terça-feira, 29 de maio de 2012

PROFUNDOS SERTÕES–III–FOI QUANDO A OUTRA ALMA PENADA CONTOU DO ENCONTRO DAS MORTES!

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“A primeira vítima foi um cabo do 9. Morreu matando. Ficou trespassado na sua baioneta o jagunço que o abatera atravessando-o com o ferrão de vaqueiro. A onda assaltante passou sobre os dois cadáveres” - “in” Cunha, Euclides, Os Sertões, pag. 348

Me apresento: Fabrício do Cocobocó é o meu nome; cabra vaqueiro foi a minha profissão: conheci, quando em vida, todos os recantos destes sertões; sentia e podia recitar todos os seus cheiros das vezes tão santamente delicados, seus sabores agrestes, salobros e áridos de tanta secura, conhecia seus perigos para quem está vivo e suas belezas, sendo que estas, as suas belezas, costumo apreciar mesmo agora, sem vida viva que é como estou; sim, porque o sertão tem, para quem aprecia silêncios e noites estreladas, belezas que enchem a alma de felicidade, quase fazendo se esquecer das agruras das secas, das mortes e das doenças. Sertões! Mas como dizia: minha vida se baseava no trabalho de vaqueiro nas enormes fazendas e posses que iam além dos horizontes visíveis, propriedades do coronel Bartolomeu; terras e mais terras: sertões, planuras, chapadas, chapadões e gerais que eu, montado em animal valente, pernas vestidas com perneiras de couro de vaca, protendo dos espinhosos ju-etê, seguia a sina de vaqueiro: nos tempos de paz escanchado atrás das pegadas deixadas pelos garrotes, vigiando os rastros, rastreando as marcas deixadas nos matinhos dobrados, amassados, pegando garrotes fugidios ou rezes perdidas em vaquejadas trabalhosas de muita ajuda entre vaqueiros, noites de conversas do dia acontecido entre vaqueiros: se fala e se conta casos de amor, de assombrações, da caipora, de tudo até o sono chegar; quando os tempos não eram de paz, obedecia as ordens do patrão e aí seguia os rastros de cabras que mereciam as mortes por punhal ou pelas balas do bacamarte, matava e a cada morte fazia um risco no cabo de madeira do bacamarte: era meu jeito de contar os mortos por chumbo do bacamarte ou, quando se precisava de silêncio, pela lâmina afiada do punhal. Muitas mortes: mais de uma dúzia de riscos no cabo da bacamarte; sempre, é preciso se afirmar, sempre seguindo as ordens do Coronel: mortes por dinheiros, por invasões de pastos, por roubo de gado ou por causa da coragem ousada de alguém de bolir com suas filhas: tinha duas, muito iguais, flores de lindezas, princesas em suas brancuras, olhos castanhos esverdeados, sobrancelhas negras e contrastantes nos rostos claros da falta de bater sol, lindas, as duas, nos cabelos longos descendo as costas quase chegando nas alturas da bunda; demais de bonitas mas, aqui eu comigo mesmo, tinha medo até de pensar besteiras: vai lá que o Coronel, como dizia Chico Ema, sabe ler os pensamentos: Deus me livre e guarde! Nem nos pensamentos eu boli ou desejei as carnes brancas das filhas do patrão: Medo! Vontades menor que o medo. E foi chegado uns tempos que o coronel passou a ter interesses na Chapadas da Diamantina: de lá, da Chapada, se ouvia contar das minas de diamantes, das riquezas possíveis que rolavam meio as pedras redondas do rio Pati, um rio que corre depressa, cheio de água marrom, em cima das pedras redondas; rio Pati de muitas cachoeiras onde as águas quando caem espumosas tapeiam as vistas parecendo trocar a cor marrom pela branca; rio de muitos