domingo, 12 de dezembro de 2010

A pedra do VELHO DEITADO: outra história

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“Quero ser feliz

Nas ondas do mar

Quero esquecer tudo

Quero descansar.”

Manuel Bandeira, Antologia Poética.

Aprendi a gostar da pedra do Velho Deitado. Não me cansa ver a cabeça negra, com seu longo e afilado nariz, ser vagarosamente tragada pelas ondas para, horas depois emergir meio às brancas espumas: tornou-se um amigo que, silenciosamente, ameniza a solidão que a velhice sempre traz consigo.

Rodeando a pedra do Velho Deitado pequenas lagoas se formam: são negras em seu piso de pedras e verdes em suas águas límpidas. São nestas lagoas que muitos pescadores caçam não só pequenas iscas para seus anzóis, mas também, com artesanais e pontiagudos arpões, belas lulas e polvos feios com seus olhos enormes e tristes.

Entre os pescadores de perto da pedra do Velho Deitado destaca-se Barsanufo: um negro esbelto em seu corpo de mais de setenta anos, peito e cabeça totalmente cobertos de pichainhos brancos, como se aqui fosse Europa ou Estados Unidos e tivesse caído neve sobre o velho pescador. Mas isso é bobagem: onde já se viu nevar em praia tão quente para esbranquiçar a cabeça do Velho Deitado e a do Barsanufo? Quem cobriu de branco a cabeça do Barsanufo e de verde o peito do Velho Deitado foi o tempo, foi a idade chegando, chegando.

Mas, voltando ao assunto: Barsanufo é considerado, aqui pelos lados da pedra do Velho Deitado, o melhor e o mais sábio nas artes da pesca, o que conhece a melhor isca para cada tipo de peixe, o melhor horário para pesca de cada espécie, o momento certo da fisgada. Em dias em que a maré baixa é de manhãzinha, coloca-se de pé sobre o peito do Velho Deitado, e com as mãos sobre os olhos, para se proteger do sol, vigia as ondas, olha, reolha e descobre onde os peixes estão. E aí, só, com suas varas e seus anzóis vai à caça.

Gosta de pescar.

-"Peixe para levar para casa e comer é o budião branco o que mais gosta. Tem o budião azul, mas este só se pesca em águas profundas." Para Barsanufo, na beira praia, no raso do mar, melhor peixe para se pescar e comer é o budião.

Eu o conheci quando limpava um budião de quilo e meio que havia acabado de pescar. Ao seu redor, enquanto limpava o budião, fez-se uma rodinha: um cinquentão goiano que passeava na praia, um jovem moreno, todo queimado de sol, com os braços tatuados e eu. Barsanufo concentrado na operação de limpeza do budião não nos via, ou fingia não nos ver: com uma faca afiada raspava as escamas, cortava o peixe pela barriga e retirava suas vísceras.

O goiano teimava em comprar o peixe: queria, por que queria levá-lo para fritar em sua casa, alugada para suas férias beira-mar. A cada investida do goiano, Barsanufo respondia: “é para comer em casa, com a família.”; “você pesca outro e leva para casa, me vende este. Quanto quer?” insistia o goiano, “ é para o almoço, comer coma família.”, encerrou o assunto Barsanufo.

Quando o goiano, mal humorado, desistiu de comprar o budião, o rapaz queimado de sol e eu já pensávamos em seguir nossa caminhada pela praia, Barsanufo disse sério:

- “Tem gente que come assim. Já eu não. Dos que levo para comer em casa, tiro as baratas do saco das baratas.” E enquanto falava, com sua faca afiada, fez um pequeno furo logo acima do olho do budião, tirou a pele e encontrou uma pequena cavidade – o “saco das baratas” – da qual retirou, com a ponta da faca, pequenas baratinhas do tamanho de um grão de arroz, brancas, leitosas. Umas cinco ou seis: todas vivas, espertas, espremidas como sardinha na lata, no saco das baratas. Repetiu a operação acima do outro olho do budião e mais uma leva de pequenas baratas foram retiradas e jogadas em um pequeno pocinho, perto da cabeça do Velho Deitado. No pocinho as baratinhas nadavam, ágeis, rápidas, parece que felizes, meio a tanto espaço encontrado, apertadas e comprimidas que estavam até então no saco das baratas.

No mar as baratinhas e no ar certo mal estar; a rodinha se desfez: o goiano, sem nada dizer, saiu; o rapaz moreno, queimado de sol, disse: “e a gente acaba comendo barata e, sem nada saber, acha gostoso.”, e eu a olhar as baratinhas no pequeno poço: buscavam minúsculas locas e lá se enfiavam e sumiam, aparecendo vez ou outra expulsas pelos sirizinhos pretos, donos da loca.

Barsanufo, em um outro dia, me disse:

- “ Só os budiões têm o saco das baratas. Tem um tipo de corvina, rara aqui, que tem uma pedra acima dos olhos; dizem os mais velhos que a pedra da cabeça da corvina é um santo remédio para curar dente de crianças e para segurar filho na barriga de mulher que têm dificuldade de sustentar criança no bucho. Agora as baratinhas do saco das baratas do budião é o seguinte: o budião as come no mar e elas vão para o saco das baratas, onde se protegem.”

Eu, calado, ouvia Barsanufo, que continuou:

“ Os mais velhos contam a história do negro Rufino, ainda dos tempos da escravidão, que foi quem iniciou e a poucos ensinou o feitiço que sabia fazer com as baratinhas brancas do saco das baratas dos budiões.

Quer que te conto?

Quer?

Bem, já que quer, e tem tempo para escutar, foi assim:

Rufino era um preto baixo, avesso às lidas do trabalho, viciado em mulher. Gostava do amor e exercia fortes poderes sobre as mulheres que queria possuir e as mulheres, enfeitiçadas, não resistiam à sua magia. Era assim que fazia: ficava vigiando a mulher desejada, observando onde a mesma desaguava. Em antes, nos tempos de Rufino vivo, contam os mais velhos, as mulheres usavam desaguar na praia, deixando sobre a areia branca uma pocinha úmida de mijo. E Rufino fazia então seu trabalho: recolhia a areia úmida de urina, punha em uma latinha com água do mar e lá colocava as baratinhas dos budiões que pescava; as baratinhas se infiltravam, como minhocas, na areia do mijo e faziam a mágica: a mulher, dona do mijo, se apaixonava por Rufino.”

Interrompi Barsanufo:

-“ Sabe que coisa parecida acontecia nos sertões de Minas, só que com formiga cabeçuda, que eram presas em caixas de fósforo com terra úmida de mijo de mulher. Os mais velhos contam que funcionava: era tiro e queda.”

Barsanufo continuou:

- “Pois então, aqui nesta praia, viveu e se enamorou por muitas e muitas mulheres o negro Rufino. Trabalhar não gostava, namorar queria sempre e demais. Esparramou filhos pelo mundo: filhos com negras gordas e novas, filhos com negras magras e mais velhas, filhos com moças virgens até encontrá-lo e com mulheres casadas e, assim Rufino esparramava amor nas mulheres e ódio e vontade de vingança nos maridos traídos e nos pais que tiveram suas filhas descabaçadas e engravidadas por ele. Mas estes nada podiam fazer: Rufino, diziam, tinha acordo com o CAPETA, com o DEMO. Em troca de sua alma a COISA protegia seu corpo de facas, de balas, de punhais e até mesmo de pauladas; assim, Rufino não era, em qualquer luta, jamais ferido e vencido.

E vivia assim: para o amor. Só prejudicava as pessoas quando namorava e possuía mulher dos outros, ou fazia filhos em meninas novas, que tinham que depois de parir sustentá-los, pois amava os filhos mas não os criava. Conta-se que mesmo o xixi de Sinhazinhas brancas, como as baratinhas do saco das baratas do budião, foram, às escondidas, recolhidos e colocados em sua latinha com água do mar junto às mágicas baratinhas. E assim, graças aos encantos de Rufino, da filha mais velha do senhor do engenho nasceram dois meninos mulatos e da filha do administrador da casa da farinha nasceram Jonas e Ernestina, também mulatos. Correu, em seu tempo, o boato de que a repentina viagem para a Europa da filha do Governador foi por motivo de filho de Rufino na barriga e que na Europa, parece que na França, onde tirou o filho do bucho, refez o himem para poder voltar e casar virgem com Espósito, filho do Coronel Moreira Cezar.

Chegou hora em que Rufino adoeceu, picado pelo barbeiro.

Ficou com o coração grande, fraco. Rufino, mal podendo falar, dizia que seu coração tinha ficado grande, aumentado até encher o peito, dificultando a respiração e impedindo de ir à pesca do budião, era inchaço de amor, que não tinha doença ruim mas uma doença boa de se morrer.

E contam os mais velhos que todos - maridos traídos, pais de moças virgens por ele descabaçadas e mães de seus filhos, mulheres negras e gordas com seus seios grandes como um mamão, mulheres negras e magras com seios pequenos como uma doce e saborosa manga, mulheres brancas como as baratinhas do saco do budião, todas as mães de seus filhos – enfim todas as almas vivas desta praia e das de perto, compareceram e respeitosamente prestaram homenagem, cobrindo de flores e velas o corpo morto Rufino enrolado em branco lençol de algodão.

E foi aqui, nesta praia, em um silêncio em que se ouvia até o murmúrio das menores ondas roçando as pedras e a areia, que, atendendo ao seu último pedido, foi enterrado, junto às baratinhas do saco do budião.

Seu corpo virou esta pedra do Velho Deitado que é o negro Rufino”.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A pedra do VELHO DEITADO: uma história.

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“... Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão.” Dizeres proféticos escritos em grande número de pequenos cadernos encontrados em Canudos - "in" Euclides da Cunha, Os Sertões.

Impressiona a incrível semelhança da pedra negra, à beira da praia, com um homem deitado, em repouso; quanto mais se olha mais se vê o nariz pontiagudo, a boca, o tórax saliente, o umbigo e o braço estendido ao longo do corpo. Sua cabeça apóia-se em outra pedra, como em um travesseiro: dorme. As algas cobriram o peito de verde, trocando os pelos brancos da velhice pelo verde da eternidade.

Quando a maré-baixa chega a 0.1 fica todo mais visível, oferecendo uma visão perfeita, linda.

Me encantam as pedras negras da praia. Na infância via formas nas nuvens e lhes dava nomes: uma nuvenzinha era a vaca Surpresa, outra a égua Queimada, outras horas, mais de tarde, ao escurecer, via o Saci, a Mula Sem Cabeça e tinha medo.

Agora na velhice me fascinam as pedras da praia que em sua negritude, dureza e perenidade não mudam de forma como as nuvens, mas vestem-se e despem-se com a água salgada e rendada de espumas; a maré, ao subir, as encobrem lentamente, até desaparecerem e, também lentamente, com a baixa da maré, surgirem como que para se aquecer ao sol e tornarem-se referência e ponto de encontro dos namorados e amantes do mar.

A história da pedra do Velho Deitado é a que vou contar.

Quem a contou para mim foi Evilásio, que ouviu de seu pai, que ouviu de seu avô, de nome João Cocobobó:

- “Esta pedra é o meu avô.

Foi aqui que ele morreu, quietamente na água, protegido por uma baleia, que é esta outra pedra: é só prestar atenção para ver como ela cerca meu avô com seu corpo enorme, defendendo-o.

A história é verdadeira e dá para provar. Meu avô, que como já disse tinha por nome João do Cocobobó, seguiu seu pai para junto de Antônio Conselheiro, na vila de Canudos. Sua mãe havia morrido e ele se acostumado a viver, em um silêncio mudo, com o pai. Na vila de Canudos foi batizado por Antônio Beato que, em Canudos, como contou meu avô, era de tudo: sacristão, dizia a missa e tinha o privilégio de, junto com as beatas de azul, tomar refeições e orar junto com o Conselheiro.

