quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO – II- SERTÃO: UM MUNDO DE SILÊNCIO

DSC05752

“Sei também tratar do gado,

entre urtigas pastorear;

gado de comer do chão

ou de comer ramas no ar.” (*)

(*) Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto

Conto os acontecidos, do passado, aqui, nos de agora e é então por isso que o contado são memórias com nuvens e névoas embaralhando a correta visão dos fatos que verdadeiramente aconteceram por este tempo todo - que passou – e o que vivo agora e, por isso posso e gosto de contar é como uma massa de memórias engordada e crescida por forte fermento: a massa se incha, fica cheia de bolhas, não mais pura farinha e água e nacos de banha. Então vamos... Terminada a festa das vaquejadas o silêncio invadia o sertão: os ventos que vinham do sudeste, frios, perdiam força tão logo encontravam o calor do sertão, se esquentavam e parece que gostavam da quentura e se envolviam e cochilavam naquele calor úmido e se esqueciam do trabalho de soprar ou sopravam tão fraco que mesmo as finas e verdes folhas dos umbuzeiros se quietavam, como se estivessem dormindo, nem tremer tremiam tão fracos eram os ventos e ficavam ali, os umbuzeiros, imóveis pontos verdes meio ao cinza palha das caatingas; pouco se ouvia: aqui ou acolá um ou outro piar da coruja, ou o rum! rummmm! da asa branca e também se escutava o barulho das folhas secas que chacoalhavam, esparramadas pelos pés espertos dos tiús, dos calangos e das cascavéis – estas arrastando a barriga amarela em curvas à caça dos silenciosos e rápidos piriás -; fora isso, no mais era o silêncio de escutar as distâncias, de imaginar o barulho da nuvem branca que viaja devagar no céu azul, e a gente torcia e rezava para que ela ficasse cinza e despejasse água caatinga acima, e nada de barulho das chuvas e até se podia escutar o barulho do pingar da gota de orvalho ao chão, tudo quieto por demais. Barulho de vozes? ah!, não: no sertão não se usa falar, palestrar: se carrega uma vida isolada, silenciosa, que passa devagar, cozinhando o tempo no dificultoso trabalho de campear gado, furar cacimbas na caça d’água e havia momentos, as vezes horas, ou mesmo dias inteiros, que se imaginava que o pensamento tinha sumido dos miolos da cabeça igual a voz que sumia da garganta pelo excesso de não falar; o silêncio dominando o por de dentro, emudecia a alma e o recurso era – na solidão das caatingas, vaquejando sob o sol - imaginar histórias passadas, falar sozinho, consigo mesmo, em voz alta – qual um louco ou um velho caduco – cantar ou assobiar as conversas acontecidas nas vaquejadas ou nas feiras que frequentava a cada dois ou três meses, coloridas feiras de cantadores, de carnes, chapéus, macacos e maritacas e até mesmo araras, vivos animais, vendidos ou trocados por porções de aipim, cabritos, milho seco. Conto, agora, o acontecido no passado, o já acontecido das horas em que – enquanto vaquejava - relembrava o encontro com Ditão - na feira de Macambira - e o combinado com o benzedor, homem esquelético de magro, cabelos longos, barba escura alcançando o peito cabeludo, enormes olhos acinzentados de verde, bom e afamado benzedor: b’dia seu Ditão, careço de seus serviços, as vacas estão carregadas de bicheira, gastei com remédio de farmácia e não adiantou; e chega o dia combinado de Ditão aparecer no rancho para benzer o gado – benze pelo rastro – sem a devida necessidade de tocar o animal com as mãos; meio da caatinga, embaixo da sombra de um umbuzeiro onde as vacas costumavam se esconder do sol o benzedor para – longas pernas abertas, corpo ereto, esticado, tira o chapéu, olha para o chão e reverencia as manchas dos rastros e as negras bostas das vacas pisoteadas na sombra do umbuzeiro, segura e ergue nas duas mãos o terço de contas pretas, os mistérios gozosos, a cruz de metal brilha e cerra os olhos e vai soltando garganta a fora incompreensíveis palavras, rezadas - com fé, na busca do milagre - em outra língua: “orapronobis” “quirie” “virgo virginum” “virgo fidelis”, só o final se entendia um pouco mais quando Ditão, já com os olhos abertos, as mãos enormes apontava para o sol, inundava - com sua voz rouca - o silêncio infinito do sertão: vá-te bicheira desgraçada, vá-te pra junto dos demônios que são seus pais, inferno!; parecia cansado da força de pensar os pedidos e dar suas ordens às bicheiras e quieto, com medidos passos lentos, me seguia pela trilha da caatinga até o rancho e lá – sem nada falar - comia farinha com rapadura, não cobrava pelos seus serviços nem pela sua visita: cumpro o destino que Deus me deu, aceito adjutório qualquer que tiver em seu poder e que não te faça falta; vez ou outra, em outras benzeduras – cansado - repousava a noite e dormia no girau, roncava forte, sonhava e falava grosso enquanto sonhava, metia – em mim - um pouco de medo o Ditão dormindo ali, roncando, homem de tantos poderes, mandando as bicheiras e as frieiras do gado ir para os esquintos dos infernos dos diabos, benzendo os animais pelo rastro, e nos depois – dia seguinte - se via os vermes obedientes às suas rezas: caiam moles e esbranquiçados dos furúnculos dos animais, forravam de branco o pasto, montes amarelos de vermes mortos junto dos montes pretos das bostas das vacas, vermes mortos, ressequidos pelo calor do sertão; e é de pura verdade o que eu conto – temeroso – das benzeduras do Ditão, faço em antes o sinal da cruz em respeito às suas rezas e aos seus poderes, que Deus o tenha, já falecido o benzedor Ditão, um pouco mais novo que eu, morreu cedo, cruz credo!