variados peixes bom de se comer: farturas! Na Chapada, tanto em Mucugê como em Andaraí, para onde patrão me mandou, meu trabalho era menos de vaquejar e mais de seguir rastros de cabras: sempre em obediência ao Coronel, e posso dizer que lá, por aquelas bandas fiz mais de uma meia dúzia de riscos na bacamarte: matados com tiros, matados com meu facão jacaré, com meu punhal afiado ou com a longa parnaiba que nada mais é que uma espada usada por nós os vaqueiros. Mortes nos sertões! Muitas! Demais de mortes! Estava vivendo assim, com muitas mortes, até que chega um dia quando eu estava na casa das mulheres da vida em Mucugê, recebi a visita de Estevão, cabra da mais inteira confiança do patrão: “Coronel mandou te chamar” e eu larguei as doçuras dos carinhos de Maria da Conceição e tomei rumo da sede. Longas distâncias, muitos pensares: "que quer o coronel de mim? tenho matado direito, sem deixar rastros, cumprido todas as mortes encomendadas; será que já me acha velho para os serviços que precisa? Será que ele pensa que a velhice já chegou e não presto mais para perigos? Que velhice que nada: Maria da Conceição diz que, na rede, quando me encosto em seus peitos, sinto seus lábios mais me assemelho a um garrote novo. Danada de bonita a Maria da Conceição: se fosse homem de parar e me conformar em viver em um lugar só, ter uma casa, me casaria com ela. Gosto dela! Mas, para saber mesmo o que o Coronel quer de mim, só chegando e palestrando: vou mais de antes é escutar e escutar, entender o que o coronel quer de mim: ouvir o capim crescer e não falar bobagens de comprometimentos. Quieto!” Viajei e viajei: apreciei mais andar nas noites claras de lua cheia que no dias de sol quente do agreste. Conhecia os caminhos, todos: rios secos, atalhos, evitei de passar nas terras dos inimigos do patrão, podiam querer vinganças. A lua cheia foi diminuindo, as noites foram ficando escuras, negras e tornei a viajar durante o dia: sol quente, cavalo cansado, a fome apertando os dois: comi calangos, periás e cortei palmas, retirei os espinhos e dei de comer ao cavalo. Cheguei na sede e o Coronel me recebeu na varanda. Li em sua cara, antes mesmo dele iniciar sua conferência, que eu tinha sua confiança: seu bigode não tremeu em riba da boca e ele não demorou a contar o que queria: “Fabrício, vaqueiro bom: preciso de seus serviços! Careço de um cabra como você: honesto e cumpridor de ordens, mas corajoso e sem medos de matar e morrer. Preciso que você tire esta roupa de vaqueiro e vista a roupa azul do Exército Nacional da República do Brasil; é isso vaqueiro Raimundo, porque somos hoje uma República, a monarquia se foi, rabo entre as pernas, fugida para o Portugal das Europas, de onde nunca devia ter saído, e preciso de você na defesa da República contra os perigos que corre pelas ações dos bandidos do Antônio Conselheiro em Monte Santo e em Canudos. E é para lá que eu quero que você vá agora cumprir outras tarefas. É o que quero e preciso.” Troquei de vestimentas: tirei o gibão e o chapéu de couro em troca de um boné e um blusão azul, de algodão, os dois largos, sobrando panos na cabeça e nos peitos; desvesti as luvas de couro e os guarda-pés e vesti calças azuis e uma botina de nome estranho: coturno: apertava os dedos, dificultava o andar. Deixei o cavalo e viajei de trem: junto de mim, outros soldados, todos de azul: louros alguns com conversas de difícil entendimento, manias estranhas, diferentes. Fomos, soldados da