sábado, 27 de junho de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - X - FOI QUANDO NENZÃO VESTIU A FARDA DO SOLDADO MORTO!



Fiquei quieto, mudo, sem respirar – um infinito tempo -, enfiado ali dentro da cova, o corpo do Tramela pesando em cima de mim, aquele defunto corpo fazendo as vezes de um protetor escudo, suas carnes e sua armadura de ossos segurando – dentro dele - os balaços que o macaco desferiu para comprovar que todos ali estavam mortos com as almas escapulidas dos corpos, e eu quieto: medo de respirar e os macacos escutarem o som do pulmão, a garganta seca de sede e de medo, as mãos trêmulas e os ouvidos atentos, ligados no lá fora da cova, carecia de saber se os macacos tinham mesmo ido embora, não escutava mais seus passos, seus tossidos secos, suas cusparadas de nojo e nem o barulho -“tracscratch” - de quando armavam suas metralhadoras, balas em pente, finas balas alojadas - enfiadas ao lado do coração dos corpos dos sertanejos de rostos secos, olhos mortos, embaçados olhos, dentes à mostra, a roxa língua cobrindo parte do lábio inferior, mortos. E eu comigo e com meus pensamentos: tenho que, o quanto antes, em antes que seja por demais tarde, sair daqui e ir até o casebre em Canudos: catar no meio da parede de pau a pique, um canudo de bambu e dentro dele, enfiado, um bolo com todos os dinheiros que tinha ganhado na venda dos gados dos meus tempos de vaqueiro, o bolo de dinheiro estava ali, protegido, dinheiros de anos de trabalhos e de negócios e eu resolvi, ali, nos fundos daquela cova, que ia lá catar o que era meu e seguir a vida, cair na estrada, buscar o destino para onde apontasse meu nariz, nariz obediente aos cheiros dos ventos e olhos ao brilhar das estrelas; ia – de novo - buscar a vida mundo afora: uma certeza eu tinha, uma ao menos: não mais ia viver a vida de vaqueiro, isolado do mundo, vida sem escutar vozes e choros, isso não queria mais não e eu também sabia um pouco desiludido – no agora daquelas horas, ali na cova – que os tempos dos milagres haviam se finados: nos mundos de então as balas – desrespeitavam pedidos e rezas e acordos – e se enfiavam corpo adentro dos vivos e tocando lá dos seus fundos a alma, que lépida, fugia à caça de novos corpos, vidas mais duradouras, cansadas almas.

Chegou uma hora em que ouvi demais o silêncio e resolvi que era hora de ir até o casebre de Canudos, buscar o que era meu: devagar, sem fazer barulho, tirei meu corpo debaixo do Tramela, alevantei-me e vi que o sol estava querendo começar a cair pros lados do poente, devia ser coisa de três ou quatro horas da tarde, nas em outubro os dias são longos, tem claridade até as seis e meia, os depois da ave-maria ainda claro, e atirei o corpo fora da cova, lá dentro os mortos defuntos, catei a pá e cobri os corpos com a seca terra e as pedras que serviram de balaustrada, carecia de proteger dos urubus e dos carcarás e dos tatus pegas comedores de carne de defunto; escuto um tiro: as metralhadoras dos macacos, lá longe, bem longe se escuta: brummm! tiro de metralhadora, e corri dali, o estômago roncando de fome, a garganta seca, carecendo de beber água, lá em Canudos bebo, tenho que sair daqui.

Canudos era um amontoado de corpos: um cemitério de corpos jogados, não cobertos: vivo apenas velhos e crianças, chorando de fome, as enormes barrigas cheias de lombrigas, os olhinhos remelentos: cadê minha mãe; deus levou, fique aqui quieto; quero minha mãe; quieto menino de deus, quieto... Na sala do casebre três corpos sertanejos, armas e porrete nas mãos, mosquitos verdes e azuis cobrindo os rostos e comecei a esburacar com a ponta de uma faca a parede para achar o bambu com meus dinheiros e escutei vindo de fora, passos e me deitei junto aos corpos dos defuntos e fiquei ali, mais uma vez morto entre mortos e o macaco chega, abre a cortina de chita da janela para melhor enxergar o lá de dentro, arma na mão, cospe em cima dos corpos, tem nojo daquilo: inda bem que acabou a guerra!; e inspeciona os corpos com a ponta da bota, chuta as costelas e os corpos não respondem, mortos, livres das almas e o soldado resolve ir embora, muita desgraça, deve ter pensado, vira de costas, o pescoço branco descoberto, o chapéu caído e - rápido, sem pensar – enfio a faca certeira abrindo espaço entre os ossos e a jugular: te mato desgraçado, morre filho da puta de macaco e o peso do meu corpo ajudando a faca a buscar a veia da vida, o sangue jorrando em meus braços, vermelho sangue e o urro do soldado macaco caído, a morre urrando igual a um lobo em noite de lua cheia... depois, o silêncio.

