perto de casa não havia escola.
Dois anos depois, em um domingo, fui colocado, junto com uma trouxa com minhas poucas roupas, na garupa do cavalo de minha irmã. Havia sido resolvido que eu iria morar em sua casa para poder freqüentar uma escola. Na despedida minha mãe chorou, meu pai fez cara feia para ela, minhas outras irmãs me abraçaram e lá fui eu. Não sei se triste ou alegre: fui.
Minha irmã arrumou, para mim, um uniforme de calça curta azul e uma camisa branca. Me apresentou também os colegas com quem eu deveria ir de casa até a escola: José Luís, Marta e Luquinhas. A pé, da casa de minha irmã até a escola era mais ou menos hora e meia de caminhada. Tínhamos que passar pelo sítio do seu Baltazar onde, quase sempre, nos fazia correr uma dupla de enormes cachorros. Trepávamos na porteira, com aqueles cachorros latindo embaixo, e ficávamos a gritar até vir a ajuda ao Seu Baltazar ou de Dona Júlia. A vingança era, depois de salvos dos cães, atirar pedras nas angolas, nos patos e pisar na fileira de arroz recém plantado. Nas vezes que ia sozinho, para rebater o medo, fazia promessas futuras: assim, se os cachorros não aparecessem, eu prometia um pai-nosso e duas ave-marias que seriam rezadas tão logo aprendesse a rezar. Às vezes dava certo, outras vezes, não. Mas a mania de prometer rezas futuras me acompanhou até o cursinho de primeira comunhão. A partir deste momento, quando aprendi a rezar, passei a ser mais parcimonioso em minhas promessas.
José Luís, o mais velho, ia para o terceiro ano, Marta para o segundo e eu e o Luqinha para o primeiro.
A professora era a Dona Terezinha: usava óculos, vinha da cidade até perto da escola no carro de seu irmão e nos acostumamos a esperá-la na estrada para caminhar com ela uns dez ou quinze minutos, da estrada até a escolinha. Sempre muito limpa, delicada, doce: eu a achava linda.
Eu fui para a seção C – adiantada – do primeiro ano. Fazia rapidamente minhas tarefas e seguia, na lousa, o que era passado ao segundo ano. Na segunda semana de aula, dona Terezinha me faz lá algumas perguntas, se eu sabia fazer tal ou qual conta, me deu um livro do segundo ano para eu ler e concluiu:
- “Você vai para o segundo ano. Na segunda-feira já te trago o livro. Ta bom?”
Achava que estava bom, muito mais que bom, mas fiquei quieto, mudo.
Saí da escola correndo, deixei os colegas - Marta inclusive - para trás para poder falar. Cheguei em casa esbaforido, cansado, quase sem fôlego, assustando minha irmã que imaginou que alguma vaca brava, ou os cachorros do seu Baltazar havia me atacado.
Nada disso:
- “Dona Terezinha me passou para o segundo ano. Na semana que vem já vai me dar livro novo.”
- "O que?”
- “É, ela me passou para o segundo ano, hoje.”
Minha irmã se pôs a gritar pelo meu cunhado:
- “Dari. Dari o Lando passou de ano. A professora passou ele para o segundo ano.”
Dari larga as vacas que estava apartando e toca eu repetir a mesma história:
- “É, hoje, ela me passou para o segundo ano.”
Minha irmã se pôs a chorar. Meu cunhado voltou lá para suas vacas e eu fui tratar dos porcos e aguar a horta.
À noitinha, na hora da janta, novamente a súbita e inesperada aprovação foi comedida, mas emocionadamente, comemorada.
Agora promovido ao mesmo ano que Marta estava comecei a vê-la com outros olhos. Ela: mais alta e mais velha continuava a me ignorar. Ensiná-la as continhas de dividir “com dois números na chave” era meu trunfo. Para mim ela era minha namorava embora ela mesma não soubesse.
Meu cunhado era um homem muito habilidoso. Fez para mim um estilingue com forquilha de jabuticaba, borracha de câmara de bicicleta e um courinho macio, macio. Eu vivia com o estilingue no pescoço; só largava na hora de dormir. Para não furar e estragar com seu peso os bolsos das calças carregava as pedras em um pequeno embornal. Passei a ter uma habilidade incrível com o estilingue; a pontaria certeira deu fim a centenas e centenas de passarinhos e uma inveja danada em todos os meninos da escola. Sempre que matava um passarinho, fosse ele uma rolinha ou um sanhaço me arrependia verdadeiramente; chegava muitas vezes a chorar de dó. Colocava-o no embornal, o remorso e a tristeza passavam logo e muitas vezes uma fritada de passarinhos era a mistura da janta.
Num domingo fomos visitar a família do sr. Chico Baltazar. Estava , enquanto as famílias se reuniam em casa, caçando passarinho quando vieram latindo raivosamente os dois enormes cachorros que sempre nos atemorizava no caminho para a escola. Não adiantava gritar e não havia porteira por perto para subir. Trepei no pé de abacate mais próximo e, protegido pela altura, mirei e acertei uma ou duas pedras nos cachorros. Santo estilingue. Os enormes cães se puseram a ganir de dor e fugiram como o diabo foge da cruz. Pronto: agora o caminho para ir a escola estava tranqüilo. A partir de então, corajoso, dizia a Marta que não tivesse mais medo que eu resolvia o problema dos cachorros. Nada mais de trepar na porteira e ficar gritando por socorro. Armava meu estilingue e os dois cães, espertos, sabendo o que os esperava fugiam. Eu me sentia o herói de Marta e dos colegas; mais dela é verdade.
No caminho até a escola apanhávamos flores do campo e oferecíamos à professora. Delicada, dona Terezinha as colocava em um vaso que ficava a enfeitar sua mesa. Como eu sabia onde encontrar orquídeas do campo, as apanhava e dava à Marta para que ela oferecesse à professora. Nestes dias Dona Terezinha apanhava, no final da aula, as flores e levava para enfeitar sua casa. Talvez as colocasse perto da cabeceira de sua cama pensava; ou talvez as deixasse na sala de visitas de sua casa para que seus amigos e namorado pudessem admirá-las.
Passei para o terceiro ano.
Dona Terezinha foi dar aula no Grupo Escolar e a escolinha fechou.
Fui para a escola da Fazenda Boa Vista. Era mais longe, Marta e seu irmão Luquinha haviam desistido de estudar e eu ia só.
No caminho até a escola não tinha cachorros mas se passava por um campo de cerrado onde havia vacas, touros e bezerros. Levava muitas corridas de vaca brava e tinha que deixar escondido, longe da escola, meu inseparável estilingue, agora proibido pela professora, dona Cidinha.
Nesta escola, agora, tínhamos que fazer aulas de ginástica. Saíamos da sala de aula e fingíamos que estávamos catando pedras no chão e atirando em pássaros; fazíamos de conta que estávamos a carregar baldes de água para molhar a horta... Não entendia aqueles fingimentos todos: afinal matar passarinhos, atirar pedras em vacas, aguar horta era o que mais fazíamos longe da escola. Mas....
De todos os meninos da escola apenas eu sabia onde se encontrava uma belíssima orquídea chamada cabeça de boi. Ela só dava em grutas úmidas e a flor branca, com o formato de uma cabeça de boi, era perfumada e linda. Difícil de descobrir e mais ainda, difícil de colher. Num domingo fui até os fundões da furna do Marinho e colhi duas flores. Com cuidado as levei pra casa e, para que não murchassem as coloquei em uma latinha de óleo com água. Na segunda, ainda com muito cuidado e dentro da lata com água as levei para a escola. Juntei a elas flores rochas do jacarandá mimoso e fiz um ramalhete, realmente, muito bonito. Ofereci à Berenice para que ela, prima da professora, lhe desse de presente. Dona Cidinha as recebeu, colocou-as sobre a sua mesa, sem vaso, sem água. O sol forte as queimava e elas rapidamente começaram a murchar. Fiz a cópia solicitada, resolvi os dois problemas e não tirava os olhos das flores que murchavam, na mesa da professora, estendidas sozinhas, sem água, fora de um vaso qualquer. Me bateu uma tristeza muito grande.
Uma chatice aquele ano de escola. Melhor era a caminhada de casa até lá, matando passarinhos, comendo gabirobas e muricis.
Sorte que na escola tinha a encantadora Berenice do primeiro ano. Linda, com sua pele clara , olhos negros como jabuticaba e o cabelo negro cortado “a lá garçone” como dizia minha irmã. Lindíssima.
Passei de ano e fui, no ano seguinte para a cidade fazer o quarto ano e a admissão ao ginásio.
Foi melhor.
Mairiporã, junho 2004

