sábado, 30 de novembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–X–TEATRO MUNICIPAL!

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Foi em uma tarde que tio Olímpio, o que mais sabia contar histórias - me lembro como se fosse hoje - o sol se pondo, já quase todo escondido, e pelo vão da porta da sala dava para se ver, bem lá no fundão, o Morro do Chapéu parecendo um santo da igreja, um morro vestido com uma aura de vermelhidão, eu sentado sobre seu joelho direito, olhos fixos em seus olhos cinza, brilhantes, e ele me disse: Landim – pois então, já fui Landim um dia, tenho que contar isso para meus netos - o difícil de contar histórias é que as coisas acontecem em um montão de lugares, com um montão de gentes e de sentimentos, tudo ao mesmo tempo, e a gente só dá conta de falar uma coisa por vez, e aí destrincha a história, os acontecimentos, tudo dividido como logo você vai aprender, quando for para a escola, a difícil conta de dividir, pois a de somar e de multiplicar são mais fáceis, as continhas mais difíceis são, primeiro, a de dividir e depois a de diminuir...

Pois era o que acontecia no Teatro Municipal: um montão de coisas acontecendo ao mesmo tempo: músicos entrando no fosso da orquestra para o ensaio, Didinha e Natalino no subsolo, na sala onde ficavam os figurinos e cenários dos cantores de ópera, e Moacir com Cidona, nas frisas, para ela conhecer o lugar de onde, no sábado, assistiriam Cavalaria Rusticana, regida pelo italiano Túlio Serafin, que conhecia Natalino dos tempos em que o figurinista morava em Milão e trabalhava no Scala...E, em todo o ar, em todos os espaços do Municipal o som dos instrumentos sendo afinados, no palco os músicos conversando entre si: não te disse que o meu Corinthians seria o campeão do Centenário, falava alto, em bom tom, todo orgulhoso o trompetista; ganhou roubado, contrapunha Geraldo, oboísta dos bons e nisso chega o spalla e o silêncio se faz e se ouve, claramente, o Lá no oboé e todos os instrumentos correndo atrás dos 442 Hz...

No subsolo, sala dos figurinos e cenários , Natalino e Didinha sozinhos, cercados de vestidos bordados, roupas de camponeses, chapéus, batinas, perucas, e os olhos de Natalino fixos em Didinha – amo esta mulher, será minha – e Didinha sentindo ondas percorrer seu corpo redondo, seios fartos, quadris largos – camponesa – e Natalino tomou suas mãos, segurando-as entre as suas e ela feliz com as mãos macias de Natalino, sem calos de puxar enxada e machado, era outro o tipo de labuta exercia Natalino, magro, olhos azuis, cabelos cacheados, loiro, dentes brancos, rosto quadrado, e os olhares foram se descobrindo, se vendo por dentro e Didinha resolveu deixar-se levar por aquela onda que foi formando uma névoa que escondia seus desejos do olhar dos anjos e do espírito santo e Natalino aproximou seu corpo, pediu – ou ordenou, não se sabe o que foi – um beijo e os quatro olhos se fecharam, as duas bocas se uniram e Didinha – protegida pela névoa que impedia que o seu anjo da guarda enxergasse seu pecado, cerrou ainda mais os olhos e sentiu-se abraçada, forte e docemente abraçada e lembrou do medo que todos na vila tinham do abraço do tamanduá, forte, as garras nas costas, onde sentia as sedosas mãos de Natalino, e se viu protegida como no peito de um tamanduá bandeira, a língua de Natalino buscando formigas em sua boca e os corpos se apertando, ajeitando aqui e ali para maior conforto e melhores contatos, as mãos de Natalino – delicadamente nervosas - percorrendo suas costas, tudo alisando e suas mãos quiseram tatear os loiros cabelos ondulados ...dois corpos num só, a névoa protetora densa, deus do céu que é isso, meu amor. A porta da sala se abre e deixa entrar uma claridade, desfaz-se a névoa, interrompe o idílio, entra Maurício que fala em voz baixa: Natalino o maestro está chamando; porca la miséria, maestro de merda e Didinha sentiu-se livre do abraço de tamanduá, abriu os olhos, mas ainda cega, tudo escuro, e Didinha, obediente, sentiu-se guiada pelas mãos de Natalino até Moacir e Cidona.

