quarta-feira, 29 de julho de 2009

PULA GOIABADA!



Tem um pouco a ver com rodeios, esta historinha que vou contar.
Mas nada a ver com os rodeios de hoje, de peões famosos com curtíssimo tempo para ficar montado nos gordos bois...
Nada disso.
“Se não era assim, como era então?”
Muito mais simples.
De repente, sem muito alarde, chegava na cidade, em um caminhão velho, paus e tábuas e gentes para mais um rodeio. Escolhido o terreno tinha início à montagem do “picadeiro”, como era chamado; na verdade uma pequena arena circular e, à sua volta, os andaimes com as tábuas colocadas em degraus onde as pessoas se acomodavam para os espetáculos que ocorriam , normalmente, no início da noite, exceto aos sábados onde havia os rodeios diurnos.
No caminhão, entre as gentes, além dos operários que montavam o picadeiro e cuidavam de sua manutenção, precária, diga-se de passagem, vinham dois ou três peões que realizavam as montarias. Nos espetáculos, além desses, digamos, peões profissionais, havia os peões locais, domadores de cavalos e de burros da região, convidados a montar as novilhas, garrotes ou os bois e cavalos bravos, também selecionados nas fazendas e sítios da região.
Muitos destes rodeios traziam um animal treinado para saltar. Do rodeio que estou falando veio a besta Ruana. Alta, elegante no porte, com longas pernas que deviam lhe dar os famosos “sete palmos de altura”, da famosa Mula Preta da canção, que não tinha como não ficar assobiando quando se chegava para o espetáculo.
Ruana era menos famosa que sua amiga Mula Preta, mas ninguém parava sobre ela e até música ela já tinha merecido.
“Música, como a da Mula Preta?”
Sim, música mesmo, tocada e cantada nos rádios, mais mesmo nos programas da Rádio Nacional as segunda, quarta e sextas, comandados pelos famosos Torres, Florêncio e Nininho. Da letra toda, direitinho, não me lembro, mas guardo bem na memória que falava e enaltecia a beleza da Ruana e da fama que sobre seu dorso peão nenhum conseguia ficar nem três segundos.
Dito e feito: no primeiro rodeio Chupança, o mais famoso da cidade, montou a besta, segurou forte no “sofrete”, ajeitou e fincou suas pernas fortes meio no peito e sob as longas pernas dianteiras da mula, tirou o chapéu e fez o sinal da cruz e, com a cabeça avisou ao dono da Ruana, dizendo com aquele meneio de cabeça, que estava pronto para enfrentar os saltos da Ruana.
E lá se foi:
- “Pula, Ruana!”, gritou seu dono.
E a bela mula, que até então obediente aguardava a ordem de comando, se transformou imediatamente; seus olhos antes tão doces agora soltando faíscas, e, como um raio de tão rápida saracoteou, deu um salto enorme e ainda no ar, deu um volteio jogando em terra o bravo Chupança.
Caiu o Chupança, depois foi a vez de cair o Santista, veio de Franca o Pernambuco que também caiu...
O único que permanecia sobre o lombo da besta, após a ordem “Pula, Ruana!” era ou o seu dono ou um peão e tratador da Ruana que acompanhava o rodeio. Estes dois sacolejavam e acompanhavam com o corpo retorcido os volteios e os saracoteios da Ruana, se contorciam todo agarrados ao sofrete mais que os três segundos, e se agüentavam até o berro “Pára, Ruana!”, dado em alto tom pelo seu dono, este o único a quem a besta obedecia.
Só depois de ouvir a ordem é que Ruana parava de pular e outra vez se travestir em um calmo e doce animal.
E foi assim que começou o outro o pedaço desta história.
Alguns meses depois da passagem da Ruana pela cidade, um colega de classe, com quem estudava na segunda série do Ginásio, me abordou na hora do intervalo, e entre uma tragada e outra de um cigarro Continental sem filtro:
- “Treinei a Goiabada para saltar igualzinho a Ruana. Não quer ir montar lá em casa no domingo?”
