Canudos vivia – desde as poucas nuvens que vestiam o seu
céu, desde o distante Monte Santo, Canudos em seu tudo, mesmo em suas secas
margens do Vaza Barris onde as mulheres lavam suas roupas e de seus maridos com
seus filhos em volta – peladinhos, enormes barrigas à mostra, nadando meio ao
barro e as espumas do sabão –: toda a vila de Canudos e suas infinitas
imediações e seus povos viviam um grande medo, um medo misturado com violência,
semelhante com o ar que toma conta dos homens e dos animais quando os raios
despencam céu abaixo, junto aos raios intermináveis roncos de trovões que fazem
tremer os chãos e os cabritos e as galinhas, todos – até o grande e verde
juazeiro balança forte, querendo – medroso do temporal - fugir, pousar em calmos
lugares e lá produzir sua sombra e, pois até o juazeiro naquelas horas de
tormenta se dava por ficar invejoso das humanas pernas fugidias e sonha com
suas raízes se transformando em pernas e pés e mãos – tudo a fugir da tempestade,
os grossos pingos estalando no chão, fazendo subir nuvenzinhas de poeiras assustando
a terra seca com a novidade da chuva –; mas o que havia em Canudos? o céu andava
claro, nada de raios, um céu vestido com o claro azul de outubro, não
denunciava chuvas nem raios nem tormentas: a secura imperava, o Vaza Barris mais
parecendo um fiapinho de barrentas águas; mas então o que havia para fazer os assustados
povos se recolher – medrosos – escondidos em suas casas, cerrando as cortinas de
chita nas janelas, as calejadas mãos – nervosas - debulhando as contas dos terços
gritados em voz alta: ave-marias e salve-rainhas, que o Santo Conselheiro tome
conta de nós e nos livre das sujas mãos dos macacos da república, que - deus do
céu - a cada dia, a cada madrugada, mais se aproximam daqui da Santa Vila dos
Canudos, terra de oração e preces, santa virgem rogai por nós.
Chico Ema tinha medo não: medo não era com ele que -
enorme facão e porrete às mãos - se dizia pronto para enfrentar e defender o
Conselheiro e os velhos e as crianças de Canudos: mato tudo quanto é macaco que
aparecer por aqui buscando a desordem, luto com Deus e o santo Conselheiro não
vai permitir a morte de quem briga do seu lado; e foi junto com Chico Ema, mais
o Taramela e o Raimundo, foi essa a turma que Estevo ordenou que eu me juntasse
e fosse ocupar uma cova, cavada meio da caatinga, antes da entrada da Vila,
para de lá – a tiros de espingarda cartucheira – esperar os macacos do governo:
três de nós: eu, mais o Chico Ema e Taramela a atirar nos macacos e Raimundo
mais o Manuel Quadrado para rebobinar os cartuchos e alimentar de chumbo e
pólvora as armas e a gente a defender a entrada da vila; a cova era uma cova
funda, coisa de quase um de metro de fundura e a terra e pedras retiradas para
fazer o buraco foram ajeitadas nas beiradas para proteger nossas cabeças das
balas dos winchesters dos soldados da república que a cada dia se mostravam
mais corajosos e desobedientes às pragas e às rezas e novenas dos moradores da
vila: será que Conselheiro desistiu da luta? Será, deus nos livre e guarde, eu
pensava – que o santo homem tinha entregado os ponteiros tanto é sua magreza por
nunca ter fome de comer, a vida só a rezar e a olhar para o céu buscando milagres,
e naqueles últimos dias inté mesmo o Bentinho – cara de assustado – deixou de
lado as rezas e de suas andanças para saber das novidades e amolou um facão: a
hora é de luta, irmãos! viva Nosso Senhor, viva o Conselheiro.