Como disse inhantes, o dia a dia, a rotina diária, era de silêncio; faltava assunto quando – cansado das lidas com o gado – se chegava em casa, o sol já querendo sumir no horizonte e batia nos peitos grandes melancolias, o fim do dia se assemelhando ao fim da vida, o melhor era comer farinha, rapadura, beber uma pinga e ir para o girau dormir, sonhar com outros dias, com coloridas e alegres conversas nas feiras e nas vaquejadas. Quieta a vida de vaqueiro!

Depois das vaquejadas, o gado negociado era substituído por gordas vacas compradas nas verdes fazendas dos lados do Porto Nacional, distantes, chegavam nas caatingas brancas e chifrudas vacas, mais de oitenta e naquele ano, que estou contando, apareceram meio as vacas compradas duas novilhas rajadas, magras, com o pelo caindo, sem bicheiras; nas ancas magras das duas novilhas a marca de ferro: FJ, muito bem desenhadas as letras a cabeça do F grudada na ponta do J, os pezinhos das duas letras grudados um com o outro formando um desenho bonito; FJ: só pode ser dos Junqueira, o J dos Junqueira, o F do Franquelim, fazendeiro forte, ligado nas políticas, contrário à monarquia, querendo fazer valer o casamento no cartório, falando para quem quisesse escutar que o melhor era que o rei voltasse para seu país, de onde viera, que fosse ser rei por lá ou nos esquintos dos infernos e deixasse aqui a gente quieto com presidentes e governadores. Ajeitei uma vaca velha, sem poder de dar mais crias para amadrinhar as novilhas brancas: cumpre dizer que era obrigação do vaqueiro cuidar dos animais apareciam nos ermos dos pastos, bem cuidar até que um dia o dono desse por falta e aparecesse ou mandava um vaqueiro buscar: a obrigação era de cuidar dessas rezes desregradas, dar comida e sal e remédio e se – por acaso – fizessem crias nos pastos do patrão, carecia de marcar – a ferro quente – a anca dos bezerros com marca igual a da anca da mãe, o animal não pertencia ao patrão, e se suas crias chegasse a passar de quatro não pertenciam ao vaqueiro; era assim: lei do sertão a de se cuidar de gado desregrado como se cuidava do que era propriedade do patrão.