Moacir e Cidona, acomodados em duas aveludadas cadeiras da frisa, a orquestra embaixo, os músicos afinando seus instrumentos, o spalla dá-se por satisfeito com a afinação senta-se e todos ficam a espera do maestro; Moacir toma as mãos de Cidona entre as suas, o contraste da enorme mão branca com a pequena e delicada mão negra, e os dois se olham, Moacir vai apresentando a Cidona os instrumentos da orquestra: olha o fagote - a tuba e o trompete estes ela já conhecia, já tinha visto na banda da vila, que tocava no coreto onde iriam cantar Norma - o baixo, as violas e os violinos, a suave clarineta, tudo tão lindo e entra o maestro, roupas coloridas, alegre, enérgico, batuta á mão direita, cumprimenta os músicos e os músicos, obedientes, atentos, iniciam o prólogo da Cavalaria e o coração de Cidona se enche de estranha emoção, ameaça subir goela acima, Moacir sente suas mãos trêmulas, lança um doce olhar procurando acalmá-la, tanta emoção, e foi a vez então do seu coração subir garganta acima, taquicardias amorosas, ele viu o sangue subir pescoço acima, avermelhar o rosto branco e dos olhos de Cidona – uma princesa negra – vertem lágrimas grossas, Moacir se apressa em pegar o lenço e o maestro pede que a partir daquele momento todos deveriam sair do teatro, teria que conversar com os músicos e Maurício, gerente da orquestra, abre a porta das frisas e saem: Cidona protegida pelas de mãos de Moacir dá a mão a Didinha até a saída, e lá fora do teatro, na rua, o sol ofusca as vistas, apaga-se os sons dos instrumentos e se ouve o roncar do motor de um carro que buzina pedindo passagem ao bonde, lerdo, que recolhe passageiros.

Caminham, os três, por uns cem metros até o carro; Moacir, cordial abre as portas e ajuda as mulheres a se acomodar e pega a manivela para dar partida: gira forte a manivela, ouve-se o tom, tom, rom, rom do motor ir se firmando até tornar-se um brrrrrrr contínuo que acorda as duas passageiras que se olham e pensam, que logo, logo poderiam, no quarto, contar uma para a outra o acontecido e provar, ter certeza, que não tinham sonhado, que tudo havia mesmo ocorrido: felicidade por demais de grande e o Ford 29 parte macio...

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–IX–CIDONA E DIDINA EM SÃO PAULO!

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A noite chegou!

E era apreciada do alpendre da casa dos pais de Moacir! Todos confortavelmente sentados em poltronas de vime, formando uma roda e no meio da roda uma pequena mesa com licor de jabuticaba e um bule de café fumegante; uma brisa úmida balançava as folhas do buriti - folhas enormes, parecendo leques de abanar o rosto – que ressoavam nervosas, pedindo descanso, queriam dormir...Dona Amélia - com seus profundos olhos azuis e sedosos cabelos brancos - convidou Cidona e Didinha para entrar: vamos deixar os homens aqui fora, e ágil, silenciosa, foi mostrando o quarto onde cada uma dormiria: estes dois aqui são os melhores, pertos do banheiro, eu sei das necessidades noturnas das mulheres e é só atravessar a sala, vou deixar a luz no banheiro acesa; nos quartos Cidona se encantava com a “pera” na cabeceira da cama, podia apagar e acender a luz sem se levantar, coisa boa de conforto, pensava e Didinha ria baixinho ao ver os lençóis brancos, alvos e o colchão macio, imaginou seu corpo afundado ali, quentinho, queria dormir.