Meu avô ganhou fama por tanto saber caçar: tatus, calangos, seriemas e peixes no Vaza-barris; também por isso ganhou clavinote e a confiança de Joaquim Tranca-pés para fazer trabalhos de vigilância e espiar as forças do mal que ameaçavam Canudos. Meu avô tinha, então, seus quatorze ou quinze anos: era muito pequeno, magro, quieto, sem nenhum pelo no rosto: parecia uma criança velha.

Com o cerco a Canudos, pelas tropas do mal, meu avô sabia dos perigos que corria e conhecia a morte: um seu amigo, também treinado para espiar, havia sido pego pelas forças do mal e ao ser assassinado com uma faca berrou: “Viva o Bom Jesus”; e posso afirmar, pois foi meu pai quem me disse, que este episódio está mais que provado, até escrito em livro que se lê nas escolas.

Quando o Conselheiro morreu quem a todos avisou foi Antônio Beato. Naquela noite meu avô foi destacado para ir até a estrada do Cambaio vigiar e contar o número de inimigos que chegavam e chegavam. O sino havia sido derrubado por balas de canhão e dias depois as torres da igreja forram ao chão.

Canudos foi invadida, destruída.

Meu avô, devido ao seu pequeno tamanho, apesar da idade de mocinho, ficou junto às mulheres, crianças e velhos. Seu pai tinha sido morto com um tiro no peito quando montava guarda em uma tocaia na estrada de Uauá.

Meu avô foi passado em revista, junto às mulheres e os velhos, mas nada foi encontrado: esperto e desconfiado, havia deixado sua garrucha, balas e uma peixeira escondidas em uma tocaia no alto da Favela.

Á noite meu avô fugiu. Conhecia a palmo toda a região. Durante uma semana, com as tropas do mal por perto, enfiou-se em uma caverna na serra do Cambaio e ali ficou dia e noite: de barulho se ouvia apenas seu respirar, às vezes o canto agudo das seriemas ou de um solitário trinca-ferro.

Aproveitou a chegada da lua quarto - crescente para começar sua viagem. Para onde? Ninguém sabia, nem Deus. Caminhava à noite: evitava assim, usando deste expediente, tanto as forças do mal que andavam pela região à caça de fugitivos de Canudos, como o sol ardente, que a tudo queimava. De comer? Bem, meu avô dizia que comia calangos, frutas de umbu e coquinhos de dendê. De beber? Água, quando achava, muitas vezes salobra, porque a sede é forte e não oferece escolha a quem a tem. Peregrinou sem rumo, guiado nos primeiros dez dias pelas estrelas e depois, quando se achou fora do perigo das tropas do mal, guiou-se pelo sol. Caminhou rumo ao Leste, sem saber o por que: puro instinto, “guiado por Deus”, disse meu avô a meu pai.

E viu, pela primeira vez, o mar. Encantou-se de imediato: maravilhou-se com sua grandeza, com suas cores que iam do verde claro ao azul escuro do céu, com as ondas que iam e vinham, batendo nas pedras incessantemente, sem se cansar, deixando, na areia, espumas que se assemelhavam às rendas de papel que as beatas faziam para enfeitar a igreja de Canudos em dias de prédicas do Conselheiro. Tudo lindo demais e, no ar, o cheiro o cheiro de sal que lembrava boas comidas e muita fartura!

Chegou à praia de tardezinha, viu tudo isso e buscou lugar para se esconder. Chegou a uma clareira ao meio de uma floresta de dendezeiros e, cansado, se ajeitou para dormir. Tirou da cintura a garrucha e dormiu com a peixeira atada, pelo cabo, com cipó, em uma das mãos, melhor dizendo, atada à sua mão esquerda: era canhoto. Acordou, com a lua ainda baixa, prenunciando início de noite, com barulhos e vozes na clareira. Nem abriu os olhos e se viu agarrado, preso por dois homens negros, altos, fortes: o maior pegou-o pelas costas, ergueu-o do chão; meu avô, suspenso no ar esperneava, gritava, dizia palavrões e pedia socorro a Deus, ao Antônio Beato e ao falecido Conselheiro. Berrou: “Me largue seu corno filho da puta, desgraçado do diabo” e a resposta veio logo: o negro forte, que o carregava pelas costas como se peso não tivesse, lhe deu um tapão no ouvido e ordenou que parasse de berrar como “um cabrito de merda”.

Ficou tonto e, ainda zonzo, foi atirado no centro da clareira da floresta de dendezeiros. Lá no centro da clareira se encontravam mais homens negros, reunidos em volta de uma mulher forte, gorda, toda de branco e de uma linda moça, também de branco. Flores e velas acesas enfeitavam uma colorida imagem. O negro forte que o carregara e lhe dera um tapão no ouvido disse ao grupo ali reunido, mas com o olhar na negra gorda:

- “Achamos este cabrito entocaiado na moita de dendê, mãe Onice”, sossegou por um pouco a fala e acrescentou: “só pode ser espía dos brancos.”.

- “Assente ele aí. Perigo nenhum: é uma pobre alminha perdida nos tempos, carece ter medo não.”, disse, com autoridade, a gorda Onice.

E, meu avô, acostumado às rezas e prédicas do Conselheiro e do Antônio Beato, na igreja dos Canudos, viu, sob o céu aberto, estrelado – sentindo-se protegido pela mãe Onice – uma nova liturgia, conduzida pela negra gorda, cujo corpo se agitava, e da garganta emitia estranhas palavras: “Tar tá ta ta... rrries, mozzz” enquanto virava e revirava os olhos. Mãe Onice perdia a serenidade bondosa da gorda face, trêmula, em transe: “ Se assentem todos... é chegada a hora... Zurrr... Ta trá to.. Rrrém, amém!”. E guiados por ela, rendiam, todos, graças a Oxossi, rei das matas, caçador imbatível.

Depois da cerimônia Mãe Onice levou meu avô com ela. Deu-lhe o que comer, para beber deu água limpa e clara e mostrou o paiol que tinha no fundo da casa, onde passou a dormir.

Desacostumado de família, de calor e carinho materno, meu avô era uma felicidade só; cedo se esqueceu de Canudos e de suas misérias.

Para não depender totalmente de mãe Onice ganhava sustento aprendendo ofício e ajudando na casa de farinha.

A barba teimava em não cobrir a cara e o corpo em fingir que era menino. Mas os pentelhos ralos foram surgindo, cobrindo a região do púbis e estranhos, indecifráveis e incontroláveis desejos anunciavam a meu avô sua mocidade. Mãe Onice, em um domingo, mandou matar uma galinha, limpou-a das penas em água fervente e depois com uma faca afiada cortou a borda superior do curranchinho, logo acima da cloaca da galinha, e deu ao meu avô: “Passe este sebo no bigode e na cara. Faz nascer e crescer barba para ficar com cara de homem.” Meu avô obedeceu. Como também comia carne de baleia, quando menos se viu, estava com o rosto pedindo navalha e o corpo crescendo a cada dia. Sonhava à noite que estava caindo do pé de coco e mãe Onice dizia: “ é porque você está crescendo; cada pulo deste na cama é um dedo a mais em seu tamanho”. Também sonhava com Dasdores, filha de seu Pitu, e acordava com a roupa suja e as pernas melando com grossa e malcheirosa baba.

Saiu da casa de farinha para trabalhar na queima do óleo de baleias: homem forte carregava os tachos quentes e respirava o mau cheiro da fábrica. E foi ajudando Zacarias no transporte do óleo da fábrica para as barcaças que se imaginou no mar caçando baleia. E assim se tornou ajudante de barco e depois mestre. Caçava baleias.

Casou com minha avó Rufina Dasdores.

Às tardezinhas, segurando a mão com minha vó e acompanhado dos filhos que chegavam, ia ver o mar.

Era diferente aquele mar que via ao entardecer - com as pessoas que amava - do mar que enfrentava durante o dia caçando baleias. Gostava mais deste mar, perto da areia branca, com peixinhos pequenos mordiscando o calcanhar das crianças que brincavam de nadar nos pocinhos, meio às pedras. De verdade, pensou meu avô, gostava de todo o mar: o que não gostava e o que o entristecia no mar de seu trabalho de mestre de barco baleeiro era a matança dos bichos: enjoou de ver o sangue das baleias mortas tingir de vermelho o azul da água do mar, enodoar as suas águas e suas carnes apodrecendo – fedidas – encher a praia de urubus famintos que pulavam e brigavam entre si e afugentavam os gaviões carcarás que vinham a busca de comida.

Certa feita, em alto mar, viu o que não podia: no horizonte uma enorme baleia mãe, que amamentava a filha; para lá teve, contrariado, que levar o barco e ver a baleia ser arpoada e ao receber na carne - no lombo, perto da cabeça - o enorme arpão, desesperada, chorar o canto triste de dor pela certeza da morte e da saudade que a morte lhe traria da filha.

Ajudou a descarnar a baleia, jogar os miúdos na praia: desta vez, sentiu enorme enjôo que o fez vomitar até as tripas chegarem à boca.

Triste recusou os pedidos da mulher e dos filhos para o rotineiro passeio à praia. Aquela tarde não queria companhia, precisava de solidão para se entender no mundo.

E foi só para a praia. No sagrado local em que ficava com a família a baleia filha chorava com seu canto desafinado e triste de saudades e de medo da solidão no gigante mar. E meu avô contou para meu pai: foi a primeira vez que chorou depois de homem feito.

Feriu propositadamente, com uma faca, o braço esquerdo, e foi, por isso, impedido de conduzir o leme do enorme barco baleeiro.

Mãe Onice faleceu.

Meu avô voltou a trabalhar na casa de farinha.

Seus filhos cresceram e nenhum foi autorizado a trabalhar com barco de caçar baleias. Dasdores morreu.

Me avô sabia, porque mãe Onice havia lhe contado dos perigos de se comer a delicada carne do baiacu. As peixadas de baiacu, muitas vezes, resultam na morte de todos os que saboreiam a nobre carne. “O perigo da morte é porque não tiram a pele, não limpam o peixe direito, mãe Onice?”, perguntou meu avô, enquanto ajudava mãe Onice preparar uma dúzia de baiacus que seriam servidos após uma cerimônia religiosa. “Nada disso: depende de quem faz. Se quem prepara pensa e quer a morte, o baiacu é um veneno só. Sua mãe Onice, não: gosta da vida e já preparou centenas de peixadas, todas elogiadas pelo seu sabor, e graças a Deus e a meu pai Xangô, em minhas peixadas de baiacu nunca houve morte, só vida, amor, meu filho.”, respondeu sorridente mãe Onice.

Meu avô se lembrou daquilo e resolveu.

Não foi trabalhar na casa de farinha e partiu com o barco pesqueiro de manhã: pescou cinco ou seis baiacus. Quis apenas um: os outros ofereceu à tripulação do pesqueiro, grato pela generosidade do passeio e da pesca. Recomendou que bebessem pinga na hora de preparar, que cantassem alegres músicas, pois assim, a carne do baiacu lhes traria felicidade, fartura na mesa e bons amores na cama..

Foi para seu canto preparar o baiacu; preparou a carne do baiacu no dendê e no leite de coco, como havia aprendido com mãe Onice; enquanto assistia a fervura da carne branca do peixe no dendê e no coco, pensava na morte.

Sozinho, à tarde, como sempre, vinha rezar aqui nesta praia. Era seu costume: já cansado e velho, sentava uma pedra a beira mar, rezava e esperava a maré subir até a água molhar seus pés.

Naquela tarde, enquanto tinha os pés salgados pela água do mar, enfeitados com pequenas espumas trazidas pelas ondas, meu avô comeu o baiacu que havia pescado e preparado.

Era uma tarde de março – época de marés bravias – e uma onda o levou.