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

ESTÓRIAS: Um homem prevenido vale...



Paramos o carro na Barraca do “profesor”. Beijos na mulher e nas filhas que, corajosamente, retornariam rumo à perigosa BR 101 com destino às – segundo eles e o Guia Quatro Rodas – belíssimas praias do sul de Santa Catarina. Para mim estava encerrando uma viagem de uma semana a Bombinhas.
A preparação desta viagem se fez após muitas consultas, reuniões, avenças e desavenças. O motivo de sempre: SEGURANÇA. Não abro mão da segurança. Para o restante da família, um exagero de minha parte, neura e que deveria – apesar de já ter passado dos cinqüenta – procurar um psicólogo, que isto não é vida e mais um rol de arrazoados. O namorado da mais nova chega a citar clássicos – Guimarães Rosa : “viver é perigoso”! Em livros e estórias tudo bem, penso eu, quem faz o final da estória ou do romance é o autor que o faz conforme quer. Perigo aí não há. Mas na vida real, aqui ao lado da perigosa BR101, acho que tenho mais é que cuidar de mim.
Assim acordou-se, após longas e intermináveis reuniões familiares, que eles iriam de carro para Bombinhas e eu de avião até Navegantes. Lá, no aeroporto, tomaria um táxi que - por um roteiro longa e meticulosamente estudado para fugir ao máximo da famigerada estrada – que me levaria até Bombinhas.
Na casa alugada junto à praia o de sempre: só ia ao mar das oito as dez lambuzado de protetor solar que me impedia de nadar; ainda bem, pensava eu, pois pode ser perigoso: câimbras, poços ou buracos em praia que não conheço e o medo desgraçado de siris.
Por que - penso sempre que vou ao mar - a indústria do turismo não inventou, ainda, praias acarpetadas? Tudo muito natural: carpetes cor de areia, coqueiros de plástico: nada de siris, caranguejos. Tudo igual a uma piscina, só que com ondas programadas: altas e fortes após as dez horas; das seis as oito, ondas leves, baixas...
Levava de casa – muito bem lavado – o limão e a caipirinha era feita na praia. Evita assim as bebidas de barracas, normalmente sujas, feitas sem as corretas normas de higiene.
- “A pinga mata os micróbios, pai” dizia mais velha, do alto de sua sabedoria de médica. Só que ela é pediatra e não deve entender nada de contaminação alimentar, penso eu. Levava de casa o limão, o açúcar a pinga e o gelo. Ta certo que, bravos com – segundo eles – meus excessos de segurança deixavam tudo por minha conta. E lá ia eu com a cesta para a praia. A mulher, às vezes solidária, ficava por perto:
- “Seu pai é assim e não vai mudar” dizia. Ta certo que longe deles, só para mim, confessava seu amor e compreensão mas entendia que ultimamente eu estava mesmo exagerando nesta estória de segurança. “Por isso que estou vivo, com saúde e de família criada” respondia e nem emburrar emburrava tão certo estava das minhas razões.
Apesar de ser horário de verão obedecia ao relógio: antes das dez já estava em casa. Banho de chuveiro, um bom livro, janelas fechadas para não entrar – junto com o sol – pernilongos e fazia hora para esperar o almoço.
Agora resolveram ir mais para o sul. Serão mais de duzentos quilômetros. Eu não: “Volto para São Paulo. Tenho lá coisas atrasadas que vou por em ordem”. E de nada adiantou os mil e um argumentos de que não havia perigo, que – caso eu fosse – viajaríamos bem cedo, fora do horário dos caminhoneiros, que os limites de velocidade não seriam ultrapassados e ...
Eles para um lado e eu para outro. Uns para o Sul e eu para o Norte.
Assim saímos cedo de Bombinhas rumo a Navegantes e para não ficar mais de duas horas no aeroporto resolvi ficar na Barraca do “profesor” ao lado de uma pequena estrada, há uns cinco ou seis quilômetros da cidade. Antes havia me certificado que de táxi até o aeroporto não se gasta mais dez minutos. Evitaria assim a chatice do pequeno aeroporto.
O “profesor”, dono da barraca, começou logo um bom papo. Como o assunto passou a ser segurança ele me falou do que o havia motivado a ir para esta nova vida de dono de barraca: “Floripa cresceu muito, está perigosa, a vida de professor está difícil, o governo paga mal e porcamente, os alunos não querem saber de estudar, só bagunçam e então resolvi: há dois meses deixei a capital, vendi a casa, pedi exoneração do estado e comprei esta barraca de caldo de cana”. Aliás a garapa ou, como hoje se prefere dizer, o caldo de cana estava ótimo. Tomei um com limão e outro com abacaxi. Bem gelado, no calor, descia maravilhosamente bem.
Foi um bom papo. Educado o “profesor” chamou o táxi que me levou até o aeroporto e o vôo foi calmo, em céu de brigadeiro, até São Paulo.
Após uma noite bem dormida e um reconfortante banho matinal vamos a mais uma rotina: uma xícara grande de café preto e a Folha de São Paulo. Só que desta vez, antes, telefonei para meu pessoal para ver como estavam:
- “Você está perdendo, o dia está lindo, muito sol e as praias do Sul são realmente maravilhosas”.
Beijos e abraços a todos e vamos ao que interessa: à Folha e à xícara de café preto.
No caderno Cotidiano a manchete da primeira página me dá calafrios: “São quatro os mortos pelo Mal de Chagas: a causa é garapa de cana contaminada em barracas próximas à cidade de Navegantes”.
SP: 28/01/06