Fui.
O sítio onde morava Dirceu, dono da Goiabada, era próximo ao de meu cunhado e assim, sábado à tarde, após a aula lá fui eu. Domingo bem de manhã fui para o sítio do colega e mal chegando em sua casa, ansiosos, fomos para o pasto buscar a Goiabada.
Nada a ver com a bela Ruana. Goiabada era uma potranca alazã de pelos longos, raquítica, olhar inocente, crina mal feita, pequena, com um peitoril acanhado...
Espiga de milho nas mãos e Goiabada não resiste ao “Vem, Goiabada” do Dirceu.
No curral, agora já com uns cinco ou seis adolescentes, vai ter início o rodeio. Um sofrete de cordas é amarrado na pequena potranca, passando pelas suas pernas da frente, dando uma volta até o início de suas crinas, onde uma pequena argola feita com a mesma corda servia como ponto de apoio para se segurar. Todos queriam ser o primeiro. Sorteio foi a solução. Ganhou o Alcebíades.
Foi o primeiro a cair. Montou, agarrou-se ao sofrete, e, imitando os peões “de verdade”, fez o sinal da cruz e, logo após ter se benzido, fez com a cabeça o sinal que estava pronto.
- “Pula Goiabada”, gritou Dirceu.
A pequena e raquítica Goiabada se transformava na besta Ruana: obedeceu à ordem, tirando todas as forças do fundo de seu corpo frágil, deu um salto alto e longo e antes de por as patas no chão, ainda no ar, realizou o saracoteio fatal.
Pimba: chão.
O próximo foi o Agostinho, já maiorzinho, e que havia treinado montando em bezerros chucros no curral da a fazenda do pai.
O mesmo ritual de montagem e benzimento foi realizado.
- “Pula Goiabada!”
Também, já no primeiro salto, Agostinho foi ao chão.
A grande diferença entre o salto de um animal treinado e de um xucro pode ser resumida na forma. O animal xucro salta sempre para frente, com saltos médios de altura média, mais extensos seguindo determinada direção. E é aí que surge a diferença básica entre permanecer no lombo deste animal e de um treinado em saltar: o inusitado. O animal de rodeio, treinado para isso, realiza um salto menos extenso, porém mais alto, o que lhe dá condições de um saracoteio em pleno ar; este volteio no ar aliado à imprevisibilidade da direção, ao inusitado de novos e diferentes saracoteios é o que subjuga o domador e o derruba.
- “Sim, pensei, é a isso que devo estar atento, na minha vez.” ·Muito seguro montei, agarrei o sofrete, apertei minhas curtas pernas em seu peito, fiz o sinal da cruz e, àquela hora me sentindo o próprio Hopalang Cassid, ou o Durango Kid, sinalizei com a cabeça ao Dirceu que já estava pronto.
- “Pula Goiabada!”
Durou pouco minha fantasia de Durango Kid: ao primeiro salto e meneio, fui ao chão.
- “Impossível este tombo. Que fiz de errado? Vou de novo”.
Outra rodada, chega minha vez e um novo tombo.
E assim foram vários domingos e domingos. A rotina se estabeleceu. De cá eu sempre achando que “agora, desta vez, não caio e agüento” e de lá a teimosa Goiabada me desmentindo e me pondo ao chão antes dos fatais três segundos.
Apenas Dirceu parava sobre a Goiabada.
Se apenas os treinadores param sobre o lombo das Ruanas e das Goiabadas, concluí que a solução seria treinar um animal e, na falta de uma potranca e para me treinar na função de treinador, comecei treinando cachorrinhos a “sentar”, a deitar de costas, a dar as mãos, estas coisas.
Agora, velho e aposentado, passei a treinar jacutingas para virem comer em minhas mãos. Bem menos perigoso, penso.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

MARIA FUMAÇA: LEMBRANÇAS, MEMÓRIAS.