Manhã seguinte, maré baixa, meio às pedras surge seu corpo que descansava deitado ao lado dos ossos da baleizinha.

O tempo passou e seu corpo virou esta pedra, que é meu avô.”

domingo, 21 de novembro de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: 1968, Nada Consta. Final: O DOPS.

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A reunião dos contadores de história estava se encerrando. Uma senhora de cabelos grisalhos, com um papelzinho na mão, acompanhou o contador da última história ao centro da arena e, antes dele iniciar sua história, tomou a palavra e disse:

- “Contadores de histórias: estamos nos finalmentes deste encontro. O nosso adeus - ou até breve – fica por conta do que vou ler, copiado do livro “Viver para contar” de Gabriel Garcia Marques: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.”

E a que seria a última história do encontro teve seu início:

“No bilhete, junto com o dinheiro da compra do quadro, escrito com letras de quem fez curso de caligrafia, elegantemente tombadas à direita, vinha o endereço: Edifício Copan, Rua...

E lá fui eu.

Não sei se já ocorreu com algum de vocês o que aconteceu comigo. Pois então: do estacionamento, onde deixei o carro e meus quadros, até o Copan, para onde, esperançoso me dirigi, tem por volta de um quilômetro, pouco menos, pouco mais e eu, posso garantir, nada vi, nada ouvi, nada senti em todo o percurso. Quando dei por mim estava tocando a campainha do apartamento 1360. Ocorrência inédita e explico o porquê: tenho o hábito, atávico, de frente a qualquer percurso me por a pensar, a refletir e a calcular, em uma tola tentativa de prever o que poderá ocorrer aos finais destes pequenos destinos. E sempre foi assim. Me lembro - e não lembro-me, como teima em corrigir este desobediente micro - que quando ainda no Ginásio, onde, por causa de meu diminuto tamanho, sentava na primeira fileira, o que significa que de minha carteira até a mesa da professora era coisa de uns três ou quatro passos, e, mesmo assim, ao ser sorteado para a chamada oral, o percurso naquele ínfimo espaço que separava minha carteira da mesa da professora se alongava a ponto de se a chamada fosse de latim eu recordar a primeira declinação: nominativo -a, genitivo - ae, dativo - ae, acusativo -an, vocativo - a e ablativo - a; ou mesmo os difíceis: hic, haec, hoc; já quando a chamada oral era feita pela lindíssima professora de Geografia, esquecia sua beleza morena e tinha tempo para relembrar, naquele pequeno percurso, os afluentes do lado esquerdo do rio Amazonas.

Mas, para não encompridar demais esta história: cheguei sem saber como, sem nada pensar ao apartamento do pai de Hamilton, amigo do Pedro Paulo; lembro ainda hoje do apartamento: grande, ventilado, limpo, mobiliado com móveis claros e com as coisas em seus devidos lugares; nas paredes belos quadros pintados a óleo e suaves marinhas de aquarela.

Estava ansioso e tenso.

Optei, educadamente, por um guaraná ao invés da cerveja oferecida; não queria beber: precisava da consciência clara, arguta, e tinha claro que um copo de cerveja sempre me levava a outro, e a outro e a outro até a língua crescer dentro da boca, aumentando a dificuldade de falar e entender com clareza, e a liberação, ao extremo, da libido.

- “Quando posso ver Pedro?”, perguntei de imediato.

- “Penso que esta semana, mas antes, por favor, tenha paciência: temos muito o que conversar. Meu nome é Danilo e posso saber o seu? Havia entendido pelo Hamilton e pelo Pedro que seu nome era Romeu, mas não bate com a assinatura do quadro. Qual é o seu nome?”, perguntou o Sr. Danilo.

- “Me chamo Romeu mesmo, nos quadros assino meu sobrenome: Rios.”, respondi com má vontade.

E o Sr. Danilo, calmo e simpático, colocou seu copo de cerveja sobre uma pequena mesa e enquanto bebericava:

- “Desculpe-me, é que são tantos os nomes e cognomes dos amigos de meu filho que às vezes me perco. Mas Romeu é o seguinte: Pedro Paulo é contra sua visita ao DOPS e vou tentar explicar seus motivos: ele teme, e tem lá suas razões, que sua visita seja interpretada pela polícia política com sua adesão à causa que o levou à prisão e, ainda, segundo ele, causa à qual você se mostra indiferente; assim, segundo seu raciocínio você poderá, ao visitá-lo, se comprometer, sofrer perseguição, ser preso, torturado, o que, para ele não seria ainda mais injusto do que o fato porá si só injusto. Por outro lado caso a visita seja encarada pelo pessoal do DOPS como afetiva, caso você insista, o preconceito quanto à relação afetiva ente dois homens poderá deixar Pedro Paulo em uma situação pior da qual já se encontra: à atual tortura física será acrescida a tortura moral e é por que Pedro acha que você não deve ir visitá-lo. Está me entendendo?”, perguntou Sr. Danilo ao ver minha expressão de incredulidade.

- “Quando posso ir visitá-lo?”, perguntei.

Na quarta-feira seguinte, por volta do meio dia, me encontrei com o Sr. Danilo na Rodoviária. Ele se vestia de modo informal e elegante; eu mudei radicalmente minha maneira de vestir: deixei no armário minhas roupas extravagantemente coloridas que foram trocadas por calças jeans velha e surrada, camiseta branca da Hering e sandálias da Bierkestoken; enfim, nada a ver comigo aquelas roupas que, penso, me deixavam tristes, um pouco amargo.

- “Nada de toques e emoções!”, repetiu, em voz baixa, com as palavras sibiladas entre os dentes, o Sr.Danilo quando adentramos ao DOPS.

Pedro Paulo estava magro, branquíssimo, barba mal aparada, e na face uma expressão de dor profunda; ao meu abraço respondeu, sem conseguir se conter, com um forte gemido de dor: tinha suas costelas quebradas. Seus lábios estavam inchados, havia escoriações em sua face e dois dentes haviam sido quebrados pelas mãos fortes e pelo soco inglês de um dos inquisidores. Eu havia levado uma boa quantia de sementes de abóbora torradas, pois sabia que o trabalho de retirar suas sementes com os dentes era calmante, fazia o tempo passar, o pensamento voar, fazendo bem a quem estava preso. Me senti culpado por não ter previsto a impossibilidade do meu tão querido Pedro Paulo não poder usar desta terapia: sua boca estava ferida, maltratada.

Mesmo assim nosso encontro foi comovente: estava vivo e, como sempre, esperançoso; contou-me que se sentia fortalecido em relação ao que acreditava ser sua missão, que o medo havia passado e que havia aprendido a suportar, com dignidade, as torturas. “Você se lembra que vimos “O caso dos Irmãos Naves,” no Belas Artes? Meio parecido.” disse tentando me confortar, creio.

Apertei suavemente sua mão na despedida e prometi voltar tão logo fosse possível.

- “Visita encerrada.”, assim aos berros, fomos convidados, o Sr. Danilo e eu, a nos retirar. Saímos juntos.

Sr. Danilo, bondoso, convidou-me para um guaraná no bar da Rodoviária; e lá, antes do guaraná oferecido fui ao banheiro público chorar: e chorei, chorei e chorei, e aquele choro convulsivo, sentado em uma privada de banheiro público, escondido não sei de quem, e, talvez, de mim, colocou minha alma para fora. Me senti vazio, inútil e com uma única certeza: viver não valia a pena.

Sr. Danilo me esperava no bar. Já havia pedido sua cerveja e no balcão um guaraná me esperava. Tomei todo o guaraná em um gole, pedi uma cerveja, depois outra, depois outra, e outra até sentir que a língua enchia minha boca, com as salivas grossas e amargas impedindo-me de falar fluente e corretamente. E, assim, bêbado, apoiado pelo Sr. Danilo, tomei um táxi e fui para casa e lá, livre, continuei a chorar e a chorar e a achar, mesmo, que viver não valia a pena.

Minha habilidade em desenhar com as duas mãos ao mesmo tempo, esquerda e direita, era motivo de admiração mesmo entre os talentosos alunos da Escola de Belas Artes. Explicando melhor: eu podia, ao desenhar um rosto, por exemplo, iniciar pelo pescoço e enquanto a mão esquerda traçava o lado esquerdo do rosto a mão direita, simultaneamente, desenhava o lado direito; e assim, fazia o mesmo com os olhos, nariz... Fazia sucesso com esta brincadeira que era feita tanto na lousa, com giz, como também usando os antigos e hoje em desuso pincéis atômicos, com os quais, nas grandes folhas coladas nos cavaletes do álbum seriado, desenhava rosto dos professores, caricaturas de políticos, de colegas, de jogadores de futebol.

Sabia também que a mais fácil maneira de falsificar uma assinatura era iniciar sua cópia pelo fim. Resumindo: unindo meu talento em desenhar com ambas as mãos e falsificar à confiança que Pedro Paulo e seus companheiros depositaram em mim, passei a ocupar parte do meu tempo em um trabalho de falsificação de passaportes, carteiras de identidade e outros documentos para militantes políticos. Embora, principalmente no início, Pedro Paulo, por motivos ideológicos, fosse contrário a minha participação neste trabalho, reconheço hoje, que graças a este meu talento ajudei muitos de seus amigos, e, também de desconhecidos, ligados ao grupo, que precisavam de documentos especiais para sair do país, ou para, mesmo aqui no Brasil, viver na clandestinidade.

Para realizar estes trabalhos eu era sempre apoiado por Francano: um jovem “arte finalista” extremamente habilidoso. Francano usava muletas, tinha a perna esquerda infinitamente menor que a direita, fumava de dois a três maços de Continental por dia, usava uma barba rala e bigodes ainda mais ralos; ele mesmo dizia que tinha um time de futebol de cada lado - referindo-se aos “vinte e dois” fios de bigodes que teimavam em deixar a desnudo a parte superior de sua boca suave, sempre pronta ao sorriso franco, mostrando dentes claros, perfeitos. Francano, que falava o tempo todo, me introduziu no vocabulário do grupo ao qual pertencia e admirava; suas conversas me faziam lembrar as reuniões de Pedro Paulo e seus amigos em nosso apartamento: eram conversas recheadas de “campesinato, burguesia nacional, guerrilha urbana, reeducação, luta armada, lumpemproletariado...”. Tornei-me seu amigo.

Em um sábado chegou um novo passaporte sobre o qual eu deveria trabalhar. Meu trabalho consistia, entre outras coisas, em falsificar as assinaturas das autoridades e “copiar” a assinatura de quem seria beneficiado pelo novo documento. Em minha última visita ao DOPS percebi que Pedro Paulo estava barbeado e com os seus longos cabelos cortados. Estranhei e ele, percebendo, me disse: “logo me verá assim”; não entendi, mas em ambiente tão impróprio para perguntas achei por bem dar o não entendido por entendido. Agora estava claro: o passaporte a ser produzido em nome de Sérgio Manreza seria para Pedro Paulo utilizar; ele estava ali, na foto, sem barba, cabelos cortados rente; também reconheci sua letra na assinatura que deveria usar e eu deveria falsificar. Dedução: provavelmente Pedro estaria para ser libertado e quando isto ocorresse iria para outro país ou viver na clandestinidade com outro nome. O fato de estar falsificando o passaporte, e não a carteira de identidade, indicava fuga para outro país.

Fiquei comovido: falsificar o passaporte da pessoa querida foi um ato de extrema gentileza da direção do grupo, que desconsiderou as severas e minuciosas normas de segurança, sempre sugeridas e, por todos, obedientemente acatadas; para mim, tal ato, foi de uma generosidade e solidariedade ímpar, demonstrada por pessoas que corriam permanente risco de vida em função do que acreditavam, mas que, em atos como este, apontavam a riqueza humana e os valores que regiam suas vidas e, principalmente, uma prova de extrema confiança a um alheio às suas causas. A falsificação do passaporte de Pedro, significou no momento e significa até hoje coerência com valores universais e até hoje me comove e ao qual me sinto grato.

