quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

HISTÓRIAS DO BEATO GASTÃO: OUTRA HISTÓRIA

2009 Caminho da fé 009

Acordei com o clarão que, junto ao assustador estampido de trovão, invadiu a barraca. Tenho medo de raios e trovão. Para fugir do medo forcei a mente a pensar na conversa que havia tido com o Beato Gastão: havia sido um sonho? Será que ocorreu mesmo? Se foi sonho até que foi bom, não foi ruim. O último sonho ruim que tive foi um sonho no qual sonhei que havia sonhado. Explicando melhor: sonhei que uma pessoa muito amada havia morrido, deixando minha alma angustiada, em frangalhos. Ainda no sonho acordei, aliviado, na cantina do escritório onde trabalhava e comentei com o pessoal: “puxa vida, tive um sonho horrível esta noite: sonhei que meu pai morreu? Que coisa mais triste!” O pessoal do escritório estava em roda tomando café, fumando cigarros, fazendo hora para iniciar o trabalho. Um deles, famoso por não ter papas na língua me disse: “Você não sonhou não, ele morreu mesmo.”, e minha alma retornou ao estado de agonia. Aí acordei de verdade e acordar depois de um sonho ruim é a felicidade tão buscada e da qual muitas vezes temos dúvida se existe ou não, se é sonho ou se é o impossível.

Senti que a chuva ia se amainando e a Bivac havia dado conta do recado: continuava seca, sequinha, por dentro, a brava barraca.

Voltei a dormir.

Acordei outra vez com a voz de tenor do Beato Gastão:

- “T’acordado peregrino? Assustado, como eu, com o trovão? Cruz credo, São Jerônimo, Santa Bárbara a Virgem, Deus me livre e guarde!”.

Acompanhei o Beato Gastão em seu pedido a Santa Bárbara e fiz o sinal da cruz três vezes.

- “Sim, acordado, Beato Gastão. Quer conversar?”.

- “Vamos, sim. Gostei muito de palestrar com você. Posso entrar”?

- “Claro. Há espaço bastante na barraca, a casa é sua.”, respondi e ao mesmo tempo abri bem os olhos, conectei meus ouvidos e parei de respirar para perceber a mínima mudança que viesse a ocorrer dentro da pequena Bivac. Os pingos da chuva se tornaram tão diminutos que quase não dava para ouvi-los e os raios e os trovões, felizmente, tinham ido embora de vez. Sem a luminosidade intermitente dos raios a escuridão era plena: a barraca era um breu puro.

Continuei com todo o corpo atento até ouvir:

- “Quer mesmo escutar? Sabe que em meu estado acabei de vez com a pressa de contar as coisas passadas. Esqueço da vida quando falo, canto e rezo.”

- “Não tenha pressa Beato. Gosto de ouvir. Me conte de você e também quero que, quando tiver vontade, cante.”, respondi, o que era bem verdade.

- “Pois então: o Beato que me ordenou e me deu esta túnica marrom, este cinto de corda e este santo crucifixo que carrego em meu peito, com quem trabalhei por anos e anos, me disse que era chegada a hora de nossa despedida. Tinha uma missão para mim: era para eu seguir caminho até uma pequena vila, depois das veredas do Jequitinhonha, pois lá careciam de meus serviços. E eu obediente, fui: foram dias e dias, caminhando, até chegar a Venda Nova.

E o que é que acontecia em Venda Nova? Quer saber? Pois então, já te conto.

É que lá em Venda Nova as pessoas se reuniram, construíram uma igrejinha e perto do pequeno amontoado de casas, em uma Curimatá, passaram a criar vacas e cabras, a plantar aipim, abóbora e melancia. Todo mundo ajudava todo mundo: mulheres, homens, velhos, e mesmo crianças se ajuntavam em mutirões para fazer fartura: se dinheiro não corria, fome também não havia; para todos tinha leite, queijo qualho, abóboras, milho, feijão, maxixe, cajus, melancias, quiabo.
E foi aquele ordeiro povo de Venda Nova que resolveu me chamar, que era para eu ajudá-los nas rezas, nas orações e na organização das procissões até a cruz, no alto do morro, para clamar por chuva. Foi para isso que me chamaram; eu fui, e este passou a ser meu ofício em Venda Nova.