República, de trem. O trem parou estacionado em Queimadas: soube que nos começos era mais para eu rastejar meio das caatingas na procura dos rastros dos homens soldados do Antônio Conselheiro, nossos inimigos a partir daquele então, a partir daquelas ordens! Viva a República! E uma manhã o homem Capitão, branco de dar medo, bigodes enormes cobrindo a boca, quase chegando nas orelhas, calças largas parecendo saia de mulher ordenou em sua lingua um pouco diferente da minha: “você conhece o agreste, sabe das manhas dos bandidos: abre caminho, descubra atrás de que espinhos, de que matos e de que pedras eles se escondem”. E saí a procura, não mais de rezes e de cabras que boliam com a filha do patrão, mas sai, naquela hora atrás dos bandidos que queriam arruinar a República Federativa do Brasil. E foi então que nas gargantas do Cambaio encontro Quinquim do Caiaqui, todo emboscado: parecia um teiú marrom, roupas de couro, enfiado no meio das pedras, muito acima do Vaza Barris, apontando a espingarda de chumbo. Me viu. Vi que ele me viu! E a gente se viu caminhamos devagar, um pro lado do outro, pés pisando quietos igual o voo da coruja, olhos sem piscar, atentos, cada um em direção do encontro do outro sem medo nenhum: Viva Bom Jesus! Viva a República! Tão perto que cada um sentiu o cheiro do outro; uma pontada forte e vi minha barrriga abrir, meus buchos saltar fora do corpo, barriga abaixo, se arrastando e fedendo tudo de bosta: foi a força do corte do facão “jacaré” de Quinquim; Viva Bom Jesus! E então, eu, com os buchos de fora procurrei todas as forças que tinha e enquanto as merdas se esparramavam pelo corpo, sujando as calças azuis do Exército da República do Brasil, atravessei seu peito com a baioneta: Viva a República! Viva Bom Jesus! Viva a República...Viva Bom Jesus! Viva...E naquele dia não risquei meu bacamarte com mais aquela última morte. Morri! Morremos! Foi assim, não foi? Ainda se lembra, Quinquim?

domingo, 13 de maio de 2012

PROFUNDOS SERTÕES -II–QUANDO A PRIMEIRA ALMA PENADA CONTA A MORTE DO BOI MANSINHO.

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“Sangrem minha goela, mas não matem o Boi Mansinho”, gritou a beata conhecida no Juazeiro como Maria Tubiba” - “in” Neto, Lira – Padre Cícero –
No céu apenas uma nuvenzinha que em sua cor cinza anunciava que não tinha força total para fazer chuva; estava ali, a nuvenzinha cinza, mais para enfeitar – desenhando uma figura que lembrava um anjo de trombeta à boca - o céu azul daquele dia de outubro; nuvem fraca de pequena, sem forças para fazer chover e nem mesmo para fazer sombras aliviadoras do sol quente. A praça, que rodeava a igreja branca, estava o mais possível cheia de gentes – homens, mulheres carregando filhos, velhos de pitos na boca e velhas mascando fumo - quanto podia ter Juazeiro naqueles tempos de Padim Cícero vivo e santo; e, na praça, todos aqueles povos reunidos esperando o que não esperavam e não queriam, isso se as notícias fossem mesmo verdadeiras. “D’onde já se viu matar na praça o Boi Mansinho, que nada fez de mal a não ser milagres e bons milagres com a graça de Padim Cícero e de Deus Nosso Senhor? Qual é o mal em fazer enxergar quem está cego? Ou qual é o mal em fazer andar quem está inválido das pernas?” é o que, ali reunidos na praça, matutavam enquanto ouviam os berros chorosos da beata Maria Tubiba que ecoavam pela praça e iam rebater mais longe ainda, lá pros fins de Juazeiro. O ar cheio de tristezas!