Fui instruído, pelo Sr. Danilo, a solicitar visita ao DOPS apenas quando ele voltasse a me falar. Dois meses se passaram sem visitas a Pedro Paulo.

Em uma manhã de domingo, recebi, na feira da Praça da República, a visita do Sr. Danilo. Discretamente olhou meus quadros, apontou um e disse: “Quero este. Pode embrulhá-lo para mim?”. Não tive dúvidas: iniciei, rapidamente, o trabalho de acondicionamento do quadro enquanto o Sr. Danilo retirava do bolso um pacotinho de notas presas por um “clipes”. Não aceitou a oferta de gratuidade: “Posso pagar e, ademais, junto ao dinheiro você terá boas surpresas, penso que até melhores que o dinheiro”, disse enquanto saia. Não houve, desta vez, recomendação para que eu aguardasse tempo algum para “contar” o dinheiro. Peguei o bolinho de notas e junto a elas, preso pelo clipes, o envelope que eu havia perdido no banheiro do cinema da Rua Aurora um com um endereço anotado no verso.

Havia combinado de almoçar com o Francano e soube por ele que Pedro Paulo e seu amigo Hamilton haviam sido libertados, graças, principalmente, aos esforços desenvolvidos pelo arcebispo de São Paulo e que, fugitivos, estavam na Argélia.

Entendi, então, o estranho endereço escrito com a elegante letra do Sr. Danilo. Era o endereço de Pedro Paulo na Argélia.

Nunca, até então, havia feito uma viagem internacional e meu projeto, quando pensava nessa possibilidade, era sempre a Holanda. Sonhava, quando pensava ou falava no assunto, em conhecer a Holanda, suas tulipas, seus moinhos e sua Amsterdã tão liberal. Nestes devaneios sempre comprava passagens, de primeira classe, pela Air France, na viagem comeria salmão e beberia champagne.

Em novembro, em uma quinta feira depois do feriado de quinze de novembro, entreguei o último painel para a companhia de aviação. Logo na segunda feira seguinte deixei meu carro no mesmo estacionamento que o deixo para expor meus quadros na feira da República e de lá fui até o Copan. Revi o prédio e tomei um café no Floresta. De lá fui até a loja da Air France, na São Luiz, de onde saí com minha primeira passagem internacional: São Paulo/Paris/Argel: classe econômica.”

terça-feira, 10 de agosto de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: 1968, nada consta. Primeira parte: O cine Aurora

Nem bem a mulher terminou a história de Angelina, veio ao palco um homem claro, cabelos crespos compridos, já grisalhos. Tinha lá seus um metro e setenta , ou um pouco menos, ficando mais para gordo do que para magro, vestido com roupas compradas, que até destoavam um pouco da simplicidade dos outros contadores: com isso tinha mais aquela cara e jeito de quem nasceu e se acostumou em cidade grande, pouco sol no rosto, conhecedor de livros, de cinemas...

Quieto em sua timidez pediu licença para contar sua história:

“Parece mentira: quase cinqüenta anos já se foram!

Foi por volta de 1964 que saí do interior para ganhar a vida aqui na capital. O grande sonho, que era viver de meus desenhos, ainda não se concretizava e a vida era, até então, sustentada por um emprego de Auxiliar de Departamento Pessoal em uma empresa “para-estatal”, no dizer do companheiro de tantos anos, o tão querido Pedro Paulo.

O trabalho no escritório fechado, datilografando fichas de admissão, era entediante e, desta forma, a ordem para que fosse eu o encarregado de ir ao DOPS buscar informações de candidatos a emprego foi, por incrível que possa parecer, recebida com radiante entusiasmo. Quando terminava o serviço no DOPS - ou mesmo antes de lá chegar - passava por um cinema da Rua Aurora, destes que funcionam das nove da manhã à meia noite, onde assistia filmes pornográficos, me masturbava ou encontrava parceiros para pequenas orgias sexuais.

O trabalho no DOPS era simples: entregava, em um guichê próprio, a ficha com o nome do candidato a emprego e, depois, era só aguardar: quando a mesma era borrada com um carimbo ”nada consta” o processo seletivo continuava; quando não era o carimbo “nada consta” a espera era sempre mais longa, mais demorada, e o espaço reservado da ficha era preenchido com uma Remington velha: “integrante do mr8, detido quando participava da greve dos ...” ou outros que tais; quando isso ocorria o processo seletivo era imediatamente encerrado para o candidato a emprego em nossa empresa e, como mais tarde Pedro Paulo me contou, em todas as outras empresas “para-estatais”.

Naquela tarde de setembro, na ficha de candidato a emprego que levava ao DOPS constava o nome de Pedro Paulo Damascena. Passei frente ao cine Aurora, pensei em entrar, mas o movimento estava fraco; resolvi primeiro ir ao DOPS cumprir minha obrigação: “primeiro a obrigação, depois a devoção” diria meu pai, a quem àquela hora, achei por bem obedecer.

Saí do DOPS com o envelope no bolso e fui direto para o cinema; a demora na devolução denunciava alguma coisa além do simples “nada consta”.

O curso de Belas Artes, que até então não me ajudava em nada para ganhar a vida, tinha suas utilidades: desenvolvi uma incrível competência em desenvolver colagens, manipulando fotografias ou gravuras, assim como abrir envelopes e os fechar sem deixar suspeita, e, com isso, alimentar perversas curiosidades.

E foi assim, naquela tarde de setembro, no banheiro do cine Aurora, que cuidadosamente abri o envelope para ler o “verdictum” com o qual o DOPS havia presenteado o Pedro Paulo. Nenhuma surpresa. Como havia previsto, baseado na demora da devolução, a velha Remington havia funcionado: “tem amigos e mantém contato com agentes comprometidos com a guerrilha urbana, foi presidente de Centro Acadêmico que liderou atividades de esquerda na Universidade e participa, regularmente, de reuniões do PC; há fortes suspeitas de liderar o grupo responsável pela impressão e distribuição de folhetos subversivos para sindicatos do ABC.”

Pensei na hora: “Pedro Paulo, se depender deste emprego, está ferrado”; o que era uma pena para moço tão bonito: alto, loiro, cabelos encaracolados, sorriso fácil e sensual escondido no meio do bigode e das barbas ruivas, dentes brancos e um enorme jeitão de bom rapaz.

Pena mesmo: “bem que poderia vir para o departamento de pessoal, trabalhar em treinamento, muito lindo” e assim pensando saí do banheiro para os escurinhos do cinema à procura de alguém disponível. Em um cinema com tanta gente “entendida” era fácil: todos atrás de sexo, quando na verdade, talvez, estivéssemos à procura de afeto.

Mas... Mãos à obra: todas estas teorias e falações bonitas eu aprendi depois com o Pedro Paulo; naquele dia e naquela hora o que eu queria era achar e agarrar um homem, o que não foi difícil. E, em um banheiro sujo e escuro do Aurora, mais uma sessão de sexo aconteceu.

Com dor na consciência pelo pecado cometido, saí do cinema decidido a me confessar no próximo domingo, antes da missa das nove. A atividade sexual em local tão impróprio do ponto de vista da comodidade, me deixava, sempre, extenuado. Entrei em um bar para um guaraná refrescante; ao gelo do guaraná que, gostosamente, refrescava minha garganta um outro se esparramou por todo o corpo: o envelope que levara ao DOPS não estava em meu bolso.

Deixei o restante do guaraná no copo, corri de volta ao cinema, comprei ingresso e fui ao banheiro que havia freqüentado há pouco: nada! Suava frio e me pus a rezar quando fui abordado por um senhor já idoso que me ofereceu dinheiro para um programa, mas percebendo meu estado, desistiu. Procurei pelo lanterninha e com sua ajuda buscamos o envelope entre as fileiras de assentos, no banheiro, nos corredores e não encontramos.

- “Talvez de madrugada na hora da faxina, o Senhor Alfredo encontre seu envelope. Pode deixar que eu falo com ele.”, disse, prestativamente o lanterninha.

Implorei:

- “Se ele encontrar, peça, por favor, para não abrir, é sigiloso; dou uma boa gorjeta se me devolverem”.

Saí do cinema sob o olhar lascivo do idoso senhor!

Agora era só rezar... Fui para a Igreja da Sé e, antecipando a necessidade de confissão, contei os pecados cometidos, mas omiti a história do envelope – afinal aquilo não era pecado - e obtive o perdão; com a alma mais leve fui para casa, um quartinho de pensão no Bexiga, e, para desanuviar ainda mais a alma me pus a pintar.

Dia seguinte cheguei cedo ao trabalho. Retirei, furtivamente, da pasta de um empregado, ex-padre, seu atestado com um “Nada Consta”, pedi autorização ao chefe para realizar serviços externos e saí à busca de uma empresa de serviços de cópias, onde pedi quatro fotocópias do documento.

De lá, com um fiozinho de esperança, corri até o Cine Aurora. E sobre aquele derradeiro fio de esperança, o bilheteiro jogou um balde de água fria: o envelope não havia sido encontrado. O senhor idoso estava por lá, procurou prosa, mas eu, movido pela frustração de não ter encontrado o envelope e pela ansiedade das providências a serem tomadas, fui grosseiro:

- “Quem gosta de velho é reumatismo”.

Ofendido o velho senhor respondeu com um olhar, antes tão lascivo, de pena e comiseração.

Saí rápido do Aurora.

No escritório, graças à minha habilidade e aos conhecimentos adquiridos na Escola de Belas Artes, a ficha de Pedro Paulo ganhou um “nada consta” e dois dias depois, numa quinta feira, fui o encarregado de entregar a ele a lista de documentos que teria que providenciar para seu registro como empregado na empresa em que trabalhava.

No domingo, na Praça da República - onde expunha meus quadros na “feira hippy”, recebi a visita de Pedro Paulo. Ele estava com um bando de amigos, todos barbudos, que, com ares compenetrados viram e, pelos comentários, gostaram de meus quadros: “pinturas com alto senso estético, embora pequem pelo total estado de alienação e descomprometimento para com a realidade”.

E eu ouvindo e pensando: será que vão comprar? Na verdade, sendo franco, não conseguia tirar o olho de Pedro Paulo, mas ele e sua turma, indiferentes, foram embora sem nada comprar e sem Pedro Paulo dar, ao menos, um sorriso, por menor que fosse. Só um rápido:

- “Tchau! Amanhã a gente se vê”.

- “Bofe”, pensei, mas não disse.

E foi só isso que de ruim aconteceu naquele domingo; logo depois vendi três quadros e concluí que só podia ser o Pedro Paulo que me dava sorte: ”três quadros vendidos em um só dia. Demais da conta de bom. Vou continuar pintando sem o tal comprometimento para com a realidade: bando de bofes! Uau!!!”, disse em voz baixa.

Saí da feira, guardei os quadros não vendidos no carro, almocei macarrão com frango e tomei dois guaranás. Estava radiante!

Semana seguinte Pedro Paulo foi admitido na empresa e começamos a nos encontrar na hora do almoço. Após dois meses de convivência resolvemos morar juntos.

Outro fato surpreendente ocorreu: eu havia sido o vencedor do concurso de uma empresa de aviação para desenvolver painéis que seriam usados para decorar suas lojas espalhadas em quase todas as capitais do país; isso exigiria, no mínimo, um ano de trabalho e mais dinheiro que receberia por uns cinco anos na empresa em que datilografava fichas de admissão: deixei o emprego; a isso devo acrescentar que meus quadros, expostos aos domingos na Feira da Praça da República, estavam vendendo razoavemente bem.

Mudamos para um apartamento maior, na São Luís.