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

E-MAILS, ou a reivenção do gênero epistolar




Para as pessoas tímidas, e me incluo entre elas, o e-mail é excelente. Silencioso, não tem o inconveniente tilintar do telefone, que exige, muitas vezes, um enorme esforço da secretária do amigo para informar que o tal amigo - que está - não se encontra, ou que está, mas acabou de entrar em uma longa e importante reunião com o presidente...Enfim, para nós tímidos, acaba com aquela chateação de se sentir invadindo o mundo, as rotinas ou o laborioso dia de trabalho do antigo companheiro de faculdade ou de time de futebol.
Veja só, um amigo me contou que ligou várias vezes para uma antiga colega de faculdade e que a mesma estava sempre “no banho”. Menos tímido que eu, persistiu e, quando, após infinitas tentativas, a antiga amiga se dignou a atender ao telefone:
- “Bom dia!”;
- “Oi, Fulana, bom dia! Aqui é Fulano. Como vai você?” e logo depois do indefectível,
- “Estou ótima e com você meu querido?”;
- “Estou bem e você deve estar limpíssima.”
Findou-se, assim, uma amizade que, se fosse cultivada por e-mail, teria, com certeza, sido mantida até os dias de hoje, o que é uma pena, a perda da amizade, claro.
Prefiro os e-mails e mantenho muitas amizades assim.
Um grande amigo, original e ocupadíssimo executivo de uma multinacional, certa vez, respondeu a um longo e-mail e disse que o mesmo resgatou o velho hábito de escrever cartas; e nele me deu, também, de graça, o título desta história, que, na verdade, não chega a ser uma história; é mais um passatempo. Mas, recordando o amigo, os e-mails, de verdade, resgataram o gênero epistolar.
Já um outro amigo, com o qual troco imensos e-mails, jocosamente disse que o grande mérito do e-mail foi deixar tudo muito familiar: fulano@, beltrano@, cicrano@; segundo ele, todo mundo primo, irmão, sobrinho ou tio.
Esta longa e, acho que para muitos, desnecessária introdução, também coisa dos tímidos, só serve para dizer que vivo escrevendo e-mails. Passo o tempo e acho muito melhor do que palavras cruzadas, agora novamente na moda, para ativar as mentes ociosas do numeroso pessoal da terceira idade.
Às vezes, começo logo o dia tomando café preto bem forte e escrevendo e-mails. Em uma destas manhãs ou madrugadas, respondi a um e-mail do meu amigo e da “limpíssima” colega, que havia ficado uns bons dias em minha caixa postal:

“Prezado Wlá,

Bom dia ou, provavelmente, segundo o seu relógio biológico, boa madrugada!!! Afinal, são 6:05 h da manhã.
Sabe que tenho um amigo, o Pedro, que agora mora em Salvador e que um dia usou a expressão "lambendo as crias" para explicar o que ficou fazendo durante um fim de semana prolongado aqui em São Paulo. Na hora, achei grosseira a expressão, mas, passei a gostar.
Todo esse "intróito" para dizer o que andei fazendo nos últimos 20 dias. Lambendo as crias. Minha "cria" menor pegou 15 dias de férias e, como o seu namorado não tinha o mesmo direito, ficamos nós, os pais, "lambendo a cria". Fizemos uma viagem para Goiás, com passagem por Ribeirão Preto, Araguari...Voltamos para São Paulo e continuamos a "lamber a cria". No fim de semana, veio aqui prá casa a "cria" mais velha e continuou a lambeção.
Engraçado, mas minha educação extremamente severa - era proibido xingar, falar nomes feios, etc - ainda é muito presente. “Cria” e “parir” são palavras com as quais - pelo menos inicialmente - não tenho uma boa relação. Besteira pura.
Bem, após tanta lambeção de crias, vamos curtir os amigos. Vou telefonar prá Lu e marcar um encontro aqui em casa. Aqueça os tamborins e vamos matar saudades, contar mentiras e falar mal dos outros. Vai ser bom.
Um grande abraço,
Orlando.”

Outra manhã, depois de uma deliciosa ópera no Municipal na noite anterior, estava folheando o jornal, à procura das críticas relativas à dita ópera. No caderno Ilustrada, encontrei: um palavrório sombrio, uma vergonha de simplesmente dizer que gostou, a tudo tendo ou querendo justificar que resolvo: em vez de ficar lendo críticas, achei que valia mais a pena escrever e-mails para uma querida amiga, fã de bons concertos e boas óperas.
“Querida Beth,
Como vai?
Fiquei sabendo, pelo Daniel, que você esteve no Municipal, vendo Lohengrin. Eu também estive lá, numa quarta-feira, e me esbaldei. Tudo me tocou profundamente. E... lá vem histórias.
Em minha infância, nós tínhamos um primo distante chamado Diquinho. Era um andarilho. Os mais velhos, quando o viam chegar, faziam cara feia. Fama de preguiçoso, sujo e outros defeitos mais. Também diziam que o único jeito do Diquinho ir embora da casa que o acolhia era pedir que ele rachasse lenha: atividade que - não sei se você sabe - exige grande esforço físico.
Meu receio era de que pedissem logo ao Diquinho que fosse rachar lenha o que o faria procurar outras casas e outras comidas.
Porque Diquinho era o sonho das crianças. À noite, não muito a noite, porque dormíamos muito cedo, era hora de ouvir suas histórias.
O Diquinho era um contador de histórias. Contava a dos Cavaleiros da Mesa Redonda, do rei Artur, e muitas outras. O interessante é que ele repetia as histórias e ficávamos disputando qual delas queríamos que ele contasse. Por ser o menor, eu ficava sempre em último lugar nos pedidos, mas não importava... gostava de todas.
Hoje, fico pensando de onde ele tirava aquelas fantasias todas. Era analfabeto. Um tipo muito franzino e débil, que vivia livre e graças à solidariedade de uma época em que não se negava cama e comida a primos distantes e, talvez, a ninguém.
Ainda do Diquinho: mudando de Pedregulho para Ribeirão Preto, em busca de trabalho e para continuar o Curso Normal, fiz uma grande amizade com uns outros "primos de longe", que moravam por lá. Era uma família muito simples, que se "arrumou" em Ribeirão: todos trabalhavam.
No Hospital das Clínicas, trabalhava a Gláucia, que estudava comigo e me deu uma grande força no velho Instituto de Educação Otoniel Mota. Na Coca-Cola, trabalhava o João, que, por pouco, não conseguiu me fazer abandonar a "missão" de ensinar para jogar futebol no Comercial de Ribeirão Preto.
Tinha também o José, que namorava a Eulália, moça belíssima, que era bibliotecária na Biblioteca Municipal Altino Arantes. Ia lá para vê-la - e ela não me via - e aproveitava para entregar livros e pedir outros emprestados. Assim, li tudo do Jorge Amado, do Érico Veríssimo, do Machado de Assis, muita coisa do José de Alencar...Enfim...lia-se muito.
Então...
Esta família era espírita - o que era grave, para mim, na época, um quase beneditino - mas nos entendíamos e eu gostava muito deles.
Uma noite, fui buscar minha irmã no Hospital das Clínicas, onde ela trabalhava, e lá encontrei com a Jacira - mãe desta família e que também trabalhava no Hospital - que me disse que tinha ido ao Centro, naquela semana, e que a alma do Diquinho havia "descido" na sessão, que o mesmo estava bem, finalmente desligado da miséria e dos pecados do mundo, e que logo reencarnaria em um corpo de alguém que não tivesse tantos pecados para cumprir aqui na Terra. Mesmo sabendo de um futuro mais feliz para o Diquinho reencarnado, me entristeci.
Pois bem, e, agora, o melhor da história. Alguns meses depois, indo a Pedregulho visitar uma outra irmã, que morava em um sítio, sabe quem encontro? O Diquinho: vivíssimo, contando histórias, mais velho e que, agora, com certeza, não daria conta de rachar lenha, de tão fraco e franzino. Contou minha história predileta, que falava de um rei que tinha sete segredos, que guardava no fundo do mar, dentro de sete caixas, cada caixa com sete princesas e tudo o mais. Lindíssima história. O Lohengrin me levou até lá.
Um beijão,
Orlando.”