E era eu, Quinquim do Caiaqui, que me apresento, quem levava, segurando pelo cabresto, o Boi Mansinho que como um cego guiado, sem saber de suas forças obedecia os caminhos que eu decidia e me seguia com seus passos lentos, seus olhos negros, doces, preguiçosos; adentramos praça a dentro: Boi Mansinho com os dois chifres enfeitados com guirlandas de flores que eu colhi e com cipó amarrei e construí; duas vistosas guirlandas, uma para cada chifre, feitas de vermelhas palmas de nossa senhora, de azuis flores de jacarandá mimoso e de rubras cristas de galo. E eu, naquela hora, enquanto conduzia o Boi Mansinho para a morte, pensava que se eu fosse o Mansinho me punha a correr, a chifrar, a bufar e a berrar forte: mostrar as forças de filho de Deus; mas eu não sou o Boi Mansinho, que segue quieto e sonolento para seu calvário de morte, e quem berra é a beata Tubiba; e sou eu que mostro e guio o caminho de sua morte, a sua via cruz e foi por ele, por Mansinho, que estou aqui agora em Juazeiro. Não sou daqui não! Sou de mais longe: eu que tinha e vivia a minha vida de vaqueiro nos confins dos sertões, longe daqui. Vou contar das mudanças! Uma manhã patrão chamou e ordenou: “Quinquim preciso de seus serviços de vaqueiro. Quero que me leve, são e salvo, este garrote até Juazeiro: é um presente meu para o Padim Cícero que anda precisando de boi bom para cobrir suas vaquinhas de pouco leite, sem raça qualquer.” E eu que ao ser chamado na sede pelo patrão pensava em ter que afiar o punhal para cumprir mortes, parti, montado em cavalo manso, puxando, com toda a paciência que Deus me deu, o garrote bonito, pelo lustroso, cupim querendo dar mostras de touro cobridor de vacas, a bolsa dos ovos grandes balançando, pedindo vacas: queria e queria fazer filhos. E eu vim! Vim com Boi Mansinho que entreguei com bilhete escrito pelo patrão diretamente ao Padim Cícero que me deu a benção e pra quem pedi que ajudasse a me livrar do vício da cachaça! E aqui fui ficando, ficando: o que fazia? Trabalhando nos cuidados com o Boi Mansinho e das vacas, arando terras para o plantio de aipim, obedecendo às ordens do Beato José Lourenço. E foi então que um dia chegou a polícia que prendeu o Beato e um soldado de longos bigodes e cara de mal ordenou que eu - “Eu?” perguntei e ele “Sim vosmicê, mesmo, é surdo, por acaso?” – guiasse, para a morte na praça, o Boi Mansinho. A morte foi na praça: Mansinho - parecendo formiga que leva para dentro do formigueiro as sementinhas que matam - chegou mudo de quieto na praça toda rodeada de gentes e cachorros. Tudo feito de silêncios naquela hora, fora os berros da beata Tubiba. Então escutou-se:Tum!!!: barulho da marretada na testa do Boi Mansinho - Tum!!! – tão mais forte que encobriu os berros da beata e de antes desse Tum!!! seco Boi Mansinho me olhou com seus olhos negros, me arguindo do que que estava acontecendo e, sem resposta minha, que chorava por dentro, se ajoelhou e deitou seu enorme corpo ao sabor dos chãos da praça. Morto! Na cadeia o Beato João Lourenço virou de costas para não ver os acontecidos e também chorou lágrimas de dor pelo Boi Mansinho. Deixei, morto na praça, o Boi Mansinho e com os trocados que tinha comprei cachaça e bebi. Bebi e bebi querendo respostas que não tinha para as perguntas das maldades que via. Na cadeia conheci Raimundo da Boca Torta e foi com ele, com Raimundo, que fui para Monte Santo, de Antônio Conselheiro: montados em dois cavalos e dois jegues carregando barris de cachaça. “Vamos vender e enricar: ferve de gente em Canudos” disse Raimundo e fomos. Aquilo tudo não me cheirava coisa de Deus, mas estava descrente demais: se mataram o Boi Mansinho que só sabia fazer cobrir vacas para gerar filhos, fazer as vacas encher as tetas e dividir os leites com os bezerrinhos e todos nós, então porque foi morto o Boi Mansinho? que fora isso, cobrir vacas e gerar filhos, só fazia outro bem: milagres e mais milagres bons para pessoas, nada de mal, nada do capeta, do demônio. Cachaça é coisa do capeta ensina Padim Cícero e eu com o Raimundo levando a bebida da desgraça para Monte Santo, do Antônio Conselheiro, para ganhar dinheiros se enricar e depois ir para onde eu não sei. Na praça de Monte Santos os barris de cachaça foram estraçalhados com foices e marretas e a catinga da cachaça derramada, que formava um corgozinho na praça seca, encheu os ares e se esparramou por todos os arredores: crianças e velhos tossiam causa do cheiro forte, mulheres rezavam dando glórias e os homens enchiam nossos corpos de palmatórias dolorosas, ardidas: “vão matar a gente” berrou Raimundo, “morram filhos do demônio, filhos do capeta” e chegou Antônio Beato, que a tudo espiava e ordenou o fim dos castigos. “Num quero voltar para Juazeiro, Beato Antônio: lá acabaram de matar o Boi Mansinho” e Beato Antônio olhou meus olhos pedindo verdades e eu respondi com olhos de verdade: “Quero ficar” e fiquei. Autorizado! E então, pelos meus conhecimentos das regiões e por minha braveza e coragem no uso do punhal e da espingarda legítima de Braga me tornei e me fiz guerreiro do Bem, guerreiro do Santo Conselheiro. De Deus!

