quinta-feira, 31 de julho de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES - XIV - E FOI QUANDO ARCEBIDES ENCONTROU O SEU DESTINO!

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“Na estrada de Caxangá

tudo passa ou já passou;

o presente e o passado

e o passado anterior” - “in” João Cabral de Melo Neto, O motorneiro de Caxangá

E foi Luzia que um dia me falou com sua voz aveludada: mas veja pois Arcebides, o que importa se você não tivesse fugido de sua vila lá nos Jequitinhonha por causa da morte do delegado, que nem foi você que matou? nos de hoje, no de agora, isso pouco importa, pouco valor tem, e sabe por quê?, porque, Bem, você fugiu e pronto! Isso de ter ficado lá, perto de sua mãe e de seu pai, não existiu, não é essa a sua vida: a sua vida é que você fugiu por causa da morte do delegado que você não matou; e aquela sua fala – ainda hoje sinto um pouco de vergonha de contar - me assustou, achei muita clareza naqueles ditos. Nós dois estávamos, Luzia e eu, deitados com preguiça, descansando na cama, foi em uma tarde de outubro ou novembro, e aquela fala de Luzia cravou fundo dentro de minha cabeça: de verdade eu nunca em antes tinha pensado assim, e fiquei admirado da sabedoria de sua fala e nós dois deitados com pouca roupa na cama, era de dia, o sol lá fora queimava os arrozais, retorcia as folhas dos pés de milho, era tempo de uma secura geral mesmo ali nos goiás das veredas e dos chapadões e foi que bateu em mim uma saudade das caatingas cinza, do ar seco que entra nos peitos e sangra o nariz quando se respira fundo queimando os pulmões. E Luzia – adivinhando, será? - tocou com sua mão pequena e lisa meu ombro nu: pensa em voltar para lá, para junto dos seus, Bem?; ando pensando nisso, mas não tenho mais certeza de nada, lá tudo é nos iguais, e é sempre em cima do que já existe, do que se conhece, que é que se constrói o futuro, e nos meus maiores momentos de agora o que imagino é fazer um futuro diferente, um futuro desligado do passado, será que dou conta disso? E Luzia soltou todo o corpo em cima do meu, falou baixo: dá conta sim, Bem!; e foi ai que me dei conta que gostava de Luzia.

Luzia, uma mulher que parecia duas: uma delas era a Luzia - tia na casa das putas de Dona Inês - que gostava de ronronar feito gata no rabo do fogão, se aquecendo nas brasas dos fregueses, uma Luzia faceira, que apreciava manejar meiguices, sonhos e tinha a outra Luzia: olhos negros, carinhosa e por demais entendida da vida, que sabia encontrar o que se passava em meu coração, lembrando um pouco a mãe da gente – com o perdão da comparação - , mas – lembrava sim - uma mãe nova, esperta, amiga era o que era essa outra Luzia, de abraços e carinhos tantos e eu – cheio de decidida coragem - resolvi arguir: não quer ir conhecer as caatingas do Jequitinhonha?; mas Bem, mode o que, ir para lá Arcebides? acha que carece mesmo?; a gente pode ter lá uma casa pequena com um jardinzinho na frente, plantar um pé de rosa vermelha, que acho a mais linda, no outro lado, bem em frente à porta fazer canteiro com onze horas coloridas, malvas cheirosas, cravo de defunto, desenhar um arco-íris de tantas cores, você não gosta dessas belezuras?; muito, gosto é por demais, e também de ver as galinhas ciscando as folhas atrás de escondidas minhoquinhas de um chiqueiro com porcos de engorda para matar e comer carne, fazer banha. E fomos ficando a falar, conversando os dois com os corpos encostados um no outro e aquilo foi acendendo vontades, desejos, misturando sonhos com carinhos, e resolvi de vez que queria viver com Luzia, que mostrava ali naquela tarde, com o sol alumiando lá fora, que não tinha nojos em seus préstimos de mulher, a cabeça cheia de invencionices, os dois juntos, colados, aquilo por demais me agradava: e é isso que deve ser a vida, é o leste que ando atrás, será, mesmo?

E naquela tarde combinamos o futuro.

O senhor vê – nos de agora - o nosso sítio, a casa em que construímos com tijolo e telhas de barro, aqui moramos, tem o chiqueiro com porcos, o curral para tirar o leite, a tulha com fartura de milho para ser trocado por fubá, a charrete dom rodas de pneumáticos, mais nos fundos a mina d’água clara, boas terras para o plantio, o chiqueiro hoje com cinco capados de engorda, se bem que agora, com a idade que chegou, temos trabalhado menos, respeitado mais os dias santos e os dias de sábados e domingos, comida até sempre tem com a graça de deus, filho para criar não tivemos, os cachorros guardam a casa quando vamos dormir na vila para rezar na igreja em dias de festas de santos, o jardim com o pé de rosa vermelha, o canteiro de onze horas, Luzia fez outro com cravo de defunto e malva cheirosa, no fundo da casa, perto da mina, o pé de manga rosa, que carrega nos janeiros, manga das melhores, amarela, cheirosa, chamando passarinhos pequenos – sabiás, sanhaços, tiés - e bicudos tucanos e, sabe o senhor que mesmo ainda hoje, na velhice, apreciamos de gostar de esquentar cada um o corpo do outro nos frios das noites, de conversar de nossa vida nas tardes quentes de dezembro, os dois aqui vivendo ao deusdar, fechando os olhos para não ver o doer das dificuldades esperando o de noitinha para acender rádio de pilha com boas modas e o dormir no silêncio das caatingas do vale.

Pois é essa vida que ando a viver e é o que me leva a pensar que encontrei o meu destino, achei o lugar onde carecia de ficar, o lugar que sempre andei atrás, meio sem saber, mas que para ele sempre havia rumado: sabe o senhor que penso que é assim que vivemos a vida que, de verdade, não passa das boas coisas e das besteiras que fizemos até o dia de ontem, e que o hoje nada mais é do que o ontem de amanhã, uma vida de difícil entendimento quando se pensa forte na busca de seu entendimento, e até, no mais das vezes, desisto de entender e passo a querer apenasmente, com a graça do bom deus, viver.

Foi bom ter contado ao senhor e agradeço a paciência de ter me escutado, mas chegou as horas do descanso, do cerrar os olhos, dormir se esquecendo, se apagando a vida no escuro do sono e aguardar a claridade do amanhã, se ela chegar. Boa noite!.