Uma vez, li uma entrevista do Caetano Veloso, na qual ele diz que adora pegar o violão e, sentado na escada, ficar tocando, tocando: “enche o saco de todo mundo, menos o meu”, disse. Não toco violão, então, escrevo e-mails. Não encho o saco de ninguém, mesmo do destinatário: é só deletar; e, por isso, não uso nem mesmo aquele bendito recurso de “confirmar se recebeu o e-mail”. Livre para escrever e, mais ainda, para ler.
Mais um e chega: este para um amigo que conheci em concertos da OSESP e que estava em uma luta, finalmente perdida, contra um câncer violento. Antes de descobrir a doença e mesmo em seu tratamento, quando tinha forças, o Geraldo tinha uma mania de, semanalmente, nos encaminhar e-mails com frases, artigos e outros que tais, nos desejando uma boa semana. Em seu período de tratamento, a ausência de seu e-mail desejando a boa semana era motivo de preocupação.
“Prezado Geraldo,
E cadê o tradicional BOA SEMANA, com o qual você nos brinda?
Me acostumei a gostar deles.
Sabe que, em um e-mail, no qual te conto que fui um alfabetizador de adultos, lá pelas bandas do Vale do Ribeira, você responde dizendo que deve ter sido uma fase difícil em minha vida. O engraçado é que todos pensam como você. Só que não foi.
O que quero dizer é que, vendo as coisas HOJE, parecem difíceis, mas eu não achava assim, naquela época.
Seguinte: eu encarava aquilo tudo com muita naturalidade e até com um certo orgulho. Os horizontes eram, talvez, pequenos, mas – intuitivamente - eu os encarava como momentos de minha vida. O ano seguinte seria outro ano...e eu construiria minha vida.
Assim, achava natural andar 24 km, a pé, aos sábados à tarde - porque, naquela época, as aulas iam de segunda a sábado - para ir a Registro, dançar, namorar e - claro - jogar bola no Domingo, à tarde, e voltar, à noite: sozinho, sem medo, assobiando e pensando no próximo sábado e, também, na segunda, na terça....
Um dia, te conto das experiências de passar medo de escuros, de sacis e outros que tais pelos quais passei por lá. São estórias engraçadíssimas, hoje, porque, na época, foram terríveis. A única vantagem era a de que eu passava medo, deitava, então, com uma lamparina acesa e dormia. Uma noite dessas – com lamparina acesa, medo e sono profundo juntos - quase pus fogo na escola, que era, também, o local onde eu morava.
Uma vez, uma noite, acordei com um barulho tremendo na sala de aula. Como te contei no outro e-mail, naqueles lados era comum as escolas serem construídas, também - além da sala de aula - com quarto, cozinha e sala, agregados que se transformavam na residência do professor. Pois, como eu ia te dizendo, certa noite, estava eu lá, em sono profundo, quando um barulho enorme me acordou.
Era um barulho estranho, com pausas mais ou menos cronometradas e - parecia – que, após o descanso de cada pausa, a próxima investida se iniciava com um vigor maior, mais alto “tchock, plock. Plém, tchok,tchok, plem....”
Isto ali, ao lado de minha cabeça...separado por uma tênue parede, que isolava a sala de aula e o quarto onde eu dormia. O barulho, com certeza, vinha de lá.
Senti medo e susto com aquele barulho desconhecido.
Abrindo um parênteses: quando, uma vez, contei isso para as minhas filhas, elas logo perguntaram: mas, porque você não telefonou para a polícia? Incabível, no mundo delas, uma vida sem telefone. Fecha o parênteses.
Tentei dormir...Não dava. Acendi a lamparina e me pareceu que, com a luz da lamparina acesa em meu quartinho, os intervalos entre os diversos "movimentos" da sinfonia diminuíam. O jeito era enfrentar a "coisa": podia ser um saci, uma mula sem-cabeça ou o capeta.
De lamparina em punho, atravessei a cozinha, a salinha e ...coragem...abri a porta da sala de aula.
O barulho se repetia intermitentemente. Aguardo outro “movimento” do concerto, para localizar sua origem, e descobri: um morcego havia caído em uma lata de óleo de vinte litros, usada para jogar lixo e para a criançada apontar lápis. O coitado do morcego tentava alçar vôo, mas não conseguia: culpa destas coisas de aerodinâmica, da física ...Virei a lata e o morcego foi para o teto e eu voltei a dormir.
Tudo isso prá te desejar uma BOA SEMANA.
Abraços,
Orlando.”
Só sei que o Geraldo não respondeu a este e-mail.
Educado, tinha o velho hábito de, a todos, responder.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A MOLDURA