Esta historinha foi escrita para o http://trensdavida.blogspot.com/ , do amigo Tonhão, orgulhoso filho e neto de ferroviários. Seu filho, Ricardo, desenvolveu este “banner" para meu blog. Assim quero, aqui, render aos dois uma pequena homenagem; ao pai, Tonhão, pelo incentivo para eu criar e manter meu blog e ao filho Ricardo pelo bonito “banner” que agora ilustra o Ofício: Contador de Histórias: muito obrigado.


“Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força...”
Sim, era preciso de muita força para alcançar os 1032 metros de altitude, conforme indicava placa de ferro fundido, visivelmente fixada na branca parede da estação de PEDREGULHO. Sim, amigo, é bom repetir: muita força, muita lenha queimada, muita água fervida se transformando na força do vapor, fazendo sair da chaminé negra a nuvem de fumaça branca que se esparramava pelos ares até, logo, ser misturada como uma outra nuvenzinha, e muitas, mas muitas faíscas atiradas ao longo da estrada de ferro, bitola estreita, da Companhia de Estradas de Ferro da Mogiana.
Chegar tão alto exigia força, muita força e é por isso é que a Maria Fumaça chegava bufando, quase parando de cansada na pequena estação. E não era só vencer as alturas, tinha também a longa distância percorrida, pois para chegar á pequena estação de Pedregulho tinha que muito serpentear soltando seus apitos longos e roucos. Sim, coisa de mais de cem quilômetros.
- “Mas como assim?”
Sim senhor, era assim: ela, a Maria Fumaça, saía, diariamente, de Ribeirão Preto, passando pela pequena Brodósqui, depois passava e parava na estação de Batatais, pertinho da igreja com a “via crucis” toda feita com pinturas do Portinari, partia de lá e passava por Restinga, onde minha mãe se casou, para então chegar até a “Franca do Imperador”; ali, na enorme estação, parava para tomar fôlego e aproveitava para apanhar parte dos nossos professores do Ginásio e só depois seguia passando e, também parando, às vezes simplesmente sem ninguém descer ou subir, para nada, mas porque tinha que parar, em Cristais Paulista; daí só mais uma paradinha, onde ninguém podia descer, nem mesmo para necessidades urgentes, pois ali só parava para “beber água” na Chave da Taquara, a uns sete ou oito quilômetros de Pedregulho.
Mas, escuta só, não terminava ali sua viagem, se bem que ela, a Maria Fumaça e eu, certamente, ficaríamos felizes se seu descanso já iniciasse; ela para poder descansar logo e eu para poder tê-la próxima por mais tempo. Mas não era assim: logo partia de Pedregulho, ia embora, passando por Rifaina, já à beira do Rio Grande, passava por Conquista, em Minas Gerais, para chegar, aí,realmente muito cansada, exaurida mesmo, em Sacramento. E era só lá que descansava todo o fim da tarde e a noite, tomando fôlego para o retorno no dia seguinte.
A linha de trem, por onde passava a Maria Fumaça, dividia a cidade de Pedregulho. Havia o “lado de cá da linha” que era maior, onde tinha a igreja, a praça, o campo de futebol, a Santa Casa e o cemitério e o “outro lado da linha”, menor, mas grande o suficiente para formar um time de futebol do “atrás da linha” com quem o nosso time, o “do lado de cá” , jogávamos e, quase sempre, ganhávamos.
Era também na linha de trem que dividia a cidade que ocorriam as brigas, tramadas na hora do recreio no Grupo Escolar ou do Ginásio Estadual, transformando-a em nosso ringue; e era também sobre os trilhos da Mogiana que disputávamos corridas de equilíbrio “sobre os trilhos”: ganhava quem chegasse à frente sem desequilibrar o corpo dos trilhos e não colocasse os pés nos dormentes.