Resolveram, também, naqueles mesmos tempos, chamar Dasdores para ensinar a ler e a escrever a todo cristão de Venda Nova, fosse pequeno ou grande. De verdade, mesmo, os pequenos eram obrigados a ir aprender, de manhã, na salinha perto da igreja. Já os grandes iam se queriam, à noite, na mesma sala. E foi aí que acabei de aprender a ler.

Dasdores era uma morena sacudida de forte: cabelos pichainhos sempre envoltos por lenços coloridos, dentes brancos e limpos de cáries, ombros largos, braços delicadamente fortes, seios rijos e fartos, pernas curtas e grossas. O sorriso permanente, a voz clara, doce e a delicadeza com que ouvia a todos fez de Dasdores a princesa de Venda Nova. Todos a respeitavam: suas palavras e conselhos eram ouvidos e, obedientemente, seguidos.

Em um final de tarde de domingo estávamos reunidos frente a igreja para orar e agradecer a Santa Bárbara as grossas chuvas que haviam caído banhando as plantações e averdejando os pastos. Puxei um terço e todos me acompanharam na reza e depois pediram para eu cantar.

Então eu abri a Missão Abreviada e cantei:

“Lança a foice afiada e vindima os cachos da vinha da terra, porque maduras estão suas uvas.O anjo lançou sua foice à terra e vindimou a vinha da terra, e atirou os cachos no grande lagar da ira de Deus. O lagar foi pisado fora da cidade, e do lagar saiu sangue que atingiu até o nível dos freios dos cavalos pelo espaço de mil e seiscentos estádios.” Apocalipse, 14.

Depois do canto as pessoas foram cada qual procurando o caminho de casa. Dasdores me acompanhou até perto do quartinho onde eu morava, e ao se despedir e dar boa noite confabulou comigo em voz baixa:

- “O seu Deus está sempre tão bravo. O meu não: carinhoso, amoroso.”, e, confesso que aquelas suas palavras me deixaram atordoado, marcado. Fui deitar sentindo-me zonzo, parecia embriagado, a cabeça girava, os pensamentos não seguiam a ordem que eu queria, desobedeciam-me; a doce voz de Dasdores “o seu Deus está sempre tão bravo. O meu não: carinhoso, amoroso” repetia dentro de mim, e por mais que eu mudasse de assunto comigo mesmo, teimava em voltar, me deixando encabulado.

Dias depois, fiquei bastante em doente.

O defeito que tinha na coluna, de nascença, e me obrigava a andar igual a um orangotango se agravou e minhas costas e braços doíam sobremaneira. Juntou a isso uma gripe e forte febre causada pela garganta inflamada. Dasdores cuidou de mim. Matou umas sete daquelas vespas feiticeiras, que não têm asas, e fez chá para eu tomar. “Santo remédio para a garganta: beba e amanhã a garganta já estará boa para cantar de novo”, disse enquanto me passava a caneca com o, para mim, estranho chá.

De manhã apareceu em meu quartinho com uma travessa de comida coberta com um pano de prato todo bordado: pedaços de melancia, favos de jaca mole, queijo, leite de cabra, aipim e uma caneca de café margoso. Vinha tudo bem ajeitadinho no prato de louça que até parecia uma flor de tantas cores. “Coma. Está muito fraco Beato Gastão; onde já se viu: dá quase para se ver suas costelas debaixo da túnica. Tem que viver homem, Deus gosta de filhos fortes. Estou indo para a escola e volto com a merenda. Até mais Beato Gastão”.

Fiquei só com prato colorido de comidas em minha frente e foi aí que percebi, ou me dei conta, de que eu só comia para viver: havia, há tempos, perdido o paladar, o prazer de diferenciar um prato do outro, de apreciar o doce sabor de um umbu, de brincar de furar e chupar o pó seco e amarelo do jatobá, de colher no pé e, sob a sombra, deliciar-me vagarosamente com o bacu pari madurinho. Nem mesmo a gabiroba, antes tão querida, o veludo, a mangaba eram, agora, fontes de prazer. O que havia comigo?

Uma semana se passou com Dasdores cuidando de mim e eu sentia que me recuperava. Uma manhã, na hora do almoço, Dasdores me trouxe uma marmita com cortado de palma e carne de sol. Cuidou para que a carne marronzinha envolvesse o verde ferrugem do cortado de palma. “Pros olhos e pra a barriga Beato Gastão: sirva-se.”