Éramos cinco irmãos homens, quase todos já rapazes ou homens feitos, e eu, o caçula, com meus seis ou sete anos, era considerado, por eles, uma espécie de “rapa do tacho.”
Todos se ocupavam com as pesadas lidas da roça: capinavam o cafezal, dobravam o milho, roçavam os pastos, tiravam leite e tudo o mais que se tem que fazer em um sítio sem trator.
De segunda a sexta, trabalhavam de sol a sol; aos sábados, costumavam trabalhar até a hora do almoço e, nestes dias, à tarde, iam a um córrego que passava perto de casa e tinha um poço onde tomavam banho. Às vezes, levavam-me junto, outras vezes não. Gostava de ir: lá eu aprendia a nadar, com duas cabaças amarradas às costas servindo de bóia, me afogava, desafogava e bebia água tentando dar minhas braçadas - estilo cachorrinho - no rasinho do poço. Enquanto isso, meus irmãos, pelados, tomavam banho e aproveitavam para conversar: combinavam em qual baile iriam, falavam das namoradas, do sanfoneiro, do cavalo que pensavam em comprar, riam, contavam piadas sujas e faziam gestos obscenos, que, às vezes, eu, ingenuamente, repetia – estimulado por eles, é certo - na frente de visitas, o que era motivo para, muitas vezes, minha mãe não me deixar acompanhá-los naquelas tardes de banho ao ar livre.
De volta para casa, banhados, reuniam-se debaixo da mangueira, onde dependuravam, mais ou menos na altura do rosto, um espelho; aí, continuavam a conversa iniciada no poço e faziam, cada um por sua vez, a barba, à navalha.
Aqui é que começa, mesmo, esta história.
O espelho que usavam para barbear tinha uma moldura de madeira marrom, toda cheia de rococós, e meus irmãos já haviam me prometido que, quebrado o espelho, a moldura seria minha: isto desde que, prudentes e prevenidos, não fosse eu, com meu estilingue, a dar cabo do mesmo. Eu acompanhava e assistia àquelas sessões de barbear, maravilhado e sonhando com a moldura que, tão logo o espelho quebrasse, seria minha.
Na mangueira, mesmo, o espelho não quebrou...mas, o Alfeu, um dos irmãos, ao retirar o arreio do gancho, na parede do quarto - esta sim, a sede permanente do espelho em questão -, por um descuido, falta de jeito ou pressa, esbarrou no dito, que lá se foi para o chão. Ele xingou e disse um monte de palavrões; mas era tudo o que eu queria; os caquinhos do espelho foram para minha capanga, junto com pedrinhas coloridas e outras bugigangas, e a moldura para minhas mãos.
Passei a ver o mundo com ela e, por isso, até apelido ganhei; não gostava dos apelidos, aquilo me chateava, mas “não faz mal”, pensava; não mais me separava da moldura e todas as belezas do mundo passei a ver através dela. Eu podia, com ela, montar e, se não gostasse, desmontar quadros, mudar o ângulo; gostava tanto que, mesmo em minhas saídas para as longas andanças à caça de passarinhos, levava a moldura comigo.
E ficou sendo sempre assim: estilingue no pescoço, embornal com pedras de atirar no ombro e a moldura nas mãos.
Um dos meus “quadros” favoritos era o vôo dos urubus. Penso que, talvez, por cair e tropeçar de tanto olhar para o céu para ver o vôo dos urubus, minha mãe me pôs medo, dizendo que eles poderiam me bicar os olhos se eu insistisse naquela mania de andar olhando para o céu para vê-los. Com a moldura, agora, podia, sem medo, olhar e olhar o seu vôo silencioso e sereno; acabou-se aquela história de antes, que era a de dar uma olhadinha rápida e, receoso, baixar logo a cabeça, com medo de levar uma bicada.
Além do vôo dos urubus, via, através da moldura, animaizinhos, formigas, pedaços de serras, nuvens, vacas, cavalos, cachorros, árvores ..., tudo do ângulo que me parecia mais bonito; e, assim, o mundo, para mim, virou um museu.
Para poder estudar, fui morar na casa de uma irmã, onde, distante uns seis quilômetros, tinha uma escolinha.
“Estudar é preciso” diziam meus pais...assim fui para a casa de minha irmã e para a escolinha com minha moldura, meu estilingue e minha capanga de carregar pedras. E foi mais um mundão de “quadros” que descobri; passei a ter um interesse maior por pássaros, águas e por pedras.
Os apelidos, por conta da moldura, continuavam. Na escola, pelas crianças maiores que eu, as primeiras ameaças de que quebrariam ou tomariam a moldura, se eu não fizesse isso ou aquilo.
Continuei firme: principalmente se o lugar fosse novo e desconhecido, carregar comigo a moldura era vital. E eu, considerado por todos um menino inteligente e obediente, era chamado de “teimoso” e “meio bobo”, quando o direito de carregá-la me era negado. Aí teimava e me emburrava.
Mas, mesmo assim, veio a primeira proibição. Em um sábado, deveria acontecer, na igreja da cidade, o casamento de uma prima. E eu lá, todo de roupa nova, banho tomado, já sentado na charrete que nos levaria à cidade, quando vem minha irmã: “não, não pode levar isso com você, não”; e rápida, antes mesmo do primeiro “por que?”, “é pecado, e o padre não deixa”. Não teve jeito e foi assim que vi, pela primeira vez em minha vida, um casamento na igreja. Foi bonito e eu, maravilhado com a cerimônia, com o vestido branco da noiva, com as hortências que enfeitavam o altar, lamentava: “com a moldura, acho que veria coisas mais bonitas ainda.” Depois do casamento teve festa, comi bolo com glacê, bala de coco e voltamos para casa, já de noitinha.
Antes de deitar, coloquei, perto da cama, meu estilingue, minha capanga e minha moldura; no dia seguinte, logo cedo, queria sair para caçar passarinhos e ver, com minha moldura, um distante trecho do Córrego do São Bom Jesus. A moldura - passei a acreditar - também dava sorte na caça. Só naquele dia matei uma jacutinga, uma juriti e duas rolinhas, garantindo a mistura do almoço e aliviando a consciência pesada: matar passarinho para comer não era pecado.
A escolinha em que estudava fechou e tive que ir para outra, que ficava longe, depois do sítio do Biazoli.
Nesta nova escola, a professora, normalista e “dona da cadeira”, implicou com minha moldura.
Frente a ingênua, mas firme resistência, impôs condição: podia até levá-la para a escola, mas, chegando lá, que a colocasse dentro do embornal onde guardava os cadernos. Não podia usá-la na sala de aula e “muito menos durante o recreio”, disse ela.
A taboada do sete sempre foi, para mim, uma cruz. Decorava que decorava, estudava que estudava, mas, se a pergunta fosse salteada, errava sempre; sabia recitá-la começando do “7x1” e, também, mesmo de sopetão, achava fácil o “7x5”; mas nunca sabia o “7x8”, o “7x3”, o “7x9”; se era para resolver problemas, ou fazer as “continhas”, eu começava do “7x1” e, aí, corretamente, ia até onde interessava e acertava as contas ou os problemas. A professora resolveu que a culpa era da moldura: me deixava desatento, avoado, meio abobado.
Uma tarde, após o recreio, chega a hora de “tomar a taboada” e foram, logo, duas respostas erradas, consecutivas. Uma fúria inexplicável tomou conta da professora normalista: sem mais nem menos, apoderou-se de minha capanga e, histericamente, quebrou a moldura, atirando os pedaços para o teto, em mim e no lixo. Um ódio estúpido saía de seus olhos: os seis meses em que tinha suportado a moldura haviam, enfim, para ela, terminado.
Minhas pernas finas e empoeiradas ardiam pelo calor das varadas de marmelo. Impassível, acuado, senti uma revolta intensa apoderar-se de meu corpo frágil.
De volta para casa, com meu estilingue e sem minha moldura, pensava em outras formas de, do meu jeito, ver o mundo. Enquanto pensava, comecei a recordar, a reviver a forma da moldura; aí então, meio sem querer, usei os dedões e os indicadores das duas mãos e fiz, no ar, uma moldura; não ficou boa, assim meio ovalada, mas, mesmo assim, com ela acertei um ângulo para ver um cacho de flores azuis do jacarandá mimoso, deu certo e me animei. Comovido, acertei melhor os dedos das mãos, arredondei um pouco mais a moldura e, protegido por ela, vi o vôo de um bando de urubus, que, obedientes, não desceram para bicar meus olhos, me dando tempo para, calmamente e sem nenhum receio, vê-los em seu silencioso e harmônico vôo.
Pronto, resolvido: “esta minha moldura nova ninguém percebe, só eu, mesmo, é que a vejo. Nem apelido vão conseguir botar em mim.”
Com ela, vi, pouco depois, um touro bravo no pasto do Seu Izidoro, e, lá longe, a escolinha e a casa do seu Tó Diniz, onde morava a professora.
Me deu uma vontade grande de mijar. Antes, mirei bem a casa do Seu Tó e, como meus irmãos haviam me ensinado, apontei bem o pinto em direção à casa e gritei:
“Oh! Prá você, sua cagona”!!!
Assim, vingado, mijei, guardei o pinto, arrumei as calças, catei minha sacola com os cadernos no chão e voltei para casa.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

CAPRICHO ITALIANO...saudades do José Américo.