Mas, para precaver a Maria Fumaça dos perigos, penso eu, os trilhos que cortavam a cidade em duas eram protegidos por cercas com seis fios de arame farpado e por uma cerca de ciprestes sempre podados e cuidados pelo pessoal da estrada. Em apenas dois ou três locais, onde a linha atravessava diretamente sobre a rua, sem cerca de arame e sem ciprestes, haviam cancelas que eram fechadas na “hora de passar o trem”; assim, as cancelas fechadas e a sirene ligada impediam que carroças, charretes, cavalos e alguns carros que trafegavam pela da cidade se chocassem com a poderosa Maria Fumaça. Então era assim, protegida de trombadas, que ela passava faceira, soltando fumaça pelas ventas, apitando forte, avisando à cidade que, soberana, havia chegado ou estava indo.
Na plataforma da estação, forrada com limpas e alvas pedras mineiras, eram descarregados os sacos com cerveja e guaraná que vinham de Ribeirão Preto e desembarcavam seus passageiros: alguns desses, esperados por parentes e amigos, ficavam se cumprimentando e se abraçando, matando saudades ali mesmo na plataforma, enquanto outros, como nossos como nossos professores, desciam rapidamente, tirando os guarda-pós que usavam para impedir que a faíscas queimassem seus ternos ou vestidos, e seguiam conversando entre eles até o Ginásio, a uns quatro quarteirões da estação, onde cumpriam a tarefa de nos ensinar.
Mas tem outra coisa que preciso contar... é que nas passagens onde os trilhos atravessavam diretamente sobre a rua havia uma placa com os dizeres: PARE, OLHE, VIVA. Estas placas, e seus dizeres, claro, por um bom tempo me confundiram. O que ocorria é que eu lia e pensava no PARE e no OLHE como formas verbais conjugadas em seu imperativo, enquanto que, não sei porque motivo, lia e pensava o VIVA como uma interjeição expressando felicitação e alegria; aliás, eu chegava a pensar que deveria haver um ponto de exclamação logo após o VIVA. “Assim que der vou perguntar à Dona Tarcila, professora de português se não está faltando o ponto de exclamação” pensava. Mas continuando: toda vez que passava pela placa, olhava e lia com atenção e achava-a louca, meia sem sentido. Explicando melhor, era isso o que se passava dentro de mim: “o PARE, está certo, indica a ação que eu devo parar; o OLHE, também entendo, indica que eu devo olhar antes de atravessar a rua, mas e o VIVA? Será que devo dar pulos de alegria e gritar VIVA! porque o trem não está passando? O VIVA, para mim, tinha o mesmo sentido do HOSANA! de nossas missas. Agora e se fosse para pular e gritar VIVA!, ou mesmo berrar bem alto um HOSANA!, ficava a dúvida de a que horas deveria fazê-lo, se antes ou depois de atravessar a rua. Sei não, há alguma coisa errada nesta placa”, concluía.
Deixando isso para lá! Viagem na Maria Fumaça que mais me lembro? Foi uma que fizemos até Tambaú. Fui com minha mãe e meu pai. Viajamos “de segunda”, em bancos de madeira até a cidade do Padre Donizetti: minha mãe levou frango com farinha, Tia Voca levou requeijão e Dona Alice, nossa vizinha, levou biscoitos de polvilho; no meio do caminho as famílias trocavam as matulas e nós, crianças, ensaiávamos escondidos, pequenos abraços e beijos, nos cantinhos do vagão.
E as paisagens?
Para mim, a mais bela paisagens, a mais esperada era quando o trem voltava de Franca em direção a Pedregulho. Antes de chegar a Cristais Paulista, do alto via-se longe, bem longe, as montanhas de Minas Gerais e um orgulhoso prédio totalmente caiado de branco, isolado de tudo e de todos: era o Mosteiro dos Monges Cistercienses, que hoje em dia está bem menos solitário, já que está cercado por uma pequena comunidade, de nome Claraval. Também não dá também esquecer, nas viagens que fazíamos até Sacramento ou Conquista, quando se passava pela Serra da Rifaina: alta, coberta de aroeiras e ipês amarelos e dela podia-se ver ao fundo o Rio Grande, cristalino, cheio de dourados, bagres, mandis, piaparas e lambaris.