E era lá que, durante o dia, enquanto Pedro Paulo trabalhava, eu pintava meus quadros e desenvolvia os painéis para a empresa de aviação. À noite saíamos, e quando não íamos ao cinema, Pedro Paulo recebia seus amigos barbudos: todos sabiam de nossa relação e a única exigência, imposta por Pedro Paulo, era que evitássemos a troca de carinhos na presença do grupo. Mas era em nosso apartamento que, sempre à noite, aquele grupo de barbudos se reunia, falavam muito, discutiam, liam e redigiam; eu pouco entendia e, de verdade, pouco me interessava por tão inflamadas discussões; o que e discutiam era, para mim, um mundo distante, incompreensível e eu aguardava, ansioso, o final das reuniões para, a sós, demonstrar meu afeto e perceber o amor que nos unia.

E a vida ia passando...

E foi assim, com a vinda passando e passando sem a gente perceber, ou dar fé o quanto ela passava, que, em uma semana qualquer de abril, Pedro Paulo teve que fazer uma viagem a trabalho; aproveitei para visitar duas lojas da empresa de aviação, no norte do país, onde o projeto estava se iniciando. Foi Pedro quem me levou ao aeroporto para, de lá, iniciar sua viagem pelo interior do Estado.

Voltei no sábado, como havia planejado, e estranhei não tê-lo encontrado no aeroporto à minha espera. Um frio enorme percorreu meu corpo: uma dor profunda e uma angústia indescritível se apoderou de mim. Tomei um táxi e fui para o apartamento que encontrei vazio.

Pedro Paulo sempre me recomendava que, por segurança, caso ele desaparecesse eu deveria silenciar-me por completo e não procurar por ele. Eu achava aquelas recomendações absurdas, incompreensíveis e sempre o questionava porque cargas d´água ele haveria de sumir? Que coisa mais absurda alguém desaparecer! Me alterava, elevava o tom de voz, prenunciando o fim da discussão, e, um pouco birrento, reconheço agora, dizia que se o motivo do desaparecimento fosse eu que achava mais adequado e correto ele me dizer, que não entendia e muito menos queria entender esta história de desaparecimento, e ponto final...

E agora não tinha a menor idéia do que fazer.

Mais de um mês se passou.

O desaparecimento de alguém que queremos bem é pior, muito pior, que sua morte na medida em que o desaparecimento não contempla a concretude definitiva da morte, que, de alguma forma, conforta. A indefinição do desaparecimento nos deixa como em uma montanha russa: alternam-se repentinamente os baixos momentos de profunda desesperança, com os picos da certeza do encontro próximo...

Em um domingo, na Feira da Praça da República, onde expunha meus quadros, recebi a visita do velho senhor do Cine Aurora. Pela maneira como iniciou a conversa devo ter demonstrado surpresa e estranhamento:

- “Por favor, fique tranqüilo. O que preciso lhe falar é sério e não tem nada a ver com o Cine Aurora. O que vou lhe dizer é bom e é também ruim e, por isso, peço que evite demonstrar seus sentimentos. Procure agir como seu eu estivesse interessado na compra de um quadro e que você quer vendê-lo. Se concentre nisso, por favor. Posso falar, está preparado?”, disse com a voz tranqüila, embora firme e severa, o velho senhor.

Olhei para a respeitável figura: tinha a doce expressão dos avós, estava elegantemente vestido em suas calças jeans, camisa pólo e com seus cabelos brancos bem penteados.

- “Claro, diga. O que o senhor tem a me dizer?”.

- “Conheço o seu Pedro Paulo, que é muito amigo de meu filho. Estão, ambos, presos no DOPS, acusados de subversão. Eu os visitei e estão bem, se se pode de dizer isso: estão vivos, o que já é uma graça.”, disse emocionado.

Tive certeza que aquele elegante senhor não mentia e procurei controlar minhas emoções:

- “Quero vê-lo, preciso visitá-lo. Como fazer? Faço o que o senhor me ordenar, mas preciso vê-lo hoje. Faça-me o favor!”.

Fui educadamente interrompido:

- “A gente almoça juntos e vamos ver o que se pode fazer. Agora faça de conta que estou comprando um de seus quadros. Venda-o pelo preço que vou te oferecer; meu endereço está junto com o dinheiro que vou te pagar; espero por você às treze horas.”, e, imediatamente apontou para uma de minhas telas favoritas perguntando pelo seu valor.

- “São dois mil reais. É uma tela...” fui, mais uma vez, delicadamente interrompido:

- ”Dou por ela mil e quinhentos reais em dinheiro, aceita?”, disse ao mesmo tempo em que tirava da carteira um pacote de dinheiro, com as notas presas por um clipe. “Não há necessidade de conferir o dinheiro. Está certo. Pode me embrulhar a tela? Tenho que ir, tenho fome.”

Peguei o pacote de notas, coloquei no bolso, embrulhei a tela e ao entregá-la ouvi:

- “Não tenha pressa em saber o endereço.Temos tempo porque moro perto: daqui até minha casa é um pulinho. Até mais.”

O pacote de notas, colocado no bolso, queimava minha perna, me incomodava, ardia. Mesmo assim, obedecendo ao pai do Hamiltom, aguardei um pouco, controlando a insuportável ansiedade de, finalmente, encontrar alguma coisa de concreto a respeito do tão querido Pedro Paulo. Por volta das onze e meia, não conseguindo mais suportar tanta ansiedade, embrulhei os quadros restantes e fui ao estacionamento onde os acomodei na porta malas da velha DKV.

E só então, sentei-me no banco dianteiro da perua, e tirei do bolso o pacote de dinheiro. Junto do monte de notas presas por um clipes, havia um papel com o endereço e uma foto de Pedro Paulo junto com seu amigo Hamilton. E eu emocionado, fiquei ali, absorto, chorando descontroladamente, confuso, sem saber realmente se chorava de felicidade ou de tristeza! Chorei muito, chorei em silêncio, um choro só meu, com soluços compridos que enchiam todo o corpo e lágrimas quentes que inundavam meu peito !

domingo, 4 de julho de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: ANGELINA