quarta-feira, 2 de maio de 2012

PROFUNDOS SERTÕES - I - DUAS ALMAS PENADAS.

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“- Cemitérios gerais
que não toleram restos.
- Nem mesmo um pouco que se possa
encomendar ao céu ou ao inferno.
- Eles, todos os restos
da mesma forma tratam.
- Talvez porque os mortos que têm
não tenham tal resíduo, a alma.”
“in” Antologia Poética, “Congresso no Polígono das Secas (Ritmo Senador; sotaque sulista)”, João Cabral de Melo Neto, pag. 88.
Secura quente: impiedosa com os homens, com tudo: com os matos, com os bois e suas fêmeas vacas, com o bode de costelas pontudas à mostra, cozinhando ao sol, querendo escapulir pelo couro afora; impiedosa com a cabrita de tetas vazias e os cabritinhos filhos, famintos de leite, berrando méeee! méee! desafinados, agudos! e ao mesmo tempo socam, com a cabeça pequena, sem dó nem piedade, no limite de suas forças fracas, a teta murcha da mãe cabrita - teta mais parecida com um jenipapo maduro de tão enrugada, mole, oca por dentro, sem leite: seca, seca. Os olhos dos bois, das vacas, do bode, da cabrita e dos cabritinhos vigiam o córrego seco, poeirento, sem água: tudo seco e seco e quente, muito quente. E foi às margens do córrego seco que se amontou aquele bando de ossos, puro ossos, nada de carnes, ossos parecendo espadas enfiadas dentro de peles opacas, sem brilho – tanta sede – : cada bicho, filho de Deus, se assemelhando a um fantasma mal desenhados de torto; andam e olham devagar, economizando energias e buscam, passos lentos, solidários em sua miséria, a sombra da quixabeira. E cadê Deus? Deus não é sertão? Ali perto, encostado mesmo na quixabeira, só que na outra margem do córrego, solitários postes de cimento, quentes, enfiados no chão da terra há anos para cercar a casa da bomba que ia chupar águas ali daquele córrego para jogar longe, para quem dela necessitasse – homens, terras, vacas, cabritos e jegues, lavouras de milho e de aipim - : “tudo aguar e acabar, de vez, com as securas quentes do sertão”: palavras do engenheiro do governo, apressado de voltar logo, tanta quentura e silêncio: veio e voltou em um jipe preto da policia, vestido com calça azul, bonita, sapatos de tênis e uma camisa cor de rosa onde se via bordado um jacarezinho verde, boquinha aberta, pouco acima dos peitos do engenheiro.