Com a faca, suja de sangue, continuei a procurar o toco de bambu enfiado na parede de barro com meus dinheiros: será que o Nenzão sabia e catou meu dinheiro, não é hora de fazer maus pensamentos dos amigos, deus castiga e a faca encontra o duro bambu meio ao seco barro: plec! plec! arranquei o toco de bambu com meus dinheiros, o dia estava se cansando de clarear, a noite chegava com sua escuridão e em Canudos regia o mortal silêncio: o sino da estilhaçada igreja, a torre ao chão não tocou chamando o povo para as ave-marias, cadê o Bentinho? cadê o Conselheiro? por onde será que anda o Pajeú.

No alto do morro da Favela as barracas dos macacos iluminadas pelos lampiões a querosene: tirei minha roupa de vaqueiro, vesti a farda do soldado, me tornei um macaco, e caminhei em direção à claridade das barracas!

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - IX - A VIOLENTA LUTA CONTRA OS MACACOS DA REPÚBLICA!


 


 

Canudos vivia – desde as poucas nuvens que vestiam o seu céu, desde o distante Monte Santo, Canudos em seu tudo, mesmo em suas secas margens do Vaza Barris onde as mulheres lavam suas roupas e de seus maridos com seus filhos em volta – peladinhos, enormes barrigas à mostra, nadando meio ao barro e as espumas do sabão –: toda a vila de Canudos e suas infinitas imediações e seus povos viviam um grande medo, um medo misturado com violência, semelhante com o ar que toma conta dos homens e dos animais quando os raios despencam céu abaixo, junto aos raios intermináveis roncos de trovões que fazem tremer os chãos e os cabritos e as galinhas, todos – até o grande e verde juazeiro balança forte, querendo – medroso do temporal - fugir, pousar em calmos lugares e lá produzir sua sombra e, pois até o juazeiro naquelas horas de tormenta se dava por ficar invejoso das humanas pernas fugidias e sonha com suas raízes se transformando em pernas e pés e mãos – tudo a fugir da tempestade, os grossos pingos estalando no chão, fazendo subir nuvenzinhas de poeiras assustando a terra seca com a novidade da chuva –; mas o que havia em Canudos? o céu andava claro, nada de raios, um céu vestido com o claro azul de outubro, não denunciava chuvas nem raios nem tormentas: a secura imperava, o Vaza Barris mais parecendo um fiapinho de barrentas águas; mas então o que havia para fazer os assustados povos se recolher – medrosos – escondidos em suas casas, cerrando as cortinas de chita nas janelas, as calejadas mãos – nervosas - debulhando as contas dos terços gritados em voz alta: ave-marias e salve-rainhas, que o Santo Conselheiro tome conta de nós e nos livre das sujas mãos dos macacos da república, que - deus do céu - a cada dia, a cada madrugada, mais se aproximam daqui da Santa Vila dos Canudos, terra de oração e preces, santa virgem rogai por nós.

Chico Ema tinha medo não: medo não era com ele que - enorme facão e porrete às mãos - se dizia pronto para enfrentar e defender o Conselheiro e os velhos e as crianças de Canudos: mato tudo quanto é macaco que aparecer por aqui buscando a desordem, luto com Deus e o santo Conselheiro não vai permitir a morte de quem briga do seu lado; e foi junto com Chico Ema, mais o Taramela e o Raimundo, foi essa a turma que Estevo ordenou que eu me juntasse e fosse ocupar uma cova, cavada meio da caatinga, antes da entrada da Vila, para de lá – a tiros de espingarda cartucheira – esperar os macacos do governo: três de nós: eu, mais o Chico Ema e Taramela a atirar nos macacos e Raimundo mais o Manuel Quadrado para rebobinar os cartuchos e alimentar de chumbo e pólvora as armas e a gente a defender a entrada da vila; a cova era uma cova funda, coisa de quase um de metro de fundura e a terra e pedras retiradas para fazer o buraco foram ajeitadas nas beiradas para proteger nossas cabeças das balas dos winchesters dos soldados da república que a cada dia se mostravam mais corajosos e desobedientes às pragas e às rezas e novenas dos moradores da vila: será que Conselheiro desistiu da luta? Será, deus nos livre e guarde, eu pensava – que o santo homem tinha entregado os ponteiros tanto é sua magreza por nunca ter fome de comer, a vida só a rezar e a olhar para o céu buscando milagres, e naqueles últimos dias inté mesmo o Bentinho – cara de assustado – deixou de lado as rezas e de suas andanças para saber das novidades e amolou um facão: a hora é de luta, irmãos! viva Nosso Senhor, viva o Conselheiro.