Eis que surge, no centro da arena, uma mulher para contar uma história!
Surpresa geral: até o momento apenas homens haviam participado como contadores.
Nair, era o seu nome. Aparentava ser uma matrona com seus sessenta anos, forte, cabelos grisalhos, vestido de algodão sobre o bonito corpo gordo. Quadris largos, seios salientes, sobrando pelo colo, orgulhoso dos filhos que haviam tirado dali seu alimento. Os cabelos grisalhos, levemente ondulados, cobriam os ombros. Tinha uma voz doce e suave, comum às mezzo sopranos.
Inicia, sorridente, sua história:
“Pois bem pessoal, quero contar a vocês a história da Angelina.
Esta história eu ouvi, pela primeira vez, ainda menina moça, contada em uma noite fria, ao calor da fogueira em uma festa de São João. Quem a contou foi Dócio, um cego gordo, com enormes papadas sob o queixo. Mais tarde, tornei a ouvir esta história, desta vez contada pelo Diquinho, um meu primo distante, também muito bom contador de histórias. Não houve grande diferenças entre a história contada pelo cego Dócio e pelo primo Diquinho.
Vou, agora, contar para vocês.
Angelina era a primeira filha de um dos casais de italianos que, como nós, viviam em pequenos sítios nos pampas do sul do país. A maioria destas famílias, premidas pela miséria, imigraram do sul da Itália, e, aqui, plantavam e cultivavam videiras, faziam vinho e vinagre, criavam porcos e bois; todos católicos, crentes e após as missas dominicais, quando havia padre para celebrá-las, se reuniam para, saudosos, contar as venturas e memórias da Sicília, tão brava, tão longe e, agora, tão somente em seus sonhos.
Angelina era uma menina forte; na escola se destacava pela facilidade de aprender as letras; em casa, pequena, já cuidava dos porcos, dos irmãos menores e tecia na roca.
Mas o que a todos instigavam e a tornava motivo de admiração e curiosidade eram seus poderes de adivinhação. Assim: se um bezerro sumia, Angelina tinha a resposta, sabia em que pasto e sob a sombra de qual árvore se escondia o fugidio bezerro. Mesmo no desaparecimento de pequenas coisas, em grande parte por culpa da desordem típica dos imigrantes italianos e da simplicidade de suas moradias, era Angelina que, consultada, como São Longuinhos, indicava corretamente o local onde se encontrava a perdida agulha de tricô da nona, o sumido canivete do nono ou a faca afiada da mãe...
E até casos mais difíceis, ou no mínimo mais delicado, como a história do porco, um cachaço que tinha sido castrado recentemente e colocado para engorda pelo seu tio Alfredo. E não é que o enorme porco sumiu! Fugir não era o que se podia imaginar:como pular a cerca do chiqueiro com tamanho peso e gordura? Impossível, concluiu a família reunida. Só podia ter sido roubado. E Angelina, consultada, denunciou quem havia feito tão condenável ação. Foi de seu pai a pergunta:
- Sabe do porco que tio Alfredo capou para engorda Angelina? Sumiu o danado.
- Foi o Agnaldo que levou, respondeu sem pestanejar.
Susto maior não poderia. Logo o Agnaldo, filho do velho senhor Baltazar, amigos de mesa e de jogos, teria cometido tal crime?
Pois tinha.
E a longa amizade que havia entre as famílias, comprovado o ocorrido, estremeceu; e mesmo dentro da família dos Baltazar, vergonhosa do ocorrido, muitas desavenças aconteceram.
Mas voltando a Angelina!
Seu poder de adivinhação, ganhou fama e, como tocada pelo vento, fugiu do domínio das famílias italianas, avançou por outros sítios até chegar aos ouvidos de Frei Marcos, pároco em vizinha comarca. E veio, então, a primeira condenação: quando o bondoso, porém severo padre, chegou até a pequena comunidade para batizar os pequenos rebentos e realizar a primeira comunhão da criançada, proibiu Angelina de receber o Santo Sacramento da Hóstia Santa .
- É pecado grave. Essa menina está com o diabo no corpo! justificou Frei Marcos.
E por estar com o Demo no corpo, Angelina foi proibida de a de fazer a primeira comunhão, apesar de saber de cor e salteado a Salve Rainha, o Creio em Deus Padre, recitar sem erro os Dez Mandamentos, enfim, apesar de ter sido, sem sombra de dúvida, a melhor aluna no catecismo.
E, com isso, Angelina passou a sofrer dor imensa; inocente e ingênua: “e o meu vestidinho branco, de organdi, tão lindo, para o dia tão esperado de, com ele e de grinalda, receber, toda de branco o Corpo de Cristo? Vai ficar sem uso, dependurado?”, lamentava quieta enquanto trabalhava a roca.
Tanta dor, muita dor! Ter o Diabo no corpo era, pra ela, a pior das doenças, a mais triste das sinas.
A primeira comunhão, perdida esta oportunidade, só ocorreria no próximo ano, quando novamente Frei Marcos voltaria à pequena comunidade para batismos e a cerimônia do Sacramento da Comunhão. E para não acontecer outra proibição, antes de partir, o padre se ofereceu para exorcizar seu corpo e tirar dali o Capeta.
Angelina, convocada, compareceu até a casa de Dona Cecília para o ritual. As portas foram fechadas, as luzes apagadas, sobrando apenas, no oratório, em um canto da sala, uma trêmula chama de vela:
- Tem algum espírito presente?, declama em voz respeitosa e grave Frei Marcos.
E, imediatamente, o corpinho de Angelina tem inícios de convulsão, retorcendo-se todo; seus olhos parecem saltar da órbita, com o branco tomando o espaço do que antes eram das negras pupilas; no rosto uma expressão de pânico e dor enquanto balbuciava, entre gemidos, incompreensíveis palavras!
- “Vá-te embora Satanás. Liberte o corpo deste anjinho. Vá-te demônio! Em nome de Cristo, vá-te.”, ordenava, com voz segura, Frei Marcos.
E o corpo da pequena Angelina, todo suado, foi vagarosamente voltando à sua normalidade: foram diminuindo, aos poucos, os tremores e os retorcimentos, cessaram de sair de sua boca, que ainda espumava, palavras incompreensíveis enquanto os olhos voltavam ao brilho normal: Cruz Credo!
E após o ritual, por ordem de sua mãe, familiares e vizinhos foram proibidos de pedir socorro e adivinhações a Angelina e a menina proibida de, caso solicitada, realizá-las. Mesmo as simples e tão corriqueiras seções para São Cipriano, para adivinhar o sexo das crianças das mulheres grávidas foram proibidas. E no início, sob o impacto da negativa da primeira comunhão e do ritual de exorcismo estas ordens foram rigorosamente cumpridas e vigiadas, mas, com o passar dos dias a vida voltou ao seu normal.
E Angelina, mesmo vez ou outra realizando inocentes ou mais complexas adivinhações, passou o ano sonhando em receber o Corpo do Senhor, em fazer sua primeira comunhão com o vestidinho branco de organdi.
Chegou a hora e no confessionário, confirmam-se as dúvidas de Frei Marcos: a menina continuava possuída e mais uma vez proibida de receber o Santo Corpo de Cristo. Houve um outro ritual de exorcismo, e, para manter a família alerta do perigo de nova invasão do Demo no corpo da menina, Frei Marcos passou um castigo: escrever, diariamente, pela manhã, no caderno de caligrafia, com as letras bem definidas: "SENHOR JESUS: LIVRAI E PROTEGEI MEU CORPO DO SATANÁS".
E o ano foi se passando com o exercício diário de caligrafia, com pequenos rituais de adivinhação invocando São Cipriano - usando uma chave presa no Evangelho - , e alguns pedidos de adivinhação impossíveis de serem recusados...
Foi então que, na noite que antecederia sua confissão para realizar a sua primeira comunhão, Angelina teve um pesadelo terrível. Sonhou, se é possível chamar isso de sonho, que, estava toda de branco, com sua grinalda de tule e as mãos postas sobre o peito, pronta para receber Hóstia Santa; e foi aí que, ao se aproximar do altar e ajoelhar-se, abrir suavemente a boca, e, como havia sido orientada por dona Cecília, colocar delicadamente a ponta da língua para fora, para, respeitosamente, receber a Santa Hóstia teve início seu martírio: ao receber a Hóstia Santa, sentiu primeiramente sentiu um gosto forte de sangue e a Santa Hóstia crescer sob sua língua, transformando-se em uma esponja úmida que tomava a boca toda que começou a sangrar, vertendo sangue peito abaixo, manchando de vermelho o vestido de organdi, suas mãos postas e o terço que tinha entre elas. Acordou na manhã seguinte febril e com uma rigidez facial que a impedia de pronunciar palavra qualquer; não pode se confessar e, mais uma vez, participar da cerimônia da primeira comunhão.
Frei Marcos, desta vez, não se ofereceu para o ritual de exorcismo.
Desesperançada Angelina passava o tempo na roca, tecendo. E, junto à roca, teve início as primeiras visíveis e terríveis aparições. A primeira aparição visível aconteceu assim:
Sua mãe tinha a diária rotineira obrigação de levar, até a plantação de uvas ou outra roça onde os homens labutavam, as marmitas com o almoço do marido e dos tios. Era sua tarefa. E na volta para casa, após o cumprimento da obrigação, tinha o hábito de, antes de entrar em casa, sentar-se no banco sob o pé de amora e ali enrolar um cigarro e deliciar-se com profundas tragadas. “É a hora do meu descanso, de ficar comigo mesma. Gosto muito.”, dizia.
E foi um dia então que Angelina, orientada pela luz que o sol fazia entrar na porta do celeiro onde ficava a roca, calculou que já era hora de sua mãe estar voltando da plantação de uvas com as marmitas, que teve sua primeira aparição. Em um misto de sonho e pesadelo, viu que, naquele dia, sua mãe não parou para fazer o cigarro de palha, passou indiferente sob a sombra da amoreira, entrou em casa, deitou em sua cama e logo depois morreu.
E Angelina, assustada, correu para o terreiro de frente da casa e viu que sua mãe vinha da roça com as marmitas vazias às mãos. E a pequena, que torcia e rezava para que sua mãe obedecesse à rotina do cigarro de palha sob o pé de amora, horrorizou-se ao vê-la não parar sob a sombra amiga, entrar em casa à procura de sua cama e deitar. Logo após ouviu os gritos desesperados da avó: “Acudam: Lourdes morreu. Deus do céu, acudam!”
Seu pai, temeroso pelo fato das normais mudanças que ocorriam no corpo da menina, transformando-a em mulher, achou por bem mandá-la viver sob os cuidados de uma irmã, que tinha filha moça e, por ser mulher, poderia melhor cuidar de Angelina. Não se sentia preparado para tal educação.
E, na casa da tia, Angelina viveu a realidade das histórias dos livros que havia lido a respeito das temerosas e ciumentas madrastas: desprezada pela tia e transformada em criada servil pela prima; seu único refúgio era a roca, onde tecia e deixava a vida passar.
Mocinha passou a ser importunada pelo tio:
- Pode ser ou está difícil, Angelina? perguntava o tio, olhar lascivo, ao passar sob a janela do celeiro onde ficava a roca.
- Tá difícil, respondia temerosa.
E veio a segunda aparição:
Seu tio passava sob a janela fumando seu cigarro de palha e fez a habitual pergunta à qual Angelina respondeu: Pode ser. E os corpos nus se misturaram com os fios tecidos na roca; soluços, gemidos de prazer e de temor quebraram o silêncio sepulcral do celeiro. E Angelina, sob o pesado corpo do tio, viu, na janela, sua tia que, horrorizada, a tudo observava.
E imediatamente após sua visão ouviu os passos de seu tio se aproximando:
- Pode ser ou está difícil Angelina?
- Pode ser tio.
E, a partir dali, sua vida que era difícil tornou-se insuportável.
Pelo acontecido a tia impôs castigo: isolamento total no celeiro; as refeições passaram a ser levada até a janela na pequena marmita de alumínio e, como castigo, copiar até encher toda a folha de papel de embrulho: “EM MEU CORPO MORA O DEMÔNIO” .
As visitas do tio passaram a ocorrer com maior freqüência e, imediatamente após casa visita, sua tia aparecia na janela com uma folha de papel de embrulho, com uma frase escrita no alto, que deveria ser copiada até preencher toda a folha.
Angelina sentia-se só. Sua solidão era amenizada com os exercícios de caligrafia e com a roca. Para passar o infinito e interminável tempo Angelina passou a brincar com as letras assim como brincava com a roca. A solidão tornava-se, desta forma, suportável com as folhas de papel de embrulho se acumulando ao lado dos fios de lã tecidos na roca.
Dias, semanas, meses e anos foram passando. Sentia saudades de ouvir palavras e de emitir o som de sua voz. Passou a cantarolar em voz cada vez mais baixa até cantarolar apenas para dentro de si, em sua mente. Esquecia os sons, as palavras. E mesmo as únicas palavras que ouvia do tio querendo seu corpo foram sendo economizadas. Do inicial: “Pode ser ou está difícil Angelina”, passou para “pode ser ou está difícil?”, economizando o Angelina, para ficar apenas no “pode ser?”.
Em um domingo ouviu vozes, falas e cantos misturados ao som da sanfona. Eram as reuniões familiares. Algum aniversário provavelmente.
Outra visão: Seu tio bêbado de pinga e de vinho, chegou até a janela e com a voz pastosa dos bêbados : “pode ser?”, entrou no celeiro, tomou Angelina nos braços, deitou-a no colchão de palha, que era sua cama e a possuiu. Levantou-se, abotoou as braguilhas das calças e deixou o cigarro aceso ao lado da cama. Saiu, como sempre, pelas portas do fundo do celeiro, deixando-a aberta, de onde veio uma rajada de vento que deu brilho á pequena faísca do cigarro,tomou conta do colchão de palha, alcançou os fios da roca e os papéis de embrulho. Em segundos o celeiro tornou-se em uma labareda única queimando tudo e todos.
Logo após esta sua visão seu tio chegou à janela, pernas cambaleando de bêbado, e, sem aguardar resposta para o “pode ser” dito em voz pastosa adentrou-se no celeiro e colocou-a na cama...
Saiu pelas portas do fundo do celeiro e Angelina abotoou o vestido em sua parte superior, cobriu os seios, arrumou a saia sobre as pernas, pegou o terço nas mãos, deitou e esperou o calor do fogo.
A tia, como sempre, chegou até a janela com o papel do castigo e viu a labareda já alta consumindo e alimentando-se das palhas do colchão, dos fios da roca, dos papéis de embrulho e do corpo de Angelina.
Atirou pela janela, para o centro da labareda, o papel de embrulho com o cabeçalho: “ARREPENDEI-VOS, PORQUE É CHEGADO O REINO DOS CÉUS”

quarta-feira, 26 de maio de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: IVO, O ESCULTOR.


