quarta-feira, 25 de junho de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–XIII–FOI QUANDO ARCEBIDES RESOLVEU PROCURAR O SEU DESTINO!

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“Do que serve afligir-se em meio a terrores, se o homem vive à lei do acaso, e nada pode prever ou pressentir! O mais acertado é abandonar-se ao destino.” Édipo Rei, Sófocles.

E Arcebides fechou os olhos devagar, tragou bem fundo o cigarro de palha com fumo goiano, a fumaça chegou forte aos pulmões e foi ai que descansou a mente, deu aquela vontade de soltar a fumaça bem devagarzinho, sentindo uma cosca quentinha da fumaça nos bigodes, namorar a fumacinha azul clara sumindo no ar misturando o seu cheiro com o amargo perfume do café de bule que inundava a sala, lá fora o sol quente, os cachorros latindo contra uma visão que só eles viam, uma assombração, seria?, bebeu mais um gole de café doce e continuou a sua história:

A verdade é que fiquei parado, estatelado, enquanto ia vendo o Militão ir sumindo estrada a fora, montado na carroceria do caminhão com a caravana do circo, eu escutava seu assobio feliz que entoava as canções que iria cantar no Circo Veneza; os caminhões foram sumindo, sumindo, iam alcançar o horizonte, deixando uma nuvenzinha marrom de poeira fina na estrada, o barulho dos motores já se apagando nas veredas, sem poder de fazer mais eco no chapadão e uma nuvem de tristeza foi tomando conta de mim e aconteceu – comigo – em um tempo tão pequeno, coisa de minutos, mas que me pareciam infinitos, de uma dúvida por demais de grande ir tomando conta de todo o meu corpo, e era a dúvida de não estar indo para o leste se o leste era o meu destino, não entender por que andava acompanhado o cigano Igor para o norte, para Goiás, e tive vergonha de mim, da fraqueza de não ir á caça do meu destino, fosse ele qual fosse, mas para isso urgia mais d’eu saber onde estava o destino, o que é que eu – de verdade - queria, para onde iria, se o leste era o que me aguardava ou se o leste era apenas uma invenção de fugir de mim e eu não sabia - e reconhecia, naqueles minutos - minha incapacidade de sonhar o futuro, de saber para onde eu ia, reconhecendo a falta de saber, a oquice da cabeça, o vazio n’alma. Parado, a caravana de caminhões sumiu da vista, o horizonte vazio e foi quando o cigano Igor, solene em seu cavalo, quebrou o silêncio meio as veredas e falou com voz segura: vamos embora, sobrou um cavalo agora para vender; e me deu um ódio grande de ouvir aquela fala, o Militão buscando o seu destino, eu invejoso, e o cigano pensando em vender o cavalo e eu respondi raivoso: vou para o norte não, vou para o leste; fazer o que no leste?; achar o meu destino; só a dois dias daqui e chegamos no Porto Nacional, onde tem casa de mulheres, vamos?; eu estava ainda pensando o que decidir quando um comichão de vontade de mulher invadiu meu corpo, embraseou meu ventre, foi dominando todo o meu pensar, uma vontade grande de carinho, de sentir lábios quentes, do calor úmido de línguas se enrolando e sugando salivas, de gemer incontroláveis gemidos saindo do mais fundo do ser e eu decidi: dois dias a mais ou a menos não faz diferença e de Porto Nacional eu caminho para o leste e acho meu destino!