Chegamos, obedecendo as ordens do Estevo, à tardinha na cova, e dormimos agachados esperando o avanço dos macacos na madrugada; se combinou que era proibido conversar alto e de acender cigarro para evitar o brilho da luz da binga clarear nosso esconderijo e sem a catinga do fumo as muriçocas infernando nossa vida, achando o menor furo na manga da camisa para lá meter seu alfinetinho e sugar nosso sangue, e a gente a dar tapas e falar – baixinho, para ninguém escutar - nomes feios – muriçoca dos infernos vai morder a puta de sua mãe, bicho desgraçado – acordava quem sonava fraco, era um dormir acordado, uma estrela caiu e Chico Ema apontou com o dedo a estrela que apontava um caminho, o caminho da fuga, caiu para os lados do oeste: é pecado apontar com o dedo a estrela que cai, cria verruga no dedo que aponta e Chico Ema levantou o corpo forte da cova, carecia de espreguiçar e verter água do corpo, o Estevo alertou que não era para sair da cova, esperar quieto, os macacos podiam estar tocaiando a gente por perto, mas, Chico Ema – apertado para mijar - se apoiou no montinho de pedra da beirada da cova e saltou fora, espreguiçou jogando os braços para o alto, parecia que rezava, tirou o pinto para mijar e um raio e um trovão bateu em seu peito e nas suas costas e o home caiu em cima de nós, na cova, jorrando sangue pelas costas vazadas em um buraco e pelo peito, a cara empalidecida, enorme buraco e cada um catou sua espingarda cartucheira e se colocou em posição de combate: vamos defender a vila dos macacos, viva o Santo Conselheiro, abaixo essa merda de república dos infernos e dos pecados, viva Nosso Senhor e eu rezei forte para Santa Cecília e vi que o recurso era não enfiar a cabeça fora da cova, eram muitos e bem posicionados e armados os macacos, era a conta de meter a cabeça fora da cova e as balas chicoteavam a cova, de vivo ali estava sobrando eu mais o Taramela que endoidou e disse: vou matar estes macacos na paulada, filhos da puta e se levantou e preparou o corpo para sair da cova, ficar à mostra dos macacos para mostrar seu corpo fechado pela fé no Conselheiro e vou matar vocês no pau seus desgraçados dos infernos... e tombou de costas com o corpo parecendo uma peneira de tantos furos de bala, o corpo jorrando sangue por todos os lados, de dentro de sua alma um ronco grosso, era a alma querendo sair do corpo, buscar ares mais leves que o pesado corpo que ficou ali em cima de mim, me fazendo sentir a quentura do sangue vermelho, e então eu soltei as mãos da espingarda e me aconcheguei quieto embaixo do corpo do Chico Ema que virou um escudo e um grande silêncio foi tomando conta da caatinga: nada se ouvia, nem o pio da coruja, nem o rastejar dos calangos: tudo quieto, quieto.

Logo depois, ouvi o rastejar dos macacos que se aproximavam da cova: me aquietei mais ainda, medo até mesmo de rezar e os safados escuitarem minha reza, fiquei ali quieto com minha fraqueza e o meu medo da morte, do sacrifício da dor da morte, do que antecedia a escuridão porque o depois da morte era um mistério grande demais para minha pouca inteligência entender e um macaco falou com um palavreado musicado diferente do nosso jeito de cantar as palavras e as frases: estão todos mortos, não sobrou nenhum para semente; meta mais um ou dois tiros que é para acabar de matar: pum! pum! pra! pra!

E, a passos lentos, os macacos caminharam em direção a Canudos: uma incendiada vila de Canudos, a torre da igreja ferida pelas pesadas e gordas bolas dos canhões e teve um dia, comigo já velho, quando – embriagado de saudades e memórias – contava essa história vem um neto meu, letrado, escolado, e catou na prateleira um grosso livro e leu: “projetis de toda a espécie, sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zunidos cheios e sonoros de Comblaim, rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões- revólveres, transvoando a todos os pontos... sobre o álveo longo e tortuoso rio e sobre as depressões mais escondidas; resvalando com o estrondo pela tolda de couro da alpendrada do hospital de sangue e despertando os enfermos retransidos de espanto... varando, sem que se explicasse tal abatimento de trajetória, as choupanas de folhagens, a um palmo das redes, de onde pulavam, surpreendidos, combatentes exaustos” e esse meu neto assim que parou de ler aquelas difíceis palavras, me abraçou forte e disse que o livro se chamava Os Sertões e que era um livro que contava toda a história de Canudos...