Chegamos, obedecendo as ordens do Estevo, à tardinha na
cova, e dormimos agachados esperando o avanço dos macacos na madrugada; se
combinou que era proibido conversar alto e de acender cigarro para evitar o
brilho da luz da binga clarear nosso esconderijo e sem a catinga do fumo as
muriçocas infernando nossa vida, achando o menor furo na manga da camisa para
lá meter seu alfinetinho e sugar nosso sangue, e a gente a dar tapas e falar –
baixinho, para ninguém escutar - nomes feios – muriçoca dos infernos vai morder
a puta de sua mãe, bicho desgraçado – acordava quem sonava fraco, era um dormir
acordado, uma estrela caiu e Chico Ema apontou com o dedo a estrela que
apontava um caminho, o caminho da fuga, caiu para os lados do oeste: é pecado
apontar com o dedo a estrela que cai, cria verruga no dedo que aponta e Chico
Ema levantou o corpo forte da cova, carecia de espreguiçar e verter água do
corpo, o Estevo alertou que não era para sair da cova, esperar quieto, os
macacos podiam estar tocaiando a gente por perto, mas, Chico Ema – apertado para
mijar - se apoiou no montinho de pedra da beirada da cova e saltou fora,
espreguiçou jogando os braços para o alto, parecia que rezava, tirou o pinto
para mijar e um raio e um trovão bateu em seu peito e nas suas costas e o home
caiu em cima de nós, na cova, jorrando sangue pelas costas vazadas em um buraco
e pelo peito, a cara empalidecida, enorme buraco e cada um catou sua espingarda
cartucheira e se colocou em posição de combate: vamos defender a vila dos
macacos, viva o Santo Conselheiro, abaixo essa merda de república dos infernos
e dos pecados, viva Nosso Senhor e eu rezei forte para Santa Cecília e vi que o
recurso era não enfiar a cabeça fora da cova, eram muitos e bem posicionados e
armados os macacos, era a conta de meter a cabeça fora da cova e as balas
chicoteavam a cova, de vivo ali estava sobrando eu mais o Taramela que endoidou
e disse: vou matar estes macacos na paulada, filhos da puta e se levantou e
preparou o corpo para sair da cova, ficar à mostra dos macacos para mostrar seu
corpo fechado pela fé no Conselheiro e vou matar vocês no pau seus desgraçados
dos infernos... e tombou de costas com o corpo parecendo uma peneira de tantos
furos de bala, o corpo jorrando sangue por todos os lados, de dentro de sua
alma um ronco grosso, era a alma querendo sair do corpo, buscar ares mais leves
que o pesado corpo que ficou ali em cima de mim, me fazendo sentir a quentura
do sangue vermelho, e então eu soltei as mãos da espingarda e me aconcheguei
quieto embaixo do corpo do Chico Ema que virou um escudo e um grande silêncio foi
tomando conta da caatinga: nada se ouvia, nem o pio da coruja, nem o rastejar
dos calangos: tudo quieto, quieto.
Logo depois, ouvi o rastejar dos macacos que se aproximavam
da cova: me aquietei mais ainda, medo até mesmo de rezar e os safados
escuitarem minha reza, fiquei ali quieto com minha fraqueza e o meu medo da
morte, do sacrifício da dor da morte, do que antecedia a escuridão porque o
depois da morte era um mistério grande demais para minha pouca inteligência
entender e um macaco falou com um palavreado musicado diferente do nosso jeito
de cantar as palavras e as frases: estão todos mortos, não sobrou nenhum para
semente; meta mais um ou dois tiros que é para acabar de matar: pum! pum! pra!
pra!
E, a passos lentos, os macacos caminharam em direção a
Canudos: uma incendiada vila de Canudos, a torre da igreja ferida pelas pesadas
e gordas bolas dos canhões e teve um dia, comigo já velho, quando – embriagado de
saudades e memórias – contava essa história vem um neto meu, letrado, escolado,
e catou na prateleira um grosso livro e leu: “projetis de toda a espécie,
sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zunidos cheios e sonoros de Comblaim,
rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões- revólveres, transvoando a
todos os pontos... sobre o álveo longo e tortuoso rio e sobre as depressões
mais escondidas; resvalando com o estrondo pela tolda de couro da alpendrada do
hospital de sangue e despertando os enfermos retransidos de espanto... varando,
sem que se explicasse tal abatimento de trajetória, as choupanas de folhagens,
a um palmo das redes, de onde pulavam, surpreendidos, combatentes exaustos” e esse
meu neto assim que parou de ler aquelas difíceis palavras, me abraçou forte e
disse que o livro se chamava Os Sertões e que era um livro que contava toda a
história de Canudos...
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