Comecemos pelo começo, como dizia meu tio Olímpio.
Assim: minha amizade como o José Américo teve início quando ele “entrou” para o grupo de coroinhas. Antes disso, até pelo pequeno tamanho da cidade onde morávamos, claro que nos víamos e já havíamos até mesmo jogado futebol juntos....mas, amizade mesmo, forte e carinhosa, teve início quando, autorizado pelo Frei Elói, José Américo se juntou aos coroinhas, ou, aos “ajudantes do padre”, como, maldosamente, alguns colegas mais velhos se referiam a nós.
Por ser coroinha há mais tempo, por já saber responder a missa em latim e conhecer todas as diferentes funções dos coroinhas nas diversas liturgias, fui encarregado de ajudá-lo em sua “iniciação”. Nossas “batinas” ficavam, nos fundos da sacristia, presas em ganchos próximos e, assim, a preparação para ajudar a missa, a reza ou uma outra cerimônia religiosa já nos colocava um perto do outro.
Tínhamos por volta de doze ou treze anos e cursávamos a segunda série do antigo Ginásio Estadual.
Das brincadeiras na sacristia, antes e, às vezes, durante e após as cerimônias religiosas, passamos a nos encontrar pelas manhãs - já que, no período da tarde, estávamos na escola - para jogos, caçadas, conversas ou outras estripulias.
José Américo e seu irmão, o Riquinha, eram órfãos de pai e tinham uma irmã, a Ritinha, à época com seus dois anos e pouco, nascida do casamento de sua mãe e seu padrasto. Os dois, José Américo e Riquinha, tinham como obrigação cuidar da Ritinha durante as manhãs. Assim, se íamos nadar no sítio do seu Sílvio lá ia Ritinha conosco...e, mesmo quando íamos nadar no fundo, perigoso e longínquo Poço da Cachoeira, Ritinha dividia as nossas costas, onde, de cavalinho, a transportávamos, e, enquanto dois nadavam, um tinha que ficar a tomar conta da pequena.
Nos treinos do time infantil de futebol, José Américo começava a despontar: jogava na ponta direita e tinha um etilo de jogar alegre, rápido e elegante.
Estranhei a falta de José Américo na reza de uma quarta-feira em que eu e ele estávamos escalados para ajudar o frei Elói. Não foi à escola na quinta, faltou também na sexta e ao treino do “infantil” que tivemos no sábado; a doença que o atacara devia ser mesmo grave, pensei.
Na missa das 6:30h de domingo, sua ausência continuou a pesar: vesti minha batina e fui ajudar a missa. No finalzinho do sermão, Frei Elói, após suas recomendações e louvores de sempre, falou a todos os presentes da visita que fizera ao José Américo, confirmou que era tétano a doença que o acometera e chorou ao repetir o diálogo que tivera com seu coroinha:
- “Frei Elói, será que vou para o céu?”, perguntou José Américo.
- “Você já está no céu, meu filho”, respondeu o padre.
Choramos todos, seus colegas no altar e penso que todos os fiéis que estavam naquela missa.
Frei Elói continuava a sua função de “dizer” a missa, embora não conseguisse conter sua emoção... O “confiteor” foi entremeado de soluços e, na hora da distribuição das hóstias, percebi claramente sua comoção e o sentimento geral de tristeza dos fiéis.
José Américo morreu na terça feira seguinte àquele domingo.
Seu sepultamento foi em Patrocínio Paulista, ao lado de seu pai, que lá estava enterrado, e foi organizada a participação de seus colegas de classe na cerimônia. Fomos, após o almoço, de Pedregulho para Patrocínio Paulista, em um caminhão, todos uniformizados ....
O velório foi na casa de um tio seu e, em fila, todos pudemos render nossa homenagem ao amigo. José Américo estava vestido, como nós, com seu uniforme de calças e camisa caqui e gravata preta. Tinha nas faces uma expressão de muita dor: boca levemente aberta, com os dentes um pouco à mostra, não para apontar seu sorriso permanente, mas, sim, demonstrando a dor que a doença que o acometera lhe causara e a saudade de abandonar, tão cedo, a vida amada.
Na hora do enterro, Jaime, excelente músico, estava a postos, com seu trompete, naquele dia, enfeitado com um lenço preto, em sinal de luto.
O sol se preparava para se por quando o caixão foi baixado à terra. Jaime empunha o trompete e inicia o toque, o rosto vermelho pelo esforço que a melodia exigia e as bochechas enormes cheias de ar, impingindo a todo o cemitério o som de uma melodia triste, linda, inesquecível.
Nos dias seguintes, no Ginásio, todos nós a assobiávamos ou a reproduzíamos, em “bocacuse” ...
E os anos se foram...
A melodia continuava gravada em minha mente, cheia de emoções, embora , muitas vezes, quando tentava assobiá-la, não me recordava.
Já casado, ganhei, em uma festa de amigo secreto de final de ano, um LP do Tchaikovsky, que, além da Patética, sua sinfonia número seis, continha a abertura do Romeu e Julieta e o Capricho Italiano. Conhecia e gostava muito da Patética, já tinha ouvido a abertura do Romeu e Julieta e não conhecia o Capricho.
No dia seguinte, minha surpresa e emoção, ao ouvir o Capricho: o início da peça me levou de volta a Patrocínio Paulista, ao enterro, ao amigo, à volta do enterro para Pedregulho, no caminhão, pelas estradas empoeiradas, em uma noite sem lua, muito escura. Era a melodia que Jaime havia tocado no enterro do José Américo
Contei a história à minha mulher, que chorou. Choramos...