Na rua não mais barulho de carro, a brisa havia acalmado as folhas do buriti e só se ouvia - aqui e ali - o cri! cri! de um grilo, pensava que aqui em São Paulo não tinha grilo, que era coisa da roça, pensou Cidona e também deve ter pensado Didinha, as duas em quartos separados, gêmeos, vontade de ficar conversando só as duas, sem ninguém por perto, falar das novidades, mas sabiam que não era hora para isso, outras horas teriam para falar e desfalar de tantas novidades de São Paulo, as pessoas já recolhidas ao silêncio dos quartos, qualquer barulho incomodaria, e se der vontade de ir ao banheiro? tem que atravessar toda a sala, será que os pés não vão fazer ranger - crec crec - as tábuas do assoalho? se carecer de ir ao banheiro mijar vou descalça, abro a porta bem devagar para não fazer barulho...

Às dez horas, São Paulo, silenciosamente dormia.

Dia seguinte de muitas novidades!

As duas -- cada uma em seu quarto - prontas, vestidas, penteadas aguardando um barulho qualquer na sala anunciando que os hospedeiros estavam acordados, coisa mais feia e deseducada é acordar e chegar à mesa antes dos anfitriões, o estômago de Didinha roncava de fome, Cidona refletia o rosto negro no espelho e se achava bonita: dona Amélia estava sendo tão gentil, pensava, nem parece tão rica. E foi então que pisadas no assoalho quebraram o silêncio, rangidos no assoalho e os passos decididos estancam frente à mesa posta para o café da manhã: era o Moacir, banhado, perfumado, brilhantina segurando os cabelos loiros, terno de linho branco, gravata azul, alegre, o perfume do café e do pão de queijo misturando com o perfume que exalava de seu corpo banhado, limpo e ele se vê cheio de felicidade e canta:

“Bebamos nos alegres cálices

em que a beleza floresce,

e a fugitiva hora

embriagar-se-á com volúpia.

Bebamos com o doce frêmito

que o amor provoca,

pois que esses olhos ao coração

diretos vão”

E nem bem termina de cantarolar a ária de Alfredo Germont, em La Traviata, se põe a gritar: acordem, acordem todos: é uma ordem do faminto Alfredo! Obedientes dos quartos saem as duas - Didinha e Cidona – e do corredor se houve os passos firmes de Dona Amélia e seu marido e a sala se inundou com uma sinfonia de bons dias: Bom dia! Muito bom dia! Dormiu bem? Que o dia seja belo! Sim, será! Bom dia, um belo dia...

A mesa da sala coberta por uma toalha branca de linho, o café da manha servido por duas empregadas com roupas especiais e turbantes na cabeça, sorridentes, café com leite, pão de queijo e, estranho para Cidona e Didinha, frutas: laranjas, melancia e abacaxi, será que não vai fazer mal chupar fruta tão logo cedo, mas comeram por receio de fazer feio; Moacir falava e falava – eufórico – contou dos planos do dia: ainda naquela manha iriam ao Teatro Municipal recolher os ingressos para a ópera que iriam assistir e lá também se encontrariam com Natalino, cenógrafo e figurinista italiano, que havia deixado Milão para trabalhar em São Paulo; explicou: era ele – Natalino – o responsável por criar, desenhar os cenários e as roupas das cantoras e cantores para as encenações e Didinha estranhou: homem costureiro?

Na mesa Moacir sentou-se ao lado de Cidona e, vez ou outra, sob a toalha de linho branco, segurava sua mão, alisava, acariciava e Cidona , por ser negra não conseguia corar o rosto de vermelho, mas tinha os olhos aflitos, seu pai havia recomendado: nada de intimidades na casa dos outros, minha filha! e ela até querendo acatar a recomendação do pai e soltar a sua mão negra e fina da branca e grande mão de Moacir, mas estava tão bom e esperava – mãos unidas - um tempinho a mais só, e assim continuava a sentir o afeto que aquela grande branca mão lhe passava e as ondas que dela vinham e inundavam seu corpo; Dona Amélia cuidadosa: mais café? obrigado, para mim basta! respondeu Didinha, achando que “para mim basta” fosse a mais elegante das respostas; pão de queijo cheiroso, crocante, o miolo derretendo, fazendo ligas - como puxa - com o queijo misturado com polvilho.