Urubus! Se equilibrando nas pontas dos sete postes de cimento, enfiados ali sabe Deus há quanto tempo, naquele mundo de sol quente e de tristes mandacarus, para cercar com arames farpados a casa da bomba, agora, tão vazia quanto o córrego seco, sete urubus esperam comida, “que pode atrasar mas sempre chega”, assuntam eles entre eles mesmos dentro de suas roupas negras, cabeças encimando os pescoços cinzentos, enrugados, bicos curvos que nem do carcará. Quietos, pensativos, esperançosos de carniça comível, os sete urubus. E se fossem assustados, afugentados, tocados do alto daqueles postes de cimento colocados ali no meio do sertão pelo governo para cercar a casa de bombas, por alguma alma qualquer? Mas que diabo de alma é que poderia assustá-los ali naquele cerne ignoto do quente sertão de ninguém? Quem os assustaria? Oras, quem? tanto poderia ser um cabra ou um jagunço que por ali estivesse a passar, e cansado, enxergando a verde quixabeira sonhasse em desfrutar de sua sombra fresca ou então a cachorra Baleia, se ela tivesse resistido e não tivesse morrido de tiros de espingarda nas vidas tão secas do sertão. Delírios: e então o homem, Fabiano, e Baleia querendo descansar de suas retiranças na sombra da quixabeira, vendo os urubus negros iriam querer sumir com eles dali de perto de seu descanso: ele grita rouco “Choooo! Chooo urubus!” e a Baleia late fraco “Au! Au...” balança o rabo, mostra os dentes brancos na boca pequena e seca d´água. E os urubus, sem medo daquelas forças fracas do homem e da cadela, os dois – cachorro e homem - puro ossos, apenas por atávica obediência às ancestrais leis da natureza, deixam, contra suas vontades, o repouso equilibrado nas pontas dos setes postes de cimento e voam um voo quieto, calmo e silencioso, baixo, sem a força dos ventos que não sopram ali no sertão: tudo parado. E a Baleia, não fosse o cansaço e a fraqueza, latiria mais “Au! Ai! Au! Caimmm!” e, dentes à mostra, furiosa, correria querendo morder as sombras das aves que, projetadas pelo sol quente, dançam silenciosamente em cima do chão seco, assombreando e escurecendo ainda mais as bromélias rubras, os xique-xiques, as espinhudas cabeças de frade, os croás e as pedras arenosas daquele pedaço de sertão adusto. Mas, é bom que se diga: Baleia quer é descansar à sombra da quixabeira: e deita, enfiando a cabecinha pequena entre as patinhas e pensa: “careço de descanso para encompridar o fio da vida, esticado e fino”. Ela sabe e sente. E o homem? Fabiano assusta-se, e com razão, pois se a Baleia não estivesse economizando suas forças de viver e, se esquecendo de tudo, seguindo seu costume de sempre, se pusesse a correr, querendo caçar e morder as sombras dos sete urubus ele, homem crente em Deus, veria de perto – “com os olhos que Deus me deu e que Santa Luzia cuida e zela” - coisas do Demo, do capeta: “caduco, eu? a fome e a sede agora deram para tapear meus olhos, meus enxergares? Só pode ser coisa do capeta sete urubus voando no céu e aqui na terra quente de arder apenas cinco sombras? Ou será que contei errado?”; temeroso de estar caducando, esperançoso de ter se enganado, resolve testar se seus olhos  enxergavam com correção as sombras dos sete urubus afugentados e resolve tornar a contar, agora com a ajuda dos dedos das mãos; não quer errar aqueles números de urubus voando e suas sombras dançando no chão: números que não estão certos e, para não errar, vai contar não só com os olhos, logo ele sempre tão esperto e elogiado em contar cabritos e vacas, carecer agora da ajuda dos dedos das mãos para contar sombras de urubus. Então, viu uma sombra, marcou bem como sendo a primeira, encolheu o dedão grosso da mão esquerda e contou : UM; outra sombra agora em cima do xique-xique e o indicador encolheu-se junto do dedão e ele contou DOIS; e foi a vez do maior de todos os dedos se encolher fazendo cócegas na palma da mão e Fabiano contou TRÊS tão logo a outra sombra enegreceu a bromélia rubra, e depois foi a vez do "seu vizinho" perto do minhguinho e longe do indicador - que nunca se deve apontar para as estrelas porque nasce verrugas no rosto - se encolher e ele contou QUATRO e até que chegou o minguinho, pequeno, com a unha comprida boa de limpar o nariz de suas porcarias e uma sombra de urubu cobriu o croá e ele contou CINCO. Não mais sombras: Cinco. Só e apenasmente cinco sombras de sete urubus que sobrevoavam a quixabeira e a casa de bombas ao lado do córrego seco. Como pode? Não, não pode. De novo, agora tenso, medroso de sua caduquice – “não tenho assim tanta idade para caducar, só pode ser a fome” – recontou: CINCO sombras no chão e sete urubus voando e voando. Baleia dormia à sombra e o homem temeroso do que acontecia aquietou-se e os sete urubus com suas cinco sombras voltaram a se equilibrar nas pontas dos sete postes de cimento. Reequilibram-se nas pontas dos postes e se põem a cutucar, com os bicos curvos, as penas das asas, se asseando das poeiras e de outras sujeiras.