Isso, o que passo a contar, se deu em um ano de seca das mais bravas, aquele ano! A esperada vaquejada de junho julho - tão pobre - aconteceu sem festas e danças e sem vacas para negociar: naquele ano as vacas e os bois e os bezerros – que com as chuvas do inverno deveriam se apresentar gordos e pesados para o corte - mais pareciam assombrosos esqueletos cobertos de pelos brancos, pelos sem brilho, andando devagar, as cabeças caídas sem força de carregar os chifres para o alto, secas de carne, as vacas, mesmo as com crias novas, com as tetas murchas, escuras, enrugadas, parecendo jenipapo velho e o sertão se enchia de tristeza e de perigos. A fome! Numa tarde, quase noite, escutei da porta da tapera de pau a pique que levantei perto da cacimba e de dois umbuzeiros, o tropel de cavalo, quem seria?; apertei os olhos e deu para ver que era um cavalo grande, preto, arreio com luminosas estrelas enfeitando, cabresto de couro, cavaleiro com esporas de prata nos pés, o cavalo fungava e soltava espuma branca pela boca; oi de casa, sou o Estevo, vivo em Canudos sob as ordens do santo Conselheiro e carecemos de carne; meu nome é Nenzão, vaqueiro do seu Chico de Barros, às suas ordens, apeie do cavalo que tem farinha e rapadura para os amigos; vim buscar gado vivo para matar a fome dos acampados no Canudos, margem do rio Vaza Barris; gado que cuido é do patrão Chico de Barros e só sai daqui com ordem dele é o que posso afirmar e refaço o convite: tem farinha para encher um prato, rapadura e se gosta pinga das boas para esperar o sono da noite; aceito a farinha e a rapadura, estou com fome, mas como homem religioso e de princípios redigo: amanhã levo daqui, sua ou do seu patrão, dez ou mais vacas para matar a fome dos crentes acampados em Canudos a serviço de Deus e da Monarquia; e o Estevo apeia do cavalo, desarreia e solta o animal no pasto, senta sobre os calcanhares com o prato de farinha nas mãos e faminto come com as mãos, misturada a seca farinha com a doce rapadura: pinga posso não, tô proibido pelo Conselheiro. E a noite foi chegando, lua gorda no céu de muitas estrelas e o Estevo ajudou na feitura da fogueira para amedrontar e fazer fugir a sussuarana que andava espreitando a cacimba, o gado contava - pelos mugidos medrosos - que tinham sentido o cheiro da onça sussuarana, olhos brilhando no escuro, passos leves, espreitando silenciosa por detrás da moitinha de mandacaru, perto da cacimba que era onde as vacas e os bezerros bebiam a água suja e pouca. Era a sussuarana querendo matar sua fome com os ossos e as poucas carnes das novilhas: a fogueira de lenha acesa durante a noite não deu medo no animal, a fome maior que o medo, as vacas e as novilhas sem força para fugir da sussuarana faminta mugiam doloridos berros e foi Estevo quem tomou as iniciativas: limpou um pé fino de berimba e arrumou um espeto longo de mais de dos metros, quase três, com prego afiado na ponta, e foi o Estevo em direção à cacimba e com o berimba na mão esquerda cutucava o bicho, a mão direita segurava firme facão afiado, e o Estevo – sem medo, penso - cutucava a onça que a cada cutucão urrava e tentava segurar o espeto de berimba com sua enorme pata cheia de presas brancas, urrava miados medonhos, se via os dentes brancos e os olhos faiscando de mortal raiva, e Estevo cutucando e aguardando a hora exata do bote: ou mata ou morre! um pé mais atrás dando apoio ao corpo erguido, esperando o golpe e a onça sussuarana saltou prá cima do Estevo que esbarrou o corpo de lado, largou fora o espeto de berimba e segurou certeiro o facão no pescoço da onça, e eu me benzi com o sinal da cruz, um urro de dor invadiu a caatinga, o sangue vermelho jorrando, molhando a seca terra naquela noite clara de lua cheia que é uma lua ruim de chuva, boa para chuva é a crescente, e as vacas magras fugiram nos limites de suas forças, mugindo um berro de medo, a coruja piou seu canto de azar e Estevo limpou a lâmina do facão: amanhã cedinho tiro o couro mode fazer com ele um colete, vale muito colete de pele de sussuarana, as moças vão gostar de me ver vestido assim.

Na tapera: em um canto a onça morta; me deitei no girau rente ao fogão para dormir e ofereci ao Estevo o outro girau perto da porta da tapera, mais conforto pelo ventinho que vinha do umbuzeiro e passava pela porta.