Tão logo o velho mineiro terminou de contar história do Encantador de Cobras, posicionou-se na arena um homem moreno, pequeno, atarracado, lábios grossos, músculos salientes aparentes sob a camiseta branca. Tinha olhos negros, sobrancelhas espessas e bem delineadas, dentes perfeitos, brancos e os cabelos encaracolados como os dos anjinhos dos antigos santinhos, só que escuros.
Voz clara, forte em um timbre suave de baixo-tenor.
“Meu nome é Osvaldo, e quero contara a história do Ivo, o escultor.
De imediato devo confessar a dificuldade que estou encontrando de contar esta história. Desde a hora que saí de casa, no interior de São Paulo, até chegar aqui, pensei e repensei inúmeras vezes em como contá-la e agora, comigo aqui no centro da arena ainda não conclui qual seria a melhor e por isso, já peço desculpas.
Vou começar pelo começo, e tentar ser o mais compreensível possível, em respeito ao Ivo e também, claro, aos senhores aqui presentes.
Penso que a minha mochila e as minhas leves vestimentas devem ter denunciado minha condição de andarilho. Sim, conheço a palmo quase todo este país de Deus, andando, caminhando, dormindo em minha barraca, comendo grãos, frutos secos, bebendo água nas fontes e nos córregos, tomando banho nos mares e nos rios.
E foi assim, em uma de minhas inúmeras caminhadas que, por mero acaso, reencontrei o dono desta história.
Iniciando então devo dizer que somos, o Ivo e eu, de uma pequena cidade do interior do Estado de Minas Gerais. Crescemos protegidos pela verde e negra Serra da Mantiqueira: verde de manhã ao nascer do sol e negra quando o mesmo se esconde, determinando uma sombra fresca, protetora, que, aliada ao vento sul, prepara as noites frias, que exigem, de janeiro a janeiro cobertores tecidos com lã de carneiro.
Os estudos na pequena cidade, pelo menos até então, limitavam-se, aos que queriam e podiam, ao antigo Ginásio. Ivo estudava um ano em minha frente e nos tornamos amigos. A bem da verdade eu era um dos poucas pessoas com quem se relacionava. Para a maioria da cidade Ivo era uma figura por demais “neurastênica” e para nossa professora de português, nosso herói apresentava traços de misantropia.
Nossa convivência era cordial, pacífica, silenciosa, pouco afetiva e mutuamente respeitosa. Sua competência para com a arte da escultura era, desde àquela época, inquestionável, unânime mesmo entre os outros artistas da pequena cidade e região que, maravilhados com sua arte, libertavam-se de mesquinhos ciúmes, esqueciam aspectos realmente sombrios de sua estranha personalidade e maravilhavam-se com sua arte.
Terminado Ginásio, fez vestibular nas Escolas Nacionais de Belas Artes do Rio de Janeiro e de São Paulo e foi aprovado em ambas. Optou pelo Rio de Janeiro. Após isso passou a vir à nossa pequena cidade apenas em suas férias até que seus pais mudaram-se para São Paulo quando suas visitas e seu contato rarearam por completo.
Retornou apenas quando terminou o seu curso no Rio, como que surgindo do nada... Aconchegou-se na única e pequena pensão que havia na cidade e o encontrei no jardim frente à Igreja; nosso encontro foi cordial, afetuosos embora, como sempre, Ivo evitava qualquer tipo de manifestação externa de carinho. Continuava quieto, mudo mesmo, com seus olhos oblongos voltados para o horizonte; usava, agora, longas costeletas o que lhe rendeu, de imediato, o apelido de D. Pedro I.
Combinamos de nos encontrar, no clube, na manhã seguinte. Foi lá, ao lado da piscina, que após horas de silenciosa convivência Ivo me disse que lhe haviam oferecido duas bolsas de estudo na Europa e que entre Portugal e Alemanha havia optado pela Alemanha. Repetiu duas vezes o nome da escola onde iria estudar e percebeu que eu não entendia. Quando lhe perguntei, maravilhado, se falava alemão, Ivo respondeu:
- Sei falar Bom dia. Caso tenha sede não sei como pedir um copo d´água. Melhor: não vou lá para conversar.
Continuou em seu silêncio até o momento em que chegava ao clube, passando por nós, o time de futebol de salão da cidade. À frente do grupo o enorme Taíde, famoso por sua força física, resistência e também pela inquestionável habilidade como jogador. Ivo perguntou-me:
- É o Taíde?
- Sim, Ivo, é o Taíde, ou se quiser o Marrucão seu velho apelido.
- Verdade: havia me esquecido de seu apelido. Continua o mais forte da cidade?
- Sim, continua sendo o mais forte.
Repentinamente Ivo levantou se do banco onde estávamos acomodados e, sem mais, dirigiu-se até o local onde estava o pessoal do futebol de salão, e ao aproximar-se do Taíde, calmo e com voz suave disse:
- Você continua sendo o mais forte? Quero brigar com você.
Realmente não estávamos, em nossa cidade, habituados àquele tipo de briga. Para nós uma briga sempre começava por algum motivo, fútil ou não, mas tinha que haver um motivo: seja lá alguma desavença oriunda de qualquer tipo de ofensa tipo xingar a mãe ou roubar a namorada, enfim, uma briga nunca se iniciava do nada. Era sempre partir de uma questão que se formava a roda e começava a briga; agora assim do nada, só do frio das palavras, nunca havia ocorrido.
Mas ocorreu. Taíde aceitou o desafio, colocou se de pé em posição de defesa com os dois braços colados ao peito, punhos cerrados, olhos atentos. Ivo, imitou-o. Dois enormes corpos em posição de luta, próximos um do outro; não havia fúria, não havia raiva e também quase não houve tempo: Taíde afastou um passo, viu a imobilidade do adversário e acertou-lhe bem ao meio do nariz um potente soco.
Sangue no ar e Ivo foi-se ao chão.
Em briga tão inusitada nem houve necessidade dos sempre presentes “deixa disso”. Taíde foi para a quadra de futebol de salão e eu corri a enfermaria à busca de algodão para colocar no nariz ensangüentado do amigo.
Estancado o sangue Ivo levantou-se e voltou para a pensão.
Tornei a vê-lo na manhã seguinte: mala às mãos na plataforma da estação ferroviária; tinha o rosto inchados e a região dos olhos toda roxa acusando a força do murro recebido. Fiquei ao seu lado, aguardando o trem, e após longo silêncio Ivo disse-me:
- Foi bom: não senti nenhum medo.
Chegou ao trem e Ivo não aceitou o abraço que lhe ofereci.
Anos, décadas se passaram.
Ivo, provavelmente na Europa, em sua carreira de escultor e eu, deixando de lado meu sonho de escritor, tornei-me fiscal do IBGE até aposentar-me por um motivo qualquer e iniciar esta vida de andarilho.
E foi como andarilho que vim a conhecer um belíssimo parque estadual no litoral do sul do país. Minha curiosidade em relação a este parque, além da beleza natural, dizia respeito ao cultivo de uma tradição: a cultura do Fandango.
Mas vamos deixar isso de Fandango de lado. Após três dias acampado em uma longínqua praia, alimentação à base de grãos, o organismo pediu comida quente o que me levou à cidade sede do parque. À procura de comida e de informações sobre o fandango descobri uma escola, sede de um trabalho comunitário que orientava artesões locais a, utilizando recursos da região, produzir artefatos para suprir a renda familiar. E ali naquela escola, entre tapetes de sisal, utilitários feitos com folhas de palmeiras da região, tarrafas, tapetes, surge uma pequena escultura de argila; um calafrio percorreu todo meu corpo ao vê-la: as formas elegantemente orgânicas, abstratas e de uma delicadeza ímpar denunciavam o autor: só podia o Ivo.
Toquei-a emocionado.
Percebendo meu vivo interesse pela escultura surge a “mestre” das oficinas: uma senhora já cinquentona, pele clara, português elegante, delicada. Soube depois que era professora aposentada, filha de austríacos, eximia na arte do tear, casada com um senhor português. Ao aposentar-se, aliou sua competência e experiência profissional, com sua habilidade no tear e passou a, voluntariamente, coordenar as oficinas de formação dos caiçaras da região em diferentes capacitações. Ao ser questionada pelo autor da escultura disse-me:
- O autor, cujo nome é Ivo, é um homem de nossa idade, formado por importante escola no Brasil e chegou, mesmo, a estudar na Europa. Chegou aqui no parque vindo do nada e realizou aqui algumas oficinas: é um escultor profissional, delicado, competente, mas pessoa de trato difícil, personalidade controvertida. Me parece uma pessoa sofrida, que ama a solidão e aqui no parque relaciona-se, com alguma dificuldade, apenas comigo e com Otávio, meu marido, que semanalmente leva até a ilha onde vive, em uma modesta cabana, comida e víveres que garantem sua sobrevivência.
Nossa conversa foi interrompida pela presença de uma jovem morena, bem vestida, olhos negros e amendoados como de nossos índios e um corpo escultural sob elegante vestido de malha. Dona Astrid, a professora com a qual estava a conversar, toma as vezes de anfitriã e apresenta-me:
- Senhor, esta é Clarice, assistente social, responsável pelos projetos que garantem a sustentação dos cursos aqui em nossa escola. Clarice este senhor é um turista e interessou-se sobremaneira pela escultura do Ivo.
- Boa tarde, senhor. Sim, o trabalho do Ivo encanta pessoas sensíveis. Mas é homem de difícil trato, não cumpre os compromissos. E já me colocou em situações realmente difíceis.
- Verdade? O que meu amigo lhe aprontou?, perguntei.
- Nem te conto! Veja só. Veio aqui visitar nossa escola nada menos que o governador. Viu uma aula do Ivo, gostou de seus trabalhos e encomendou três esculturas. Pagou pela que estava em exposição e pediu mais duas que ofereceria a autoridades da UNICEF. E foi a partir daí que iniciou minha luta. Ivo, alegando ora um motivo, ora outro, simplesmente não realizava as esculturas encomendadas pelo governador. Posso garantir que fiz de tudo, usei de todas as artimanhas, e nada de esculpir o solicitado.. E como você deve estar percebendo fiquei na pior. Semana si, semana não, era cobrada pela mulher do governador em longos telefonemas. Fui, pessoalmente, várias vezes até a tapera do escultor, trouxe-o uma vez até aqui rogando que fizesse as obras encomendadas, e nada. Mudo, mudo, sempre intolerável e irritantemente mudo...quando se dignava a abrir a boca dizia que havia feito a escultura mas que não havia gostado e que, por isso, havia destruído.
- Ele é realmente muito exigente, disse, meio sem pensar, mas intuitivamente, colocando-me, já em defesa do amigo.
- Um louco. Doido varrido. Mas...vocês são amigos? Como o conheceu? É também artista plástico? Faz esculturas?, perguntou-me.
- Não, não sou artista plástico. Conheci o Ivo quando adolescentes, antes dele ter ido para Rio estudar; nascemos na mesma cidade.
- A mulher do governador continua me cobrando as esculturas. Nossa escola depende de favores. Você poderia interferir? Não poderia pedir ao seu amigo que as faça? Se quiser mando um canoeiro ainda hoje levá-lo até a cabana de seu amigo - falou, denotando na fala, um fio de esperança.
A ansiedade da assistente social causou-me mal estar. Para ganhar tempo disse que gostaria de almoçar, que estava com fome e que não sabia se queria ou não visitar meu amigo.
- De qualquer forma, Astrid, você tem autorização de contratar canoeiro para levar este senhor até a cabana do escultor. Agora tenho que ir; tenha um bom dia e prazer em conhecê-lo. De qualquer forma veja o que pode fazer por mim, ou melhor, por mim não, mas pela nossa escola, e nos deixou , caminhando a passos largos em direção ao carro.
Ligou o carro, saiu apressadamente e, reconheço, deixando, para mim, o ar mais leve.
Dona Astrid continuou a conversa:
- Um pouco apressada, quer resolver as coisas a seu modo, mas é pessoa honesta e decente. Quanto recusa do Ivo, creio, é que seu amigo não resiste,ou não admite cobranças. Criou e vive em um mundo todo seu, isento de responsabilidades, de cobranças, de julgamentos; vive o seu mundo que privilegia o relaxamento total da consciência, onde reina o esquecimento, a imobilidade e a ausência do tempo. Penso que, em sua “doença”, se assim posso assim falar, é feliz. Quer vê-lo?
- Sim, quero, respondi.
Quem me levou até Ivo foi o Sr. Otávio, marido de astrid. Fomos em um pequeno bote.
Sr. Otávio, aproveitando a viagem, levou víveres comestíveis para Ivo. Foram mais de duas horas de viagem pelos canais de mangue que predominam na região.
Chegamos a uma praia erma e ao longe a pequena cabana, na qual deduzi, Ivo vivia. O pequeno bote estacionou a uns cem metros da cabana. Frente à cabana, junto ao mar, vi Ivo: enorme, cabelos já brancos, moreno de sol; de joelhos ao chão trabalhava, na areia da praia, uma enorme escultura. À aproximação do barco, levantou-se colocando em posição de defesa, mas ao reconhecer o Sr. Otávio voltou ao trabalho de esculpir.
Senhor Otávio aproximou-se:
- Boa tarde, Ivo. Trouxe um amigo seu aqui.
- Sei, é o Osvaldo, respondeu sem nos olhar, mantedo os olhos fixos nas mãos firmes talhando a areia grossa, úmida.
Emocionei-me.
Sr. Otávio deixou os alimentos em uma caixinha de isopor e retornou.
Fiquei ao lado do amigo escultor vendo-o trabalhar a areia dando-lhe formas inimagináveis.
- Você está bem, Ivo?, ousei perguntar.
- Só fico bem trabalhando. São as únicas horas em que me esqueço, esqueço as realidades do mundo. Realizo aqui os meus sonhos. Já sei bem as fases da lua e a tábua das marés: trabalho sempre de forma que logo após o término da escultura com suas ondas o mar as consuma.
E voltou ao trabalho que havia sido interrompido pela nossa palestra.
Estava esculpindo, já a terminar, um jovem fauno.
A maré subia e percebi que as ondas se aproximavam mais e mais de nossos pés.
Ivo convidou-me para comer.
Comemos grãos, em silêncio total, enquanto as águas solapavam, primeiramente, os pés do belo fauno de areia...

domingo, 4 de abril de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: O ENCANTADOR DE COBRAS!