Logo depois foram, no Ford de Moacir, para o Municipal e lá cada uma se encantava com as diferentes belezas do Teatro: os dourados nas frisas – será que é ouro mesmo, de verdade? cochichou Didinha; e Cidona colocou a mão frente à boca para responder baixinho: deve ser, viu só que todas as cadeiras são cobertas de veludo vermelho, coisa mesmo de rico, quanta beleza; aquela imensidão de novidades deixando-as estáticas, mudas, os olhos não acreditando no que via, doces taquicardias acelerando os corações: o sem fim de tanta beleza, as escadas em curva, de mármore, e Moacir – papel de guia - entusiasmado, cumprimentava de longe um com as mãos, dizia muito bom dia para outro e abraçou uma loira cantora e apresenta Cidona: essa é minha namorada, que quase desmaia, assustada com o “minha namorada”, deus do céu em que mundo eu estou a viver.

Para ir ao subsolo ver as roupas e encontrar Natalino desceram uma escada escura, passaram por uma porta até encontrar uma sala ampla, um pouco escura, cheirando falta de claridade, um pouco de mofo: como fantasmas a repleta de corredores com vestidos coloridos armados em cabides de madeira, roupas masculinas, perucas brancas com cabelos cacheados outras negras com longas tranças, prateleiras com espadas, corpetes, saias das mais diferentes cores, enfeitadas com belas pedras e Didinha se entusiasmando com a beleza dos bordados, com o capricho na confecção, com as cores – melhor e mais alegre bordar estas roupas coloridas – passeava pelos corredores, entre tantas roupas, querendo sentir se o perfume dos cantores e cantoras permanecia nas roupas e Cidona se vendo vestida com um vestido lindo, vermelho, bordado com linhas prateadas, formando flores...

Natalino, o italiano responsável pela criação de todas aquelas roupas, entrou mas o entusiasmo das duas e o encantamento de Moacir impediu que os mesmos percebessem sua presença silenciosa: vou tossir baixinho para não assustá-los...Não, melhor não, resolveu que o melhor era aproveitar o mágico momento - sua presença desapercebida – e fica a olhar os três, e quando seus olhos pousaram em Didinha assustou-se com tanta beleza e pensou esta mulher tem que ser minha, eu a quero e o amigo Moacir, que conheceu em Milão e ele considerava um dos responsáveis para sua vinda para o Brasil teria que perdoá-lo, pois ele lutaria com todas as suas forças para ter aquela mulher: lembra a Sofia Loren em sua beleza meio selvagem, seios grandes, ancas generosas, os olhos menores, mais oblíquos, lindos, pernas fortes sustentando longas e redondas coxas, deus do céu, que mulher; sempre sonhava com a beleza de Sofia Loren, achava a Gina Lolobrígida e sua cinturinha de pilão linda, maravilhosa, mas não despertava nele o afogueamento que sentia agora ao ver Didinha que lhe lembrava Sofia Loren. Didinha, talvez tocada pelas elétricas ondas que os olhos de Natalino emitiam, foi a primeira a perceber sua presença do italiano e o viu como um homem baixo, magro, loiros cabelos ondulados, o pequeno bigode enfeitando o rosto quadrado, um rosto claro com minúsculas veias azuis bordando as bochechas vermelhas, olhos verdes, mãos pequenas, braços e pernas curtas, o longo tronco magro, costelas à mostra mesmo debaixo da camisa de algodão: bom dia, sou o Natalino; e todos acordaram do encantamento em que estavam a viver e Moacir tomou as iniciativas: amigo Natalino, como vai o meu bom italiano? Essa é Cidona, minha namorada e aqui sua amiga Didinha, que bordará as nossas roupas para a apresentação de Norma no coreto da cidade e Natalino ao saber que Didinha não era a amada de seu amigo Moacir sorriu forte, gargalhou e ficou a misturar bons dias com bondiornos, os seus olhos verdes, teimosos, não via vestidos, se esqueceu do amigo Moacir e de sua negra namorada – ainda bem, seria muito ruim perder sua amizade, mas que fazer: amigos amigos, amor à parte, esta mulher será minha...