quarta-feira, 26 de maio de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: IVO, O ESCULTOR.


Tão logo o velho mineiro terminou de contar história do Encantador de Cobras, posicionou-se na arena um homem moreno, pequeno, atarracado, lábios grossos, músculos salientes aparentes sob a camiseta branca. Tinha olhos negros, sobrancelhas espessas e bem delineadas, dentes perfeitos, brancos e os cabelos encaracolados como os dos anjinhos dos antigos santinhos, só que escuros.
Voz clara, forte em um timbre suave de baixo-tenor.
“Meu nome é Osvaldo, e quero contara a história do Ivo, o escultor.
De imediato devo confessar a dificuldade que estou encontrando de contar esta história. Desde a hora que saí de casa, no interior de São Paulo, até chegar aqui, pensei e repensei inúmeras vezes em como contá-la e agora, comigo aqui no centro da arena ainda não conclui qual seria a melhor e por isso, já peço desculpas.
Vou começar pelo começo, e tentar ser o mais compreensível possível, em respeito ao Ivo e também, claro, aos senhores aqui presentes.
Penso que a minha mochila e as minhas leves vestimentas devem ter denunciado minha condição de andarilho. Sim, conheço a palmo quase todo este país de Deus, andando, caminhando, dormindo em minha barraca, comendo grãos, frutos secos, bebendo água nas fontes e nos córregos, tomando banho nos mares e nos rios.
E foi assim, em uma de minhas inúmeras caminhadas que, por mero acaso, reencontrei o dono desta história.
Iniciando então devo dizer que somos, o Ivo e eu, de uma pequena cidade do interior do Estado de Minas Gerais. Crescemos protegidos pela verde e negra Serra da Mantiqueira: verde de manhã ao nascer do sol e negra quando o mesmo se esconde, determinando uma sombra fresca, protetora, que, aliada ao vento sul, prepara as noites frias, que exigem, de janeiro a janeiro cobertores tecidos com lã de carneiro.
Os estudos na pequena cidade, pelo menos até então, limitavam-se, aos que queriam e podiam, ao antigo Ginásio. Ivo estudava um ano em minha frente e nos tornamos amigos. A bem da verdade eu era um dos poucas pessoas com quem se relacionava. Para a maioria da cidade Ivo era uma figura por demais “neurastênica” e para nossa professora de português, nosso herói apresentava traços de misantropia.
Nossa convivência era cordial, pacífica, silenciosa, pouco afetiva e mutuamente respeitosa. Sua competência para com a arte da escultura era, desde àquela época, inquestionável, unânime mesmo entre os outros artistas da pequena cidade e região que, maravilhados com sua arte, libertavam-se de mesquinhos ciúmes, esqueciam aspectos realmente sombrios de sua estranha personalidade e maravilhavam-se com sua arte.
Terminado Ginásio, fez vestibular nas Escolas Nacionais de Belas Artes do Rio de Janeiro e de São Paulo e foi aprovado em ambas. Optou pelo Rio de Janeiro. Após isso passou a vir à nossa pequena cidade apenas em suas férias até que seus pais mudaram-se para São Paulo quando suas visitas e seu contato rarearam por completo.
Retornou apenas quando terminou o seu curso no Rio, como que surgindo do nada... Aconchegou-se na única e pequena pensão que havia na cidade e o encontrei no jardim frente à Igreja; nosso encontro foi cordial, afetuosos embora, como sempre, Ivo evitava qualquer tipo de manifestação externa de carinho. Continuava quieto, mudo mesmo, com seus olhos oblongos voltados para o horizonte; usava, agora, longas costeletas o que lhe rendeu, de imediato, o apelido de D. Pedro I.
Combinamos de nos encontrar, no clube, na manhã seguinte. Foi lá, ao lado da piscina, que após horas de silenciosa convivência Ivo me disse que lhe haviam oferecido duas bolsas de estudo na Europa e que entre Portugal e Alemanha havia optado pela Alemanha. Repetiu duas vezes o nome da escola onde iria estudar e percebeu que eu não entendia. Quando lhe perguntei, maravilhado, se falava alemão, Ivo respondeu:
- Sei falar Bom dia. Caso tenha sede não sei como pedir um copo d´água. Melhor: não vou lá para conversar.
Continuou em seu silêncio até o momento em que chegava ao clube, passando por nós, o time de futebol de salão da cidade. À frente do grupo o enorme Taíde, famoso por sua força física, resistência e também pela inquestionável habilidade como jogador. Ivo perguntou-me:
- É o Taíde?
- Sim, Ivo, é o Taíde, ou se quiser o Marrucão seu velho apelido.
- Verdade: havia me esquecido de seu apelido. Continua o mais forte da cidade?
- Sim, continua sendo o mais forte.
Repentinamente Ivo levantou se do banco onde estávamos acomodados e, sem mais, dirigiu-se até o local onde estava o pessoal do futebol de salão, e ao aproximar-se do Taíde, calmo e com voz suave disse:
- Você continua sendo o mais forte? Quero brigar com você.