E eu, gulosamente, saboreei, sob o olhar feliz de Dasdores, toda a marmita.

Nem bem terminei de comer, ainda me deliciava ainda com o sabor forte da carne de sol com o cortado de palma, Dasdores falou:

- “ Hoje sou eu que quero cantar, posso?”

- “Sim, Dasdores, nunca te ouvi cantar. Cante.”

Então Dasdores, pegou sua Bíblia, procurou, procurou e cantou:

- “ Ah! Beija-me com os beijos de tua boca!

Porque seus amores são mais deliciosos que o vinho,

e suave é a fragrância de teus perfumes;

o teu nome é como um perfume derramado: por isso, amam-te as jovens.” Cântico dos Cânticos, 2,3.

Fiquei mudo: tinha vergonha de ter ouvido o que ouvi, e imaginei mesmo que Dasdores estava inventando, e não lendo tudo aquilo: "sem-vergonhice pura, falta de respeito com um beato". Mas ao mesmo tempo não deixava de estar inebriado com a beleza de sua voz, com seu sorriso simples e afável, com seu perfume de mulher. Aflito perguntei, encarando-a nos olhos:

- “De onde você tirou estes versos, Dasdores? Que versos são estes? Em minha Missão não tem isso, estou certo. Sua Bíblia não é do Demônio? Me diga Dasdores.”

- “Não Beato. São versos do Cântico dos Cânticos e minha Bíblia é tão de Deus quanto a sua Missão Abreviada. Só que a minha é completa e contempla as falas de um Deus bondoso, amante de seus filhos, caridoso e respeitoso! Gosto mais deste Deus, mais humano, mais parecido com a gente aqui da terra!”, respondeu séria, Dasdores.

- “Não sei o que pensar, mas quero ficar só.”, e Dasdores, atendendo ao meu pedido, recolheu a marmita, ofereceu-me água e se foi.

Fiquei só, com minha timidez, em meu quartinho: a solidão é, para os tímidos, não só a libertação, mas a proteção e o conforto necessários e suficientes para lidar com a vida.

Hora do jantar volta Dasdores: trouxe um prato de mungunzá. E foi ela que puxou assunto:

- “Beato: se Deus não quisesse o amor entre os homens e as mulheres teria criado o mundo de um jeito em que a gente germinaria igual às plantas, com o vento ou os pássaros esparramando as sementes. O amor, irmão, é obra de Deus.”.

- “Estou confuso Dasdores. Tenho, e você sabe muito bem, procurado levar uma vida de orações e castidade, mas me sinto, por dentro, como uma ossada de vaca morta pela seca em plena caatinga. Já viu a secura de uma ossada meio a areia e ao sol quente? Pois se já viu, como afirma com seus olhos, é assim que me sinto por dentro. Seco! Esturricado”.

- “Olhe mais a vida, as plantas, os bichos e menos sua Missão Abreviada irmão. A vida é curta e, mesmo acreditando em uma vida futura, não podemos sacrificar a vida presente. É o que penso. E penso também que você deveria tomar amanhã cedo um banho: seu corpo fede, você tem carrapatos sugando seu sangue: além de sujos trazem doenças e te enfraquecem. Banhe-se no córrego: suas rezas trouxeram chuvas e o córrego está cheio de águas limpas e frias.”

Ficamos mudos depois desta fala.

- “Vou cantar irmão, e este canto será o meu Boa Noite e o meu durma com Deus:

“A passagem de uma sombra: eis a nossa vida,

e nenhum reinício é possível uma vez chegado o fim...

Vinde, portanto! Aproveitemos-nos das boas coisas que existem!

Vivamente gozemos das criaturas durante nossa juventude!

Inebriemos-nos de vinhos preciosos e de perfumes, e não deixemos passar a flor da primavera!”Sabedoria, 2:5 e 2:6

Fiquei só!

Manhã seguinte, logo cedinho, antes mesmo do sol nascer, fui para o córrego me banhar. Levei comigo sabão de pedra e bucha.

Estava ainda escuro quanto tirei a túnica e, nu, entrei devagar no córrego. Os pés foram os primeiros a sentir o frio da água. Continuei córrego adentro até as águas tocarem o meu ventre. Afundei, então, todo o corpo n’água, prendi a respiração e fiquei ali, submerso, quieto, me deliciando com a água que envolvia meu corpo em maternal abraço.