Em uma rua de terra com a calçada forrada de grandes pedras arenosas, casinhas azuis com pequeno alpendre iluminado por uma lampadinha vermelha; em uma casinha, na porta, uma morena alta: entrem, boa noite, tem cerveja gelada e meninas quentes; e entramos, Igor e eu, a moça morena acendeu a luz da sala e berrou alto: tem freguês; sentei em um sofá de plástico, a moça morena ligou a vitrola e soou alto a voz grossa de Nelson Gonçalves – fica comigo esta noite, e não se arrependerá, lá fora o frio – eu acompanhava o ritmo batendo com os dedos no braço do sofá; do corredor aparece e entra na sala uma pequena mulher, morena, os cabelos lisos caindo até os ombros, olhos negros abaixo de sobrancelhas cerradas, negras, nariz pequeno e lábios grossos...Luzia! Linda, Luzia, se aproximou de mim, a perfumada cabeça batia no meu peito – tão pequena -, pegou em uma das minhas mãos, e foi se aconchegando feito gata na brasa, ronronava - parece –, acomodou-se em meus joelhos: toma cerveja, bem?; sim, quero, bem gelada; Nair, manda uma cerveja bem gelada aqui pro meu bem, dois copos; e eu fui abraçando aquele corpo pequeno, sentia os peitinhos rijos se esfregando logo acima do meu umbigo, tão pequena a Luzia, de dentes tão brancos, e com uma voz docemente baixa e audível e fomos para o quarto; Luzia fechou a porta e apagou a luz, ficou tudo escuro e eu não achava mais o copo de cerveja em cima do criado mudo, e só depois, bem depois, com a luz acesa foi que vi o copo que a espuma da cerveja tinha desenhado uma seca rendinha em sua borda, lambi a rendinha e desmanchei o desenho, bebi o resto da cerveja amarga, quente e Luzia: volte amanha, de dia se quiser!

Foi dia seguinte, de dia que Luzia me contou que não conhecia seu pai: minha mãe se apaixonou por um loiro alto, de bigodes, eu me lembro de um retrato dele vestido com a farda de soldado da Coluna Prestes, uma carabina na mão, o olhar severo, ele, meu pai, junto a um bando de soldados ficaram acampados na praça perto da igreja matriz de Porto Nacional, minha mãe tinha medo de guerra, de tiros, e meu pai foi embora com a Coluna, eles fugiam da polícia do governo e então não deu tempo para eu conhecer meu pai; e sua mãe? onde ela mora?; morreu quando eu tinha ainda uns doze anos, pegou tifo; acho que gosto de você; também gosto de você; e fui gostando e fui ficando mais de uma semana em Porto Nacional.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES - XII–FOI QUANDO MILITÃO AVISTOU, AO LONGE, A CARAVANA DE UM CIRCO!

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Fugíamos - o cigano Igor, Militão e eu – sempre, um dia ou dois à frente das carroças da tribo de ciganos, galopando em direção a Goiás, para o norte, com o sertão das caatingas dando lugar às verdejantes veredas, se enxergando, no fim do horizonte, negros chapadões, os buritis, solenemente enfileirados enfeitando as veredas; no céu azul pipocam tucanos com seus pesados bicos vermelhos, voando desajeitado, um voo desengonçadamente inseguro, parece que vai cair, exigindo das negras asas o esforço de bater contínuo e rápido, para cima e para baixo, os olhinhos negros – tristes – procurando uma árvore para pousar, o melhor seria se encontrasse uma mangabeira ou um jalapão, porque os buritis se encontram, parece que desde o sempre, ocupados pelas vermelhas araras, barulhentas, de curvados e fortes bicos, e nos úmidos chãos das veredas os preás deixavam seu cheiro e seus redondos caminhozinhos ao meio do capim verde, que faziam lembrar os túneis que as máquinas furavam para o metro de São Paulo passear dentro do chão, feito minhoca, e batia lembranças do Parque Dom Pedro, de jogar baralho valendo dinheiro, de passear de noite no Parque Xangai e ganhar sonho de valsa acertando bolotas de barro na boca do palhaço com o estilingue de forquilha torta e, coisa mais de melhor, nos dias de final de mês, dia de pagamento do ordenado, à noitezinha, tomar banho, passar perfume e ir para a Rua Aurora visitar as casas das bonitas e morenas meninas, levar uma cerveja gelada e dois copos para beber no quartinho dos fundos com uma mineira bonita – Dulcinéia, era o seu nome – fazer amor com ela me chamando de Bem!, e imaginar – sonhando - a vida de homem casado, de sempre deitar acompanhado de mulher, tem que ser uma boa vida, pensava, o corpo sacudindo pelo trote molengo do cavalo que seguia desviando o caminho do leste, indo para o norte, e o que será que eu vou fazer no norte? E o que eu pensava em fazer no norte? Sabia não: até hoje, velho, com reumatismos endurecendo as juntas, acomodado, continuo a ser homem de ideias curtas, com dificuldades de pensar o longe, o depois de amanhã e naquela viagem de fuga, o rápido galope do cavalo fazendo as paisagens mudarem sempre – da cor de palha de milho do sertão catingueiro para o verde das veredas, do elegante voo do carcará para o desajeitado voo dos tucanos - dificultavam ainda mais essa minha pouca inteligência de enxergar o futuro que deus me reservou, e então eu resolvia que o melhor era cutucar o cavalo, apressar ainda mais sua marcha, e ir vislumbrando novas serras, as horizontais chapadas, admirar o repetitivo cantar do bem te vi que voava de buriti em buriti, seguindo os fugitivos viajantes, alertando de sua presença: bem te vi! bem te vi! e o seu piar canto me lembrou do Nestor, um sergipano que trabalhava como apontador de máquinas em São Paulo e sempre que bebia, contava a história de um jagunço que quando caminhava pelos sertões de caatinga, o intestino desarranjou, o recurso era procurar uma moita para fazer suas necessidades, e tão logo encontrou uma moita, abaixou as calças e estava se preparando para agachar quando ouviu o bem te vi cantar: bem te vi! bem te vi! e o jagunço, envergonhado, se alevantou de sua posição de agachado, suspendeu mais que depressa as calças até a cintura e continuou a andar com as pernas apertadas uma na outra de medo de sujar as calças - e Nestor, bêbado, enquanto contava a sua história teatralizava o andar cambaleante do jagunço segurando as calças, e a gente ria de sua imitação perfeita - e o jagunço andou mais um pouco quando viu outra moita, e apertado por demais, baixou as calças, se ajeitou para cumprir suas necessidades e de novo o bem te vi: bem te vi! bem te vi! e o jagunço, novamente, subiu depressa as calças e continuou a caminhar com as pernas coladas uma na outra para evitar lambanças, não era mais nenhuma criança para sujar as calças e andar debaixo do sol quente com as calças fedendo, os intestinos roncando e o jagunço viu outra moita, se arrumou para cumprir a urgente necessidade e o bem te vi: bem te vi! bem te vi! e o jagunço nervoso: fica quieto que meu cu tá aqui! e obrou, aliviou o corpo das necessidades e continuou o caminho, e Nestor dava risadas de sua história - sempre repetida - e repetia também mais um gole de pinga!