Agora o que não posso deixar mesmo de contar é o que acontecia com a Maria Fumaça na festa de São Pedro, em junho, quando a Igreja Católica organizava uma grande festança. Durante todo o mês de junho, antes da festa do dia 29, orientados por um sanfoneiro da cidade, ensaiávamos a dança da quadrilha, que com o casamento caipira, aconteceria no salão paroquial, antecedendo a reza do “terço” na igreja e a quermesse na praça.
Era uma festa esperada pela cidade.
Em seu dia um caminhão nos levava, os dançarinos da quadrilha, até a Chave da Taquara. Lá tomávamos o trem que realizava aquela parada, como já disse, apenas para abastecer-se de água, mas naquele dia todo especial, nos recebia, fantasiados de caipira, como se não o fôssemos, como passageiros. Lotávamos um vagão para chegarmos, gloriosos, na estação. Ao se aproximar da cidade a Maria Fumaça apitava a todo vapor, o maquinista botava mais água na fornalha para aumentar ainda mais a nuvem de fumaça, e, ao barulho da Maria Fumaça e do seu apito longo, foguetes eram queimados para celebrar a chegada dos noivos e seu séqüito para o esperado casamento e dança da quadrilha...Toda a cidade nos aguardava na plataforma da estação, de onde, ao som da bandinha da cidade e de foguetes e mais foguetes, seguíamos em carroças, todas elas e os pensativos burros que, vagarosamente, as conduziam enfeitadas com papel crepom coloridos, em procissão até o salão paroquial. Era lá que aconteceria o casamento, com o padre usando um balde velho e espigas de milho para jogar água benta para abençoar o povo e os noivos. Logo depois do casamento, e aí para mim era o melhor de tudo, animados pelo som da sanfona do Seu Tião, dançávamos a quadrilha.
Enquanto isso, a Maria Fumaça que não podia ficar para a festa, tinha continuado sua viagem, e àquelas horas, já devia estar descansando em Sacramento.
Era assim.

domingo, 5 de julho de 2009

MUTIRÃO




Sábado, bem de madrugadinha!
Era uns tempos, aqueles, que tínhamos aulas aos sábados e as lidas na roça, também, aconteciam normalmente naquele dia: folga mesmo, das aulas e do pesado trabalho na roça, só aos domingos e dias santos guardados. Eu estava morando na casa de uma irmã para poder estudar e era uma alegria só ir para a casa dos meus pais naquele sábado com mutirão: faltar da escola, ver minha mãe e meus irmãos e por causa do mutirão, pensava, comer muito arroz doce ao meio dia.
Saímos de madrugada, bem cedinho, em dois animais: eu fui na garupa da égua Briosa, levando uma capanga com meu estilingue e uma roupinha nova que era para usar no baile da noite. Briosa era uma égua marchadeira, com a garupa tão gordinha que quase não precisava de colocar forro de tão macia. Meu cunhado ia no Brotinho: este um cavalo tordilho forte, trotador, assustado, de tudo refugava e, por isso, animal perigoso para crianças. Era lindo o Brotinho e me enchi de orgulho e medo quando, certo dia, fui autorizado e o montei para ir, sozinho, até a fazenda dos Polos para trocar milho por fubá.
Era cedo ainda, com o dia acabando de clarear, quando chegamos na casa de meus pais. Na chegada misturou, em mim, uma felicidade grande pelos carinhosos abraços de meus irmãos e de minha mãe, das lambidas do Vinagre – cachorro por demais de querido – com o espanto de ver tanta gente chegando no curral de casa, atrapalhando um pouco os afagos com os quais estava acostumado ser recebido.
Naquela manhã de sábado, dia de mutirão lá em casa, as atenções tinham que ser distribuídas...
Chegavam e chegavam pessoas pela estradinha: vinham a pé, a cavalo, sozinhos, com a família:
- “B’dia seu Juca”
- “B’dia cumpadre... e a comadre, porque não veio? Maria tava contando qüela promodi fazê o arroz doce”?