Voltei para margem em busca do sabão e da bucha. O dia clareava. Passei sabão por todo o corpo: desde a cabeça até os pés uma espuma branca cobria o corpo e então passei vigorosamente a bucha retirando a espuma, verificando cada parte do corpo, examinando se tinha carrapato ou não, massageando-me com a bucha, retirando com os dedos e unhas os carrapatos redulegos que encontrava em meu corpo. Havia vários e o local de onde eu os retirava sangrava e coçava. E fui me lavando, lavando. Voltei ao meio do córrego, mergulhei todo o corpo n’água e as espumas sumiram correnteza abaixo. Voltei para a margem e, novamente, me ensaboei, me esfreguei com a bucha e retirei um ou outro carrapato que havia ficado.

Resolvi lavar a túnica antes de colocá-la em meu corpo, agora tão limpo. Lavada dependurei-a para secar no galho de um umbuzeiro. O dia agora estava claro com o sol saindo forte por detrás do morro da cruz.

E eu nu, banhado, iluminado pela claridade me examinava, me sentia, me tocava, me conhecia e minhas mãos ousaram tocar partes antes nunca tocadas. Tive a clareza de que todas aquelas partes eram minhas, do meu corpo e que deviam ser respeitadas, limpas, tocadas, amadas.

Voltei para a vila com a túnica molhada. Passei por um pé de maçaranduba recolhi duas frutinhas, descasquei-as com as unhas e perfumei-me com o seu o óleo no peito e na face.

Cheguei em meu quartinho e encontrei na porta a travessa coberta com o pano de prato bordado. Dentro havia favas de jaca mole, dois cajus, queijo qualho, uma caneca com leite de cabra e uma com café forte, margoso. Mais que fome senti vontade de deliciar-me com os sabores, com as cores, com o frio e com o quente daquelas comidas, tão delicadamente ordenadas na travessa.

Sentei-me para comer com a travessa sobre os joelhos e percebi a falta que fazia Dasdores. Queria ela ali perto, com sua voz, com seu sorriso, dividindo comigo as favas da jaca mole, tomando na mesma caneca o leite de cabra e o café margoso.

Chorei de tristeza e de felicidade.

Em um domingo tomei coragem e me ofereci para tomar café em sua casa e Dasdores, prontamente, aceitou. Fomos: sua casa era pequena, muito limpa, e me lembro bem de uma canequinha com flores sempre-vivas sobre a mesa, o fogão de lenha aceso, muita ordem em todos os cantos e um cheiro de limpeza. A mesa estava coberta com uma toalha de chita com flores vermelhas e azuis e na parede a imagem de Santa Izildinha. Dasdores ficou preparando o café e eu sentei-me em um banquinho frente à porta da rua. O leite de cabra estava na panela sobre a chapa do fogão e Dasdores encheu duas canequinhas, feitas com lata de massa de tomate, e colocou sobre a mesa. “Vamos tomando o leite enquanto faço o café. Gosto de café forte, você também?”, perguntou enquanto bebericou um pouco de leite de cabra, e deixando a canequinha sobre a mesa voltou para o fogão.

As duas canequinhas com leite de cabra estavam pousadas sobre a mesa, e eu não tive dúvidas: bebi na canequinha de Dasdores, e me senti como se estivesse roubando um beijo. Procurei colocar meus lábios exatamente no local onde ela havia tocado com seus lábios grossos e meu corpo estremeceu ao dar aquele primeiro beijo: rápido, roubado, intenso.

Dasdores voltou e colocou sobre a mesa com as duas canequinhas com café, cujo cheiro inundou a sala.

E eu me sentia fora de mim, exaltado, sentindo-me como nunca antes havia sentido, tomado de emoções nunca antes experimentadas e que me deixaram atordoado.

Indiferente, muito calma, Dasdores sentou-se, pegou a canequinha com leite de cabra, olhou desconfiada para mim e bebeu. Penso que cerrou os olhos ao tocar a canequinha, mas não sei, peregrino, te juro, se foi sonho meu ou se ela realmente cerrou os olhos e tocou em meus lábios na canequinha de leite de cabra. Não sei, até hoje não sei, e vivo esta eternidade em dúvida, mas sempre torcendo para que Dasdores tenha, naquele momento, cerrado seus lindos olhos negros.