Foram mais de duas semanas caminhando para Goiás.

Em uma tarde, o céu azul sem nenhum algodãozinho de nuvem de enfeite, o sol castigando a nuca e as costas de quente, apeamos dos cavalos, para um descanso, no alto de um chapadão, apreciando o lá embaixo: uma imensidão de campo tingido de verde - as veredas -, e daquele alto também dava para enxergar, tão lá embaixo, a nascente do rio das Mortes, que depois ia se engrossando e se serpenteando pelas veredas e suas águas brancas sob o sol se transformavam em espelho obrigando a gente fechar os olhos, melhor então era ver as fileiras de buritis que pareciam de brinquedo de tão pequenos vistos daquela altura do chapadão, os urubus voando rente com nossas cabeças, nas alturas, e lá e embaixo, um fiapo cor de areia riscando o verde das veredas, uma estrada de chão que acompanhava as curvas do rio das Mortes, e foi quando todo aquele mundão de silêncio se assustou com o urro de um leão – ourrrourrrurrr! –; mas será que tem leão aqui?; tem não, o que tem aqui é onça suçuarana, cor de vinagre que come borregos e cabritos; mas isso não é urro de onça. E não era uma mentira: o urro bateu nos muros do chapadão e reverberou ecoando de volta - ourrrourrrurrr!; e foi daí que eu que os olhos do Militão começaram a brilhar feito que tinha um sol dentro deles, e aquele brilho foi se esparramando pelo todo de seu rosto, o homem se transformava, sorria por inteiro ao ouvir o novo ourrrourrrurr!: é um leão! é um circo! dá para ver, preste atenção, é uma caravana de circo! é o circo, o circo!; será que endoideceu o Militão?