Realmente não estávamos, em nossa cidade, habituados àquele tipo de briga. Para nós uma briga sempre começava por algum motivo, fútil ou não, mas tinha que haver um motivo: seja lá alguma desavença oriunda de qualquer tipo de ofensa tipo xingar a mãe ou roubar a namorada, enfim, uma briga nunca se iniciava do nada. Era sempre partir de uma questão que se formava a roda e começava a briga; agora assim do nada, só do frio das palavras, nunca havia ocorrido.
Mas ocorreu. Taíde aceitou o desafio, colocou se de pé em posição de defesa com os dois braços colados ao peito, punhos cerrados, olhos atentos. Ivo, imitou-o. Dois enormes corpos em posição de luta, próximos um do outro; não havia fúria, não havia raiva e também quase não houve tempo: Taíde afastou um passo, viu a imobilidade do adversário e acertou-lhe bem ao meio do nariz um potente soco.
Sangue no ar e Ivo foi-se ao chão.
Em briga tão inusitada nem houve necessidade dos sempre presentes “deixa disso”. Taíde foi para a quadra de futebol de salão e eu corri a enfermaria à busca de algodão para colocar no nariz ensangüentado do amigo.
Estancado o sangue Ivo levantou-se e voltou para a pensão.
Tornei a vê-lo na manhã seguinte: mala às mãos na plataforma da estação ferroviária; tinha o rosto inchados e a região dos olhos toda roxa acusando a força do murro recebido. Fiquei ao seu lado, aguardando o trem, e após longo silêncio Ivo disse-me:
- Foi bom: não senti nenhum medo.
Chegou ao trem e Ivo não aceitou o abraço que lhe ofereci.
Anos, décadas se passaram.
Ivo, provavelmente na Europa, em sua carreira de escultor e eu, deixando de lado meu sonho de escritor, tornei-me fiscal do IBGE até aposentar-me por um motivo qualquer e iniciar esta vida de andarilho.
E foi como andarilho que vim a conhecer um belíssimo parque estadual no litoral do sul do país. Minha curiosidade em relação a este parque, além da beleza natural, dizia respeito ao cultivo de uma tradição: a cultura do Fandango.
Mas vamos deixar isso de Fandango de lado. Após três dias acampado em uma longínqua praia, alimentação à base de grãos, o organismo pediu comida quente o que me levou à cidade sede do parque. À procura de comida e de informações sobre o fandango descobri uma escola, sede de um trabalho comunitário que orientava artesões locais a, utilizando recursos da região, produzir artefatos para suprir a renda familiar. E ali naquela escola, entre tapetes de sisal, utilitários feitos com folhas de palmeiras da região, tarrafas, tapetes, surge uma pequena escultura de argila; um calafrio percorreu todo meu corpo ao vê-la: as formas elegantemente orgânicas, abstratas e de uma delicadeza ímpar denunciavam o autor: só podia o Ivo.
Toquei-a emocionado.
Percebendo meu vivo interesse pela escultura surge a “mestre” das oficinas: uma senhora já cinquentona, pele clara, português elegante, delicada. Soube depois que era professora aposentada, filha de austríacos, eximia na arte do tear, casada com um senhor português. Ao aposentar-se, aliou sua competência e experiência profissional, com sua habilidade no tear e passou a, voluntariamente, coordenar as oficinas de formação dos caiçaras da região em diferentes capacitações. Ao ser questionada pelo autor da escultura disse-me:
- O autor, cujo nome é Ivo, é um homem de nossa idade, formado por importante escola no Brasil e chegou, mesmo, a estudar na Europa. Chegou aqui no parque vindo do nada e realizou aqui algumas oficinas: é um escultor profissional, delicado, competente, mas pessoa de trato difícil, personalidade controvertida. Me parece uma pessoa sofrida, que ama a solidão e aqui no parque relaciona-se, com alguma dificuldade, apenas comigo e com Otávio, meu marido, que semanalmente leva até a ilha onde vive, em uma modesta cabana, comida e víveres que garantem sua sobrevivência.
Nossa conversa foi interrompida pela presença de uma jovem morena, bem vestida, olhos negros e amendoados como de nossos índios e um corpo escultural sob elegante vestido de malha. Dona Astrid, a professora com a qual estava a conversar, toma as vezes de anfitriã e apresenta-me:
- Senhor, esta é Clarice, assistente social, responsável pelos projetos que garantem a sustentação dos cursos aqui em nossa escola. Clarice este senhor é um turista e interessou-se sobremaneira pela escultura do Ivo.
- Boa tarde, senhor. Sim, o trabalho do Ivo encanta pessoas sensíveis. Mas é homem de difícil trato, não cumpre os compromissos. E já me colocou em situações realmente difíceis.
- Verdade? O que meu amigo lhe aprontou?, perguntei.