Tomei rapidamente o café margoso e pedi licença para sair: “barriga cheia, pé na areia” disse, desculpando-me, mas não conseguia permanecer tão perto e tão longe de Dasdores. Meu coração parecia querer sair pela boca fora, meus pensamentos fugiam do controle, meus lábios tremiam e minha respiração acelerava descontroladamente.

Saí rápido e fui para o córrego. Abri a Missão Abreviada para ver o caminho a seguir, e me vi cantando e chorando à beira do córrego, sob a sombra do umbuzeiro:

- “Os tíbios, os infiéis, os depravados, os homicidas, os impuros, os maléficos, os idólatras terão como quinhão o tanque ardente de fogo e enxofre, a segunda morte.” Apocalipse, Epílogo da segunda parte, 5.

Meu corpo nasceu para a dor e não para o amor, concluí.

Voltei para a vila e procurei por Dasdores. Encontrei-a na sala de aula.

- “Dasdores, quem pegou as sete vespas feiticeiras que você usou para fazer o chá para minha dor de garganta?”, perguntei.

Três ou quatro meninos responderam ao mesmo tempo:

- “Eu sei onde tem Beato. Quer? Quantas?”

- “Preciso de quatorze vespas, para hoje ainda.Quem pega para mim?”

- “Eu! Eu! Não eu! Não, eu é que pego!”

Dasdores colocou ordem:

- “Ta bom, Marsílio e Eurípides vão vocês pegar as vespas desta vez. Peguem umas quatorze, enfiem em uma latinha, fechem a boca da lata com pano e tragam para o Beato. Cuidado com cobras.”

À noite fui para a beira do córrego com a latinha e as vespas. Peguei a primeira com cuidado, coloquei-a perto do braço e apertei seu abdome: senti a primeira ferroada e imediatamente meu coração acelerou. Logo peguei outra, apertei da mesma forma e tomei a segunda picada: a palpitação do coração aumentou, e eu comecei a suar. Continuei forçando as picadas até chegar à décima terceira vespa. Meus olhos foram se fechando, mas eu continuava vendo canequinhas de lata de massa de tomate e os lábios de Dasdores e assim, com visões, desmaiei e não acordei do desmaio: morri.

Foi Dasdores que no dia seguinte descobriu meu corpo e ocupou-se das obrigações do caixão, das rezas e do enterro no cemitério perto da igrejinha; o padre mais perto de Venda Nova se recusou a dizer a missa de sétimo dia pelo motivo forçado de minha morte e por isso ando a vagar por até não sei quando, por esta eternidade.

Agora descanse peregrino. Você tem um longo dia pela frente. Boa caminhada!”

- “Obrigado, Beato Gastão. Foi bom te ouvir. Até uma outra vez.”

A manhã estava chegando. As nuvens se foram, o sol apareceu forte entre as serras da Mantiqueira.

Me pus a caminhar logo cedo. Tinha ainda uns seis ou sete dias de caminhada pela frente e em todos aqueles dias seguintes da caminhada me lembrava, vez ou outra, do Beato Gastão.

Sua Dasdores me levou a pensar no simbólico do imaginário coletivo e, principalmente, em uma mitologia iraniana, da qual soube pela primeira vez em um conto do Borges, e cujo nome, por mais que tentasse, não conseguia me lembrar. Outra coisa que me intrigava era o uso da formiga feiticeira: no norte do Estado de São Paulo a vespa assassina do Beato Gastão é, ou era, pelo menos, muito usada para feitiçarias terrenas, voluptuosas.

Chegando em casa, depois de abraços, café quente, muita prosa jogada fora não resisti, fui à busca, e encontrei, a palavra que não conseguia me lembrar: masdeísmo, da mitologia iraniana, encontrada no conto “O asno de três patas” em “O livro dos seres imaginários”, de Borges, como já disse.

Quanto à vespa feiticeira, negra, sem asas, e com suas belas faixas amarelas fantasiando seu abdome, fui ao google e achei:

- “O termo Formiga-feiticeira é a designação comum a diversas espécies de vespas do gênero Dasymutilla, família Mutillidae, especialmente as fêmeas ápteras, que têm aparência de formiga e são geralmente pretas, aveludadas e com vistosas manchas vermelhas, amarelas ou brancas.”