Baleia dormia e sonhava e, foi então meio sonhando e meio dormindo que ela espreguiçou-se toda, se esticou para tudo quanto é lado, falou: “num tá maluco não: contou direito com a cabeça e com os dedos da mão. O que tem é que neste bando de sete urubus, tem dois que comeram carniça humana, melhor dizendo, comeram os corpos magros de carnes de dois cabras mortos meio do no sertão, e de tão esfomeados que estavam de tanta ausência de comer, não perdoaram e comeram tudo, cada qual, até os corações do homens que fornecia as carniças e junto do corações engoliram, junto, suas almas. Corações e almas! E então, é por isso, só por isso, que estas duas almas penadas estão presas dentro daqueles dois urubus dali da beirada, os dois mais daquela ponta, também os mais quietos. E as duas almas penadas estão ali desde então que não se sabe quando, dentro deles: quietas, calminhas, escondidas, bem dentro do coração dos dois urubus, que desde aquele então de momento, são possuidores de duas almas: a sua própria, a alma que Deus deu a eles quando nasceram - horrorosamente feios: pelados de penas, olhos enormes querendo sair da cabeça - , de dentro de ovinhos brancos que passou a ter junto dela as almas dos cabras mortos.” Fabiano, para se distrair do medo, passou de novo a fazer contas: dois urubus, quatro almas, então os sete urubus somam nove almas: e usou , naquela nova conta, quase todos os dedos das duas mãos, faltando apenas um dedo para chegar nas dez almas. “E tem mais:” continuou Baleia, agora toda prosa de seus conhecimentos, “estes dois urubus, eu acho que pelo peso de carregar mais de uma alma em seu corpo, sofreram transmutações em seus corpos. Como assim? Um momento, calma, explico: o sol e seus raios quentes atravessa os seus corpos adentro, se enfiam por lá e não voltam para fazer sombra; fica igual a gente – cachorros, homens, árvores, montanhas - quando acontece o meio dia: o sol vem e se enfia pela nossa cabeça a dentro se esconde em nossos profundos, junto de nos nossos corações e de nossas almas e fica por lá esquentando e aproveitando do calor de nossos corações se esquece de voltar para gerar a sombra; e é por isso que o sol do meio dia é mais quente , quente de sol sem sombra, iguais destes urubus aqui de perto de nós, com uma diferença: é que neles, nestes dois urubus , o sol sem a sombra se esconde a qualquer hora do dia e os corpos dos urubus de duas almas, dos que não têm sombra, estão dia e noite a guardar todos os sóis dentro deles e toda a quentura do sol fica lá no meio das suas almas, esquentando as duas e guardando luz para, de noite, fazer brilhar, de dentro de seus olhos, uma lamparinazinha parecida com a dos vaga-lumes, que é assim que os urubus de duas almas orientam caminhos ou assustam os cristãos passantes. Carece ter medo não”.