E a ágape dos contadores de histórias continuou noite adentro sob o céu estrelado e com uma enorme lua gorda e brilhante. Um ventinho frio cortava a arena convidando os contadores a aproximarem os corpos para confortar do frio.
Um outro contador de se apresentou.
Era um homem de estatura média, gordo, com a barriga estufando a camisa de flanela com mangas compridas, olhos claros de um azul meio acinzentado; tinha os cabelos grisalhos, lisos, caídos sobre a testa, encobrindo as rugas salientes, marcas da idade e, talvez, dos sofrimentos e das alegrias que tivera na vida.
Apresentou-se, um pouco tímido, diga-se de passagem, anunciando seu nome – Arlindo Maringone - , e nos informou, platéia atenta e curiosa, que nascera, há mais de setenta anos, no interior de Minas Gerais, divisa com Goiás, em um planalto de cerrados e algumas veredas com elegantes buritizais.
Bonito seu sotaque de mineiro, seu dialeto tão próprio, carecendo às vezes de ir fundo na atenção de ouvir e pensar para traduzir suas palavras. Atento, quando o Arlindo percebia na platéia as dificuldades de seu palavreado, gesticulava, fazia careta, sorria, torcia a boca, fechava os olhos e, com estes tantos gestos, facilitava o entendimento de sua fala.
“Lá onde nasci, prosseguiu Maringone, não tinha os benefícios da luz elétrica, da água encanada e do asfalto. Era todo um mundo de solidão, de excessiva quietude, de muitas pouquíssimas palavras. Os fins de dia e seus entardeceres eram tristes, prognosticando a escuridão da noite. E foi lá, no sítio do Baguaçu, que nasci e depois, homem feito, vivi a vida de casado com minha mulher Lourdes; não tivemos filhos, e só, vivia cuidando de uma roça de dois mil e poucos pés de café bem embaixo do pé da serra; também, numa espraiada situada mais ao norte do sítio, nos tempos das chuvas, plantava milho e feijão das águas e, na época da seca, semeava e colhia arroz; no sítio tinha, também, margeando o entorno do morro do Chapéu, um bom pasto forrado de capim gordura, suficiente para criar de vinte a trinta cabeças de gado mais uns poucos cavalos e a mula Serena.
Era assim que me ocupava e os dias iam passando devagar.
Foi então que em um ano, que hoje não me lembro mais, me foge o seu número, que aconteceu das cobras matarem, com suas picadas venenosas, duas vacas, três novilhas e pequenos bezerros. No pasto, campo do cerrado, sempre teve muitas cobras mas, de antes do ocorrido que estou a contar, nunca havia acontecido, graças ao bom Deus, mais que uma ou duas mortezinhas em todo o ano. Pois vejam: naquele maldito ano, do qual estou a contar, só no mês de setembro, as cobras deram fim a dois bezerros, uma novilha e, pior de tudo, mataram a Esperança, vaca de minha mulher, que estava mojando, prestes a parir mais um bezerro, que pobrezinho, morreu mesmo antes de nascer.
Para ser fiel com a verdade, não posso negar que sempre houve cobras por lá.
E bastante!
Tanto que um primo meu, menino da cidade, pouco conhecedor dos perigos da roça, foi mordido por uma cascavel quando, inocente, mesmo tendo ouvido o “creshshsh” de seu guizo continuou em sua lida de catar, para comer, doces gabirobas na moita. Nem preciso contar o triste fim do que aconteceu com este meu primo: morreu de dor e de inchaço pelo veneno forte. Meu pai matou a cobra e descobriu, pelos anéis de seu guizo, sua idade de treze anos, mesmo tempo em anos, do primo que vitimara com seu veneno forte. Se encontrava também, nos pastos e no cafezal, além das cascavéis e das jararacas, enormes surucucus, que gostavam mais de ficar quietas, escondidas nas margens do riozinho, espreitando as rolinhas e juritis que iam beber água fresca; também se via por lá a temida urutu, aquela que tem a cruz na testa, e a veloz capitão do mato, só que esta, por não ser venenosa, não causava medo de dores e de morte.
Mas, voltando ao assunto da história: naquele ano já tinha perdido mais de três novilhas, dois bezerrinhos, uma outra vaca e a Esperança, todos finados por mordidas de cobras.
Para acabar com tantas mortes a solução que me veio à cabeça seria buscar, longe, bem longe, na Gruta da Onça, o Senhor Sudário, famoso curador e benzedor.
Falei com Lourdes e fomos.
Pelo menos três dias, no lombo do cavalo, foram gastos na viagem de casa até o Taquari, casa dos pais de Lourdes; de lá, onde ficou minha mulher, foi mais um dia e meio até a Gruta da Onça, onde ficava, à beira de um córrego, a tapera do Senhor Sudário.
Era lá que ele vivia: só, ensimesmado com suas rezas, barba por fazer, cabelos longos. Alto, tinha a pele escurecida e enrugada, um olhar sereno, mas severo, exigente, argüidor, sempre teimando em inquirir o que é que a gente queria com ele. O Senhor Sudário, só com o poder de seu olhar, punha a gente a falar o que ele queria, obrigava a gente a dizer o que vinha fazer naquele recanto, que necessidades e urgências possuía para vir buscar o seu auxílio.
Só falava o estritamente necessário, economizando palavras; era assim o Senhor Sudário e como disse antes, apenas pela força de seu olhar, lhe falei dos acontecidos no meu sítio, da ferocidade das cobras naquele ano e que carecia de seu auxílio de benzedor.
- “Ta com dois cavalos? Posso ir amanhã. O caso urge.”, falou com sua voz cavernosa, profunda, que causava receio, mesmo sendo eu já homem adulto e experiente em desavenças.
Dormimos em sua tapera esperando o dia clarear.
Ordenou, ainda de madrugada, o caminho que faríamos e disse que não levasse Lourdes: “pode sangrar nestes dias e, mulher sangrando, atrapalha benzedura.”
No caminho de nossa viagem tentei buscar conversa, mas não tive respostas. Seu olhar ordenava silêncio: nem mesmo o Bom Dia! ao acordar e a Boa Noite! ao anoitecer.
Silêncio de palavras na quietude total.
Chegamos, depois de quatro dias de silenciosa viagem, ao Sítio do Baguaçu.
- “Sem descanso. O assunto carece urgência.”, disse tão logo chegamos .
-“Aceita um café? Posso coar.”, perguntei.
O curandeiro não aceitou o café oferecido.
- “Preciso, para os benzimentos, de uma carcaça de vaca, morta por mordida de cobra; as orações, os terços e as encomendas, que mandarão para longe, as cobras deste lugar, serão feitos junto à cruz de um humano morto por picada de cobra. S´imbora logo.”, ordenou.
Nem bem disse e saiu à minha frente a passos largos, seguros, confiantes. E milagrosamente, sem saber como ocorria, o Senhor Sudário, como que me guiando, caminhou em direção ao córrego, logo abaixo da cachoeirinha, onde, eu sabia, havia a carcaça da Soberana, uma enorme vaca zebuína, morta há uns dois anos por uma urutu. Recolheu a carcaça e, sempre à minha frente, encaminhou em direção à cruzinha que homenageava o local da morte de Edinho, o primo da cidade que havia sido morto por uma cascavel enquanto colhia gabirobas, como já contei.
Não sei se vocês conhecem pastos de cerrados, mas se não, saibam que os mesmos são recortados por trilhos feitos pelo gado e cavalos em sua busca por água e capim. São inúmeros os trilhos que se cruzam, formam encruzilhadas e, para quem não conhece, folrmam verdadeiros labirintos. Aqui no meu sítio do Baguaçu, não era diferente e caminhar pelos trilhos, passar adentro pelas capoeiras de mato sem se perder era ofício dos nascidos no local. Então, por isso, o que sentia ao ser guiado tão corretamente pelo Senhor Sudário, pelos trilhos dos pastos do meu cerrado era de muito difícil compreensão. Deveria estar eu a guiá-lo e o contrário era o que acontecia, Deus do céu.
E fui atrás de seus passos largos até chegarmos à cruz.
Lá o Senhor Sudário depositou, aos seus pés , a carcaça, deu um passo atrás e argüiu-me:
- “Daqui de onde estou, de que lado nasce o sol?”
Apontei a direção e o velho curandeiro posicionou-se , de forma a ficar com suas costas para a nascente e, com seu facão, a partir dos pés da cruz traçou, riscando forte e fundo, uma enorme cruz ao chão, cuja cabeça seguia em continuação dos pés da cruz de madeira.
Terminada a feitura da cruz no chão, silenciou-se, fechou os olhos por alguns instantes e disse:
- “É hora de tomar uma resolução para onde quer que eu mande embora as cobras.”, e apontando para o poente continuou: “Para lá sei que mora seu inimigo, mas não é bom, tocá-las para aquelas bandas...para onde você quer mandar?”.
“Até dos meus inimigos, que guardo em segredo até de Lourdes, o velho curandeiro tem ciência”, pensei.
Urgia decidir. Ao sul havia as furnas dos Ferreiras, lugar ermo, sem plantação e casas de moradia. Dizia-se, mesmo, que nos bem antes era habitado por bugres, que, temerosos pela quantidade de cobras que havia no local fugiram para os Altos do Chapadão, onde passaram a viver.
O melhor, pensei, seria devolver à furna dos Ferreiras as amaldiçoadas cobras.
Apontei a direção desejada e, imediatamente, o Senhor Sudário iniciou um outro traçado, unindo os braços e a cabeça da cruz que havia riscado no chão, formando um desenho parecido com um caixão de defunto.
Terminado o desenho no chão, tirou do embornal um novelo de barbante e iniciou rezas de incompreensíveis orações; seus os olhos foram ficando vesgos, tortos, a boca soltando grossa espuma, enfim, endemoniando-se o homem. Com o barbante fez uma cerca sobre o traçado feito com o facão, para cercar as cobras deixando apenas um vão que ficava, justamente, nos pés da cruz de madeira. A cruz seria o vigia para impedir o retorno das amaldiçoadas cobras.
Durou, a cerimônia, tempos, para mim, indefinidos.
- “Pronto. Quando quer que elas se vão? Quer agora ou mais de tarde?”
Atordoado por tantas novidades achei melhor acudir que elas fossem um mais tarde: precisava descansar de tamanhas tonturas.
- “Agora, se puder, quero um café”, falou em voz baixa.
Voltamos para casa e coei café. O velho curandeiro ficou fora, perto do curral. Coado o café levei o bule e duas canequinhas e sentamos para beber. Seus olhos indicavam que continuava a não querer prosa: almejava silêncio.
E nem bem sentamos em uma pedra para bebermos o café ouvi, ao longe, um assobio forte tal e qual fazem os ventos em meses de chuva brava, como aqueles que vêm antes das chuvas de dezenove de março, a das enchentes de São José, e ele:
- “São elas, já estão indo e que o diabo as carreguem!”, disse ao mesmo tempo em que fez o sinal da cruz.
Nem bem terminou de beber a segunda canequinha, levantou-se, assoou forte o nariz, cuspiu no chão um cuspe preto e ordenou:
- “Encilhe o cavalo para mim. Já tou´indoimbora. Sozinho.”
Obedeci e enquanto arreava o cavalo o sibilo da fuga das cobras tornou-se mais próximo, atravessou o pasto em direção do cafezal, passou pelos fundos do quintal, ao lado do pequeno córrego e foi sumindo em seu tinido agudo para as bandas da furna dos Ferreiras.
- “ E quanto lhe devo pelo serviço?”, perguntei.
- “Tem paçoca de carne seca, já pronta? Tenho uns quatro dias de viagem de volta até minha tapera.”
Quando voltei com a matula de paçoca o curandeiro já estava montado.
Seus olhos permitiram apenas:
- “Que Deus o ajude, minha benção.”
- “Abençoado está. Inté.”
E tocou o cavalo em direção à porteira.