Tinha endoidado não: como o urro do leão, não era mentira, não era engano dos ouvidos deu para ver lá embaixo, na estrada arenosa - meio ao infinito verde das veredas - caminhões, uns quatro ou cinco, em fila, colados um no outro - brummmm! brummmm! e Militão apontava enquanto repetia, gritando para ele mesmo: é um circo, é o circo! e foi saindo daquele estado de sonho, olhou para mim, mais do que para o cigano e disse: voum'imbora com eles, adeus!; montou o cavalo e tocou para a planície, em direção aos caminhões do circo, forçando o cavalo a forte galopar, o cavalo escorregando as patas dianteiras pelo íngreme barranco do chapadão e Militão berrou: vem comigo para a estrada, vem!; e eu, sem muito pensar e sem saber o porquê, toquei o cavalo na tentativa de alcançar Militão que vez ou outra olhava para trás e dava para ver que ele ria de contente quando notou que eu ia em direção ao circo e eu pensava será que ele está imaginando que vou junto dele? não vou não, quero vida de andar com circo não!

Alcançamos o planície e os cavalos – agora parelhos - galopavam em direção à caravana; os caminhões seguiam devagar com dificuldade de vencer os sulcos de areia que se formavam na estrada e um, mais pesado, entalou, acelerou forte para escapar e suas rodas giraram em falso, jogando areia para cima e cavando um enorme buraco na areia e o pesado caminhão que puxava a fila entalou, a caravana parou meio a vereda, os homens pulando dos caminhões, o leão urrava bravo em sua jaula amarrada na traseira do caminhão atolado, crianças corriam pelo mato e atiravam pedras nos preás e nas araras, as mulheres aproveitando a parada, faziam suas necessidades atrás de uma moita de mangabeiras, e o caminhão entalado roncava forte, queimava os pneus, e nos juntamos aos homens do circo e ajudamos a colocar capim e uma taboa no buraco de areia, embaixo dos pneus, agora ele poder sair: engate a reduzida e afunde o pé no acelerador, berrou um italiano forte, rosto vermelho do sol, e a gente empurrando o caminhão – brummm!brummm! – viva! escapou do buraco depois de solavanco forte: viva! Viva! berrava Militão, entusiasmado, meio fora de si, abobado na alegria de seu sonho.

Na carroceria do caminhão em letras vermelhas: Grande Circo Veneza! Militão, à vontade, se apresentou ao italiano que agora fumava um cigarro de papel e suava molhando a camisa, gotas de suor caiam do rosto encharcando o peito: meu nome é Militão, já trabalhei em circo como cantor; e Hipólito enxugou o rosto de suor com a manga da camisa: sabe, mesmo, cantar?; sim, quer ouvir?; e Hipólito, imediatamente, gritou alto: o rapaz aqui quer cantar em nosso circo, atenção; e o pessoal do circo foi se aproximando, as mulheres deixaram as moitas onde faziam suas necessidades, filhos nos colos, os meninos deixaram de atirar pedras nos preás, os operários e artistas deixaram os caminhões e fizeram um semicírculo, sentados no chão, e foi inventado ali um palco, meio da infinita verde vereda e o seu fundo era o chapadão de negras pedras, e Hipólito: pode iniciar sua apresentação de cantoria, primeiro com voz feminina e Militão com voz agudíssima cantou e dançou requebrando sensualmente os quadris:

Tomo um banho de lua
Fico branco como a neve
Se o luar é meu amigo
Censurar ninguém se atreve
Mas é tão bom sonhar contigo
Oh! luar tão cândido…

e foi entusiasmando seu público - artistas e trabalhadores do Grande Circo de Veneza - e Hipólito gostou da apresentação – mostrava isso com um largo sorriso em seu rosto – e ordenou que Militão continuasse sua apresentação e sob o silêncio das grandes veredas, agora com voz masculina,Militão não se fez de rogado, e soltou a voz aveludada, masculina:

Luna que se quiebra
Sobre las tinieblas de mi soledad
Adónde vas?
Dime si esta noche tu te vas de ronda
Como ella se fue;
Con quién estás?…

e todos aplaudiam, contaminados pela beleza da voz e da elegância da apresentação e ao término da segunda canção,Hipólito disse: quer cantar no Veneza?; sim, quero; então venha com a gente, tem lugar para cantor.

E Militão foi se aproximando de mim, seu rosto era só felicidade: voum’imbora Arcebides, esta é minha vida: o real, para mim, é a apresentação, é o palco; boa sorte, que deus lhe ajude, vá mesmo; você pode devolver o cavalo para o cigano?; posso; e Militão me abraçou forte: tomara que você encontre seu leste; vou encontrar, adeus, amigo!; adeus!