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Em uma recente tarde de sábado, segui rumo para um dos meus programas favoritos: um concerto na Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Integrando o programa, como peça de abertura, o Capricho Italiano, de Pjotr I. Tchaikovsky.
Já imaginava as emoções, saudades e paisagens que o Capricho me traria naquela tarde de concerto. Assim, me preparei, com o peito aberto, para voltar a ouvir o trompete do Jaime, em Patrocínio Paulista, jogar futebol com o José Américo, ouvir sua gargalhada após as travessuras que, juntos aprontávamos, rever seus dentes, em seu sorriso alegre e mostrando tanta dor no dia de sua morte. A melodia do trompete, que tanto me emociona, dá início ao concerto daquela tarde.
Estava, ainda, remoendo essas emoções quando tem início a peça seguinte e seu início me lembra um sino a tocar: dém ...dém...plém...plém...
Instantaneamente, surge outra história.
Na igreja de Pedregulho, onde éramos coroinhas, havia dois sinos em sua torre. Um deles, chamava os fiéis para cerimônias mais simples, como a missa das seis, as rezas noturnas e os “benzimentos” de defuntos. Cada uma dessas cerimônias exigia, claro, um ritmo e um badalar, e o manejo desse sino era fácil e leve porque a corda que o acionava estava diretamente ligada ao pêndulo. O outro, anunciava cerimônias menos triviais, como a missa das nove, aos domingos, ou a missa do galo no final do ano, e era de difícil manejo; suas badaladas eram originárias do giro que o mesmo tinha que dar sobre si mesmo, o que exigia muita força física para fazê-lo badalar. Os coroinhas menores, eu e o José Américo entre eles, não tinham força e nem autorização para fazê-lo.
José Américo resolveu, então, inovar. Assim como renovava o futebol com seus dribles fáceis e desconcertantes, na ponta direita, resolveu que poderíamos, tanto ele como eu, tocar aquele pesado sino de cerimônias mais complexas. Na ponta da corda daquele sino, havia um pequeno pedaço de madeira, que servia de apoio para as mãos, e a inovação deu-se aí: ao invés de apoiar as mãos, José Américo montou na madeira, foi até uma escada lateral, apoiou-se nos degraus e, como em um balanço, soltou o corpo e, gostosa e sorridentemente, ia e vinha pelo ar, com o sino tocando a todo vapor.
Acabou-se, ali, naquela manhã, convidando os fiéis para a missa das nove, a inveja que tínhamos do Ataliba, do Dutra, do Lúcio, os quais, até aquele momento, eram os únicos, do grupo de coroinhas, autorizados e capazes de tocar aquele sino.
Frei Elói só estranhou o ritmo...Como o sino era muito pesado, quando normalmente tocado, as primeiras badaladas tinham um ritmo lento e continuavam, em um crescendo, até que o seu embalo o tornava mais leve. Só a partir daí é que o dém...de...lê...lem...mantinha-se constante até o seu pesado término.
Naquela manhã, o dém...de...lê...lem...já iniciou rápido, em um delicioso “alegro”.
Assim, quando estava ainda a me recompor do Capricho, vem lá uma outra avalanche de emoções, de recordações da infância e do amigo querido.
Casualmente, naquele mesmo fim de semana, a casa estava repleta, com a família reunida: minha mulher, nossas duas filhas, seus companheiros e nosso netinho. Na manhã de domingo, após o café, coloco o Capricho Italiano no CD player e conto a todos a história do José Américo e da emoção que havia sentido, mais uma vez, no concerto do dia anterior. Choramos todos, sob o olhar de pouca compreensão do pequeno Antônio, agora com a idade que tinha a Ritinha àquela época, e que, de forma simples e graciosamente infantil, resolveu nos consolar:
- “Não chóia...mamãe tá aqui.”

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

VAI GRAXA AÍ, DOUTOR?