- “Lerdeza pura cumpadre...vem vindo atrás.”
E logo chegava outro e outro, todos se cumprimentando com sonoros e parcimoniosos “b’dias”; Vinagre latia, nervoso, com tanto movimento: “que será isso? de onde aparece tanta gente?” provavelmente devia estar pensando em sua cabeça de cachorro.
Entrei em casa.
Chegava da mina, onde tinha ido buscar água, um irmão, ano e meio mais velho que eu, o Homero. Rápido abraço e me convida:
- “Vamos na capoeira caçar...tá cheia de juriti por lá.”
Fomos.
No caminho até a capoeira passamos pelo córrego e enchemos a capanguinha com pedras negras e redondas, estas, sem dúvida, as melhores para, de estilingue em punho, acertar no peito as nossas futuras caças: rolinhas, sabiás, juritis, fogo-apagôs...já sanhaço, tisiu, beija-flor, alma de gato, pintassilgos e canarinhos era pecado matar. Só se matava o que se podia comer a carne.
E vem conversa:
- “O Tonho tá namorando a Maria...vi os dois na maior pouca-vergonha ontem atrás do cafezal... pai não sabe, então não conta para ninguém, viu?”, disse Homero.
-“Não conto...você sabe que não sou mixirica enredeira.”
De tudo sabia aquele meu irmão: de brigas, de afetos e desafetos, de intrigas, de namoros e de doenças... Ficava imaginando em como ele conseguia saber de tudo e o invejava; como invejava meu cunhado por conhecer todas as pessoas que encontrávamos. Sempre que íamos a cavalo por qualquer estrada, e quando lá na curva vinha um cavaleiro, ele sempre sabia quem era:
-“ Lá vem o Aníbal, do seu Chico de Barros.”
Não errava: os cavalos se cruzavam, respeitosamente paravam, cada um tirava o seu o chapéu e:
-“Dia Aníbal..como está seu pai, o Seu Chico?”
-“Dia seu Dari... pai tá bom...mandou chamar o senhor ir lá em casa, qualquer hora dessas, jogar truco.”
-“Vou sim; qualquer hora vou. Até mais, hoje estou com pressa, estou indo pro Alto Porã.”
Eu pensava: como sabe o nome de todos, a todos conhecem? Deve ser coisa de adulto e sonhava em ficar adulto logo. Já o Homero não era ainda adulto mas conhecia muito mais gente e sabia de todos os segredos.
Chegamos na capoeirinha. Estilingue em punho, agora era observar os pássaros e torcer para uma pedrada certeira. O tal bando de juritis, percebi, era invenção de meu irmão. Ficamos lá acocorados sob a copa de uma enorme aroeira a espera.
Eu era um excelente atirador de estilingue e bodoque.
Para caçar tínhamos que ficar imóveis, à espera do pouso, e procurar o ângulo que tornasse, por entre tantos galhos, possível a pedrada certeira, de preferência no peito dopássarinho. Enquanto não chegavam por lá as prometidas juritis mais conversa e alguns segredos que me estarreciam:
-“ O Feu vai roubar a Fia, esta noite no baile.”
Percebendo meu susto:
-“Ninguém sabe, só eu; vê então, se fecha esta boca. O pai da Fia, seu Chiquito, é briguento, vive com faca na cintura e você sabe que o Feu não tem medo de homem nenhum... Mas logo depois que ele cantar o Forró do Mané Vito, hoje a noite no baile, ele vai roubar a Fia.”
Feu, na verdade Alfeu, um de nossos irmãos mais velhos.
A chegada e o pouso de uma juriti no alto da aroeira interrompe a conversa. Silêncio absoluto. Paramos a conversa, os olhos fixos no pássaro e com passos pequenos e lentos, sem nenhum barulho, iniciávamos a busca de uma boa posição para disparar. O melhor era com o pássaro “de peito”: o alvo se tornava maior e a morte era certa...Estávamos, ali, quase sem respirar, buscando a melhor posição quando Homero, descalço, pisa em um espinho, desequilibra-se, força o peso do corpo no pé direito e os estalidos dos gravetos pressionados pelo seu pé afugentam a juriti.