- Nem te conto! Veja só. Veio aqui visitar nossa escola nada menos que o governador. Viu uma aula do Ivo, gostou de seus trabalhos e encomendou três esculturas. Pagou pela que estava em exposição e pediu mais duas que ofereceria a autoridades da UNICEF. E foi a partir daí que iniciou minha luta. Ivo, alegando ora um motivo, ora outro, simplesmente não realizava as esculturas encomendadas pelo governador. Posso garantir que fiz de tudo, usei de todas as artimanhas, e nada de esculpir o solicitado.. E como você deve estar percebendo fiquei na pior. Semana si, semana não, era cobrada pela mulher do governador em longos telefonemas. Fui, pessoalmente, várias vezes até a tapera do escultor, trouxe-o uma vez até aqui rogando que fizesse as obras encomendadas, e nada. Mudo, mudo, sempre intolerável e irritantemente mudo...quando se dignava a abrir a boca dizia que havia feito a escultura mas que não havia gostado e que, por isso, havia destruído.
- Ele é realmente muito exigente, disse, meio sem pensar, mas intuitivamente, colocando-me, já em defesa do amigo.
- Um louco. Doido varrido. Mas...vocês são amigos? Como o conheceu? É também artista plástico? Faz esculturas?, perguntou-me.
- Não, não sou artista plástico. Conheci o Ivo quando adolescentes, antes dele ter ido para Rio estudar; nascemos na mesma cidade.
- A mulher do governador continua me cobrando as esculturas. Nossa escola depende de favores. Você poderia interferir? Não poderia pedir ao seu amigo que as faça? Se quiser mando um canoeiro ainda hoje levá-lo até a cabana de seu amigo - falou, denotando na fala, um fio de esperança.
A ansiedade da assistente social causou-me mal estar. Para ganhar tempo disse que gostaria de almoçar, que estava com fome e que não sabia se queria ou não visitar meu amigo.
- De qualquer forma, Astrid, você tem autorização de contratar canoeiro para levar este senhor até a cabana do escultor. Agora tenho que ir; tenha um bom dia e prazer em conhecê-lo. De qualquer forma veja o que pode fazer por mim, ou melhor, por mim não, mas pela nossa escola, e nos deixou , caminhando a passos largos em direção ao carro.
Ligou o carro, saiu apressadamente e, reconheço, deixando, para mim, o ar mais leve.
Dona Astrid continuou a conversa:
- Um pouco apressada, quer resolver as coisas a seu modo, mas é pessoa honesta e decente. Quanto recusa do Ivo, creio, é que seu amigo não resiste,ou não admite cobranças. Criou e vive em um mundo todo seu, isento de responsabilidades, de cobranças, de julgamentos; vive o seu mundo que privilegia o relaxamento total da consciência, onde reina o esquecimento, a imobilidade e a ausência do tempo. Penso que, em sua “doença”, se assim posso assim falar, é feliz. Quer vê-lo?
- Sim, quero, respondi.
Quem me levou até Ivo foi o Sr. Otávio, marido de astrid. Fomos em um pequeno bote.
Sr. Otávio, aproveitando a viagem, levou víveres comestíveis para Ivo. Foram mais de duas horas de viagem pelos canais de mangue que predominam na região.
Chegamos a uma praia erma e ao longe a pequena cabana, na qual deduzi, Ivo vivia. O pequeno bote estacionou a uns cem metros da cabana. Frente à cabana, junto ao mar, vi Ivo: enorme, cabelos já brancos, moreno de sol; de joelhos ao chão trabalhava, na areia da praia, uma enorme escultura. À aproximação do barco, levantou-se colocando em posição de defesa, mas ao reconhecer o Sr. Otávio voltou ao trabalho de esculpir.
Senhor Otávio aproximou-se:
- Boa tarde, Ivo. Trouxe um amigo seu aqui.
- Sei, é o Osvaldo, respondeu sem nos olhar, mantedo os olhos fixos nas mãos firmes talhando a areia grossa, úmida.
Emocionei-me.
Sr. Otávio deixou os alimentos em uma caixinha de isopor e retornou.
Fiquei ao lado do amigo escultor vendo-o trabalhar a areia dando-lhe formas inimagináveis.
- Você está bem, Ivo?, ousei perguntar.
- Só fico bem trabalhando. São as únicas horas em que me esqueço, esqueço as realidades do mundo. Realizo aqui os meus sonhos. Já sei bem as fases da lua e a tábua das marés: trabalho sempre de forma que logo após o término da escultura com suas ondas o mar as consuma.
E voltou ao trabalho que havia sido interrompido pela nossa palestra.
Estava esculpindo, já a terminar, um jovem fauno.
A maré subia e percebi que as ondas se aproximavam mais e mais de nossos pés.
Ivo convidou-me para comer.
Comemos grãos, em silêncio total, enquanto as águas solapavam, primeiramente, os pés do belo fauno de areia...

Um comentário:

Morales disse...

Bela história, Orlando. Misteriosa como os meandros da alma humana, diria um poeta. O mar já começa a aparecer em suas histórias. É isso que acontece com quem mora na praia!