Dois sisudos “nãos” a dois convites para engraxar os sapatos me fazem refletir: será que meus sapatos estão tão sujos assim ou é a falta de fregueses? Olho para os pés e os sapatos estão a meio termo: um pouco sujos e sem nenhum brilho. Cedo ao próximo convite e, com as pernas cansadas, solto todo o peso do corpo, gostosamente, na cadeira do velho engraxate.
Antes de oferecer o jornal ou a velha revista, o engraxate, já cinqüentão, desamarrava o cadarço dos sapatos e, à queima roupa, pergunta:
-“O senhor é padre?”
Rapidez de raciocínio não é o meu forte. Normalmente, sofro com piadas, das quais rio falsamente na hora em que é contada, e só depois, em casa ou no ônibus, relembrando-as, as entendo, e aí sim, fora de hora sorrio; o que parece – quando ocorre no ônibus - sinal de loucura ou demência para os outros passageiros. Em casa, quanado rio fora de hora, já estão acostumados: “contaram piada prô pai”.
Naquele dia, não. Fui rápido:
-“Ô louco, como o senhor adivinhou?”
Logo após, contente com a inesperada agilidade que tive - mas sempre muito exigente comigo mesmo - pensei que em vez de “ô louco, como o senhor adivinhou?” – parece coisa do Faustão – deveria ter dito: “Por Deus, meu filho, como você adivinhou?”
Entretido lá com os cadarços dos sapatos, o engraxate fica quieto. Aguardo e, alguns segundos depois, insisto:
- “E então, meu filho, como você adivinhou?” Reparem bem no “meu filho”.
- “Sei não. O jeito. A cara boa. O senhor tem um jeito sincero, de honesto, de padre.”
Em dúvidas sobre a continuidade ou não do diabólico plano que tramava, fui buscar forças em uma história do Monteiro Lobato. Chamado sempre de doutor, por ser advogado, certa vez foi – altas horas da noite - convidado para acudir uma parturiente. Ele foi e fez o parto. Coragem para tanto eu não teria, mas o caso aqui é bem mais simples. Daí:
- “O senhor é católico?”
- “Com a graça de Deus, sim. Católico e devoto de Nossa Senhora de Lourdes. Em minha família todos crentes e devotos, mas não desses crentes do bispo Placebo, que rouba dos pobres. Crente e temente a Deus, da antiga e verdadeira Igreja Católica Apostólica Romana, com muito orgulho e com a santa graça de Deus”.
- “Praticante?”
- “Bem, ultimamente nem tanto. Bebo muito aos sábados à tarde e amanheço aos domingos com uma dor de cabeça desgraçada. Tem também um pouco de preguiça, mas vou parar com isso. Domingo que vem já vou. Gosto da missa das sete. A igreja da Vila Formosa é perto de casa”.
Os sapatos começavam a ter um outro aspecto. Velozes, com ritmo, a escova e os panos davam nova vida a eles.
- “Ah, na Vila formosa, e quem é o pároco lá? Talvez conheça.”
- “O nome não sei, me esqueci. Mas é um velho italiano. Sei que é italiano pela fala diferente na hora do sermão. Toda vez que escuta, minha velha chora. Teve uns tempos que eu pensava que chorava de arrependimento e brigava com ela, depois, em casa, por causa de seus pecados que eu queria saber quais eram. Ela dizia que não chorava por pecado nenhum e que era de tanta beleza do que o padre falava.”
- “Crente em Deus, sua velha.”
- “Ah. Ela é sim. Quando eu não vou, vai sozinha à missa: reza, confessa e comunga. Eu faz tempo que não confesso. Muito tempo, mesmo!”
- “E por que meu filho? É tão bom confessar seus pecados, ter a alma limpa e a consciência tranqüila para receber o corpo do Senhor.”
Novamente muito ágil, sem muito pensar, resoluto, o velho engraxate:
- “O senhor me confessa, aqui?”
Enquanto me preparava para responder que sim, que eu o confessaria ali mesmo na praça, puxei pela memória na busca do rito da confissão. O pensamento voou para os velhos tempos lá no interior, ainda meio criança e meio adolescente. Uma pequena fila no confessionário e, quando chegava minha vez, ajoelhava, fazia o sinal da cruz e, sempre rápido, sem nenhum cuidado com a pontuação, mas muito com a pressa, desembestava meio de cor: “Faz uma semana que não confesso; briguei, xinguei, desobedeci meu pai, desobedeci minha mãe, fumei escondido, pequei contra a castidade”. O “pequei contra a castidade” funcionava como uma campainha para acordar o sonolento padre que, também automaticamente, penso eu, interrompia minha ladainha...
Mas vamos voltar à praça; todo constrito respondi:
- “Sim, meu filho, te confesso. Quais são os seus pecados?”
Talvez pego de surpresa , agora um pouco hesitante, o velho olhou para os lados, olhou para mim, depois olhou para trás buscando uma sombra ou alguém que se aproximasse e o livrasse daquela confissão a céu aberto. Não dei tréguas, curioso que estava para saber dos pecados do engraxate. Monteiro Lobato fez pior, me desculpava.
Mas, também não querendo ser pego de surpresa, teimava em relembrar minhas velhas confissões: o “pequei contra a castidade”, que funcionava como campainha, era sempre rápida e maquinalmente interrompido pela pergunta “Sozinho ou acompanhado?” Se sozinho, a confissão continuava sem interrupção. Se acompanhado, vinha lá outra rápida pergunta: “Com pessoa ou com animal?”
- “Cometi um pecado grave, senhor padre, tenho vergonha de contar”, humildemente iniciava sua confissão o nosso engraxate.
Era só estimular:
- “Fale meu filho. Deus é bom Pai e sabe perdoar. Ele ama seus filhos, vamos, coragem. O que te envergonha? Está mesmo arrependido?”
- “Estou sim, arrependido e envergonhado. Foi na casa do vizinho, um roubo. Precisar não precisava, podia passar sem, mas...Sei lá. Sim eu roubei e sei que é pecado. Me perdoa?”
Aí fui eu que me senti pego de surpresa e precisava ser rápido. Estava imaginando lá umas traquinagens sentimentais do velho e lá vem ele com roubo. Não tinha experiência em confissão e absolvição de roubos. Nos pecados contra a castidade, me lembrava, a absolvição e a penitência sempre variava em função do “sozinho” ou “acompanhado”; se “com pessoas” ou “com animais”; assim como o número de vezes que o pecado havia sido cometido. No caso de roubo, tinha pouca ou nenhuma prática; no máximo, uns cachos de uvas na parreira do seu Edmundo e ainda mais junto com o seu filho, o Nenzinho. Roubou o que, pensava: uma bicicleta, uma banana, uma peça de roupa, ou sei lá o que? Cada roubo tem seu peso. No caso de atentados contra a castidade, se a coisa era “sozinho”, uns dois pai nossos; já “acompanhado”, a penitência era maior: quatro ou cinco pai nossos, umas dez ave marias e, às vezes, segundo o humor do padre, uma salve rainha.
- “Deus há de te perdoar, filho. O que você roubou?”
- “Que Deus me perdoe, tenho vergonha, senhor padre, roubei lá do meu vizinho umas garrafas de pinga. Sei que não devia, mas, na hora, sem pensar, roubei”.
- “Quantas garrafas, filho?”
- “Da primeira vez, uma, na segunda vez, duas...Não devia, mas fiz. Estou arrependido”
Fiz então algumas contas da penitência, mas, para ser justo e correto, precisava de mais precisão de informações. Uma idéia seria multiplicar o número de garrafas por cinco e o resultado seria o tanto de ave marias; o número de vezes do pecado definiria os pai nossos.
- “Então, filho, quantas vezes você cometeu este pecado?”
- “Bastante; meu vizinho tem um bar. Preciso parar. Vou parar com isso, padre me perdoa?”
- “Meu filho, reze cinco pai nossos, doze ave marias, um salve rainha e faça bastante sinal da cruz; um sinal da cruz para cada vez que você roubou. Fique com Deus, seus pecados estão perdoados.”
Sapatos limpos, brilhantes como novos, pago o velho engraxate e me despeço.
- “Adeus, filho”
Outra vez muito rápido, o velho engraxate toma minha mão e a beija:
- “A benção, senhor padre”.
Da banca do engraxate até o ponto de ônibus dava lá uns quarenta ou cinqüenta metros. Que porco e sujo sou. Já pensou se, baseado nesta falsa confissão, esse velho senhor vai à missa e comunga? Deixa de besteira: ter confessado seus pecados a mim, ao Dom Evaristo ou ao Cônego Arnaldo é tudo a mesma coisa; pior quem fez foi o Monteiro Lobato. Volto e confesso ao engraxate a minha farsa? Não, tá louco, o velho vai virar bicho. Deixa para lá. Não dá. Se não falar com ele, penso que vou ficar com esta história me atormentando até sempre. Porque fiz esta besteira de confessar o engraxate? Poderia ter lido jornal, olhado a revista de mulher pelada que sempre tem nessas bancas, mas não, fico aí sabendo da vida das pessoas; saber da vida das pessoas tudo bem, mas não do jeito que fiz. Volto e falo. Volto não, sei lá como vai reagir o velho.
Volto.
O velho engraxate já está lá todo enturmado com seus colegas, cantando e fazendo samba com as escovas em suas caixas. Acho que até já esqueceu a confissão; ou não, o que é pior: crente de estar com a alma limpa, canta e se prepara para, amanhã, ir à igreja e comungar com sua velha.
- “Queria falar com você. Vamos tomar um café?”
- “Café não, mas uma pinguinha, sim, eu aceito”; e já estava o velho me arrastando, parando o trânsito da avenida para que, rapidamente chegássemos ao bar do outro lado.
- “Oi, Baiano, uma branquinha para mim e um cafezinho aqui prô seu vigário” e, me olhando de soslaio, “posso também uma cervejinha?” e já ordenando: “Dá também uma meia brama. Hoje, aqui o seu vigário está oferecendo.”
A pinga bebeu rápido, cuspiu no chão um pouco que era pro santo e começou a por a cerveja no copo. Meu pingado estava quente.
- “E aí seu padre?”
- “Não sou padre”.
- “Eu sabia.”
- “Como sabia? Até confessou pra mim que roubou pinga de seu vizinho?”
- “Que vizinho seu padre. Moro em pensão lá no Bexiga, que vizinho o que? Tudo brincadeira, nem casado eu sou” e, sempre muito rápido, deu um "tchau" para o Baiano, um outro para mim e atravessou a avenida em direção a roda de samba.
Acabei de tomar meu pingado, paguei o café, a cerveja e vi meu ônibus se aproximando. Corri, quase fui atropelado, mas atravessei a avenida a tempo de tomá-lo.
Alguma risada devo ter dado porque a senhora vizinha do banco, sorrateiramente, me deixou sozinho e foi ficar de pé ao lado do cobrador.