Fico bravo:
-“Vocês estão espantando os passarinhos... estão ariscos demais. Já disse que não se atira a toa: só quando tem certeza que vai matar...”
-“Sou eu não...é o Zé do Biba que anda caçando por aqui.”
-“Para caçar passarinho tem que ter paciência. Atirar pedra a toa afugenta e eles ficam ariscos, duros de se ver de perto...”
Era a minha vingança: não sabia dos segredos das pessoas, das fugas, dos namoros e nem, como meu cunhado, conhecia e sabia o nome de todas as pessoas daquela furna enorme, mas na caça de passarinhos eu era o melhor.
Sentado sobre uma pedra , tentando tirar o espinho do calcanhar, mais assunto novo:
-“Já sei onde o Dito e o Luís Ernesto “vai” esconder uma garrafa de pinga para beber na hora do baile; sabe o pé de araticum que tem perto da mina? Pois então: bem debaixo dele.”
A informação, como sempre, seguida da orientação de que ninguém sabia daquilo, só ele, e que eu não deveria contar para ninguém.
A conversa foi, àquela hora, interrompida por um grito de nossa mãe que nos chamava para que fôssemos levar água para o pessoal que trabalhava no mutirão.
Para meu irmão estava preparado um latão de dez litros com água da mina. Para mim uma cabaça menor. E fomos até o cafezal do pé da serra, onde estavam a carpir, os convidados para o mutirão.
Cedo, de manhã, e o sol já ardia de quente naquele fevereiro de muito calor e pouca chuva.
Chegamos para servir água aos trabalhadores.
Em mutirão era assim: cada um pegava uma rua de café para carpir de seu início até o fim; o trabalho era entremeado de muita conversa, disputas, cantorias e piadas sujas, estas eram sempre contadas pela metade para não se falar besteira na frente de meninos pequenos; mas meu irmão sabia das coisas e assim resolvíamos fingindo que íamos mas, na verdade, orientado por ele, ficávamos deliciosamente excitados, ouvindo piadas e “causos” escondidos debaixo de um pé de café: quietos, mudos e sem mesmo poder sorrir aos seus finais jocosos.
No trabalho de carpir, naqueles mutirões, disputas, as mais diversas ocorriam: seu Biba disputava a velocidade de carpir com Arnaldo, apostando que aquele que vencesse, carpindo mais ruas de café até o final do dia, teria a preferência para tirar Sebastiana, filha do Jorge Ferreira, para dançar no baile que ocorreria logo à noite; isso porque, todo bom mutirão, além da comida farta e do arroz doce ao meio diz, tinha que ter baile animado e para isso meu pai havia convidado sanfoneiro afamado, tocadores de triângulo e de zabumba; já Alcindo apostava com Tim quem ficaria mais tempo mergulhado no fundo d´água, no poço da cachoeira, onde iriam tomar banho ao final daquela tarde, se preparando para o baile: o que ganhasse teria a preferência de dançar com Ercília... Assim, as disputas ocorriam e às vezes eram levadas a sério por demais e brigas ocorriam, mesmo, antes do baile e das pingas...
O almoço, lá pelas nove da manhã foram dois caldeirões de comida: um com arroz e galinha e outro com mandioca e carne seca. O pessoal deixou a carpição de café e foi até em casa almoçar. Cada qual se servia, procurava uma pedra em uma sombra para sentar e enquanto comiam conversavam: falavam do baile que teria à noite, das moças mais bonitas, das qualidades do Geraldo Sanfoneiro, que viria tocar, das músicas que pediriam para ele... Nesta hora do almoço, a presença das mulheres que haviam feito a comida impunha respeito e impedia piadas, conversas em voz alta e palavrões. E enquanto os homens almoçavam elas já iniciavam o preparo do arroz doce que seria oferecido lá pelas duas da tarde.
O clima era de festa e o ambiente era de uma alegria só.
De noite o baile!
Melhor impossível. Terreiro de casa limpo e varrido e o toldo armado com panos de colher café: estava pronto o salão de baile. Cadeiras e bancos de madeira colocados à beira do pano para que as moças e as mulheres pudessem sentar: umas aguardando, ansiosas, o pedido de dança, outras conversando, enquanto outras amamentavam seus filhos como os seios e a cabecinha do bebê protegidas por xales de crochê ou panos de chita. Os bancos e cadeiras eram também reservados aos mais velhos que proseavam, fumavam cigarros de palha, bebiam quentão e cochilavam quando o sono apertava.
Nós, as crianças, nos divertíamos dando soco nas costas das moças por trás dos panos de colher café que formava o toldo: nos deliciávamos com o susto que levavam e com os gritinhos que soltavam. Socávamos e fugíamos para o mato.
O sanfoneiro dá início ao baile.
Toca, acompanhado pela zabumba e pelo triângulo, Saudades de Matão. Os rapazes procuram, primeiro com o olhar as, moças e as tiram para dançar. E lá vão leves, ritmados, passos combinados rodopiando pelo terreiro de dança, sempre sob os olhares reguladores dos pais das moças.
Para os mais corajosos, escapar de tamanha vigilância, o recurso era fugir dançando mais para o meio do salão terreiro, e só ali, criar coragem para uma conversa mais ao pé do ouvido, um aconchegar mais os corpos, que voltavam à se distanciar assim que a música e o bom senso, a contragosto dos pares, definia como hora de voltar a dançar dando voltas pelas beiradas do terreiro.
Em uma certa hora, Alfeu, meu irmão, é convidado para cantar o Forró do Mané Vito. Muito bonito, moreno dentro de um terno de linho branco, não se faz de rogado, sobe em um caixote e afinado, com o corpo obedecendo ao ritmo da sanfona, inicia sua cantoria:
“Seu delegado, digo a vossa senhoria,
Que eu sou filho de uma família,
Que não gosta de brigá.
Mas trás antonti,
No forro do Mané Vito,
Tive que fazê bonito,
A razão vou lhe explicá...”
Homero me chama de lado:
- “ Não sei se você viu mas a Fia já saiu do terreiro de baile; daqui a pouco, você vai ver: sai o Feu. Vão fugir. Rincão, o cavalo do Feu, já está arriado e amarrado no pé de ipê, na beira da porteira.”
-“Será mesmo?”, digo eu e me ponho a observar.
Um advinho o meu irmão: obedecendo ao que me informou, vejo o Alfeu sair do terreiro de dança, entrar em casa à busca de quentão na cozinha e assoviando alto o Forró do Mané Vito, atravessar o quintal, rumo ao pé do ipê.
Uma ou duas horas depois as ausências são percebidas: sorrisos maliciosos, olhares furtivos, perguntas e insinuações enchem o toldo.
- “Cadê o Feu?”
- “Cadê a Fia. Onde foi parar a moça?”
Pai confabula com minha mãe: “Feu fez besteira, sei não. Isso vai dar encrenca.”
Seu Chiquito e dona Terezinha, pais da Fia, vão para casa, na esperança de que a filha esteja por lá. Moravam em uma casinha depois do córrrego, na direção oposta ao pé de ipê, à beira da porteira onde Rincão estava amarrado, esperando o casal de fugitivos...
O baile continuou até de madrugada!
No sábado seguinte outro baile: festa de casamento do Feu com a Fia.
Pude, outra vez, a faltar da escola, caçar juritis e, à noite no baile, dar socos nas costas das moças por trás dos panos de café que formavam o toldo de baile.
E mais uma vez Feu subiu ao caixote e, acompanhado da sanfona do Geraldo Sanfoneiro, cantou o Forró do Mané Vito.
Mairiporã, junho 2007.