sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–V–FOI QUANDO ARCEBIDES E O DELEGADO ZÉ BOBAGEM SE ENFRENTARAM EM DUELO DE MORTE!

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“Quando abriu o segundo selo, ouvi o segundo Animal clamar: “Vem”! Partiu então outro cavalo, vermelho. Ao que montava foi dado tirar a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros: e foi-lhe dada uma grande espada.” Apocalipse, 6.3.

E, como te contava, estava eu lá, ensimesmado, sentado com a bunda na pedra, uns poucos metros da igrejinha de atrás do cemitério, o sol caia no poente, o céu com poucas nuvens, da capelinha vinha uma catinga de carniça que empesteava meu nariz, se enfiava dentro de mim - coração, pulmões, nos profundos do meu ser – era uma catinga danada, a bunda doía do áspero duro da pedra, e eu tinha que me ajeitar a bunda ora de um lado ora de outro, e o lado que se livrava do duro da pedra, formigava. E o senhor quer saber se eu não tive, naquelas horas de então, por medo da morte, vontade de fugir? ah! sim, teve instantes – longos, demorados - que eu me pegava pensando que o que melhor resolvia era eu fugir, me embrenhar mato a dentro, sumir, mas e daí nunca mais poderia – vergonha – voltar na vila, ia ser chamado de fujão, de cagão e eu pensava que quem sabe, talvez deus ajudasse e o delegado Zé Bobagem desistisse do duelo, e ai sim, seria o melhor, porque quem ia ser o cagão seria ele, mas na mesma hora vinha um claro na minha mente e eu vislumbrava que o que iria acontecer, no real e logo, seria a minha morte pela bala do revólver do Zé Bobagem, e isso era para logo, a bala - bum - no meio do peito me jogando dois passos para trás e tchau! babau!, tudo acabou, seu Nicolau , ia ser o escuro total, mas em antes do escuro total de breu eu tinha que descarregar minha cartucheira pros lados da cabeça dele, borrifar de chumbo sua cara, furar os olhos com chumbinhos pretos, delegado de merda; e era então, nestes instantes, que vinham momentos de não medo, todo mundo morre mesmo, só não se sabe a hora, e o diferente era que eu sabia a minha hora, o tempo que me restava era pouco e tinha que ser bom aquele resto de vida, alembrar de minha mãe, do meu pai, das putas da rua Aurora, do silêncio do Jequitinhonha, de caçar rolinha e pomba juriti com a espingarda de chumbo. Alisei o cabo da cartucheira e conversei baixinho, ninguém escutou: não pode negar fogo, minha amiga, é o que me resta, vê se obedece ao comando do meu dedo no gatilho e esparrame o chumbo bem concentrado, na cara do filho da puta do delegado, vai pretejar aquela cara branca de chumbinhos negros...

Vi que eu tinha acertado bem o ângulo de ficar sentado por detrás do muro do cemitério: da pedra onde eu estava vi que vinha vindo chegando o cavalo zanho do delegado Zé Bobagem: marchava calmo, troteava devagar, o corpo do delegado subindo e descendo obedecendo ao ritmo do trote, e eu retornei a pensar que tinha que dar tempo de eu descarregar a cartucheira, empestear a cara do delegado de chumbo; tudo silêncio, nem mesmo o piar dos anus pretos, só se escutava o pracatá! pracatá! pracatá do cavalo zanho que levantava, com suas patas, uma poeirinha do chão seco e Zé Bobagem chegou no fim do muro do cemitério, apeou, puxou devagar o cavalo uns três passos pelo cabresto até alcançar a sombra do umbuzeiro, amarrou e veio vindo devagar, andando muito senhor de si, pigarreou a garganta e cuspiu catarro no chão, vinha direto em minha direção, olhava firme - sem medo – para minha cara, e eu encarei a cara e os olhos dele, fingindo não ter medo, ainda há pouco, com eu ainda sentado na pedra, para testar meu medo, eu estiquei o braço direito em posição de tiro, mirei e vi que tremia só um pouco, tremor nos normais, senti não ia errar, sempre acertei tiros, no parque de diversões que tinha o nome de Parque Xangai, que ficava nos fundos do Parque Dom Pedro, tinha a barraca de apostar de atirar em patinhos de lata que movidos por eletricidade que giravam e giravam num sem parar, presos em uma régua de aço que dava voltas e que quando a volta vinha mais na frente tinha uma paisagem feita de madeira, com árvores, casinhas que encobriam os patinhos e quando chegava no morrinho tinha um túnel e eles passavam depressa no buraco do túnel e era ali, no buraco do túnel que a gente metia chumbo para derrubar o patinho amarelo de lata, tinha que ser rápido, e se comprava a ficha com direito a cinco tiros com uma espingarda de chumbo e eu ganhava sonho de valsa sempre, acertava – pum! – o patinho de lata e outro – pum! – e o outro patinho que deitava no buraco do túnel, tinha que acertar pelo menos três dos cinco tiros para ganhar e eu acertava sempre, matava três ou quatro patinhos, das vezes matava cinco, não errava um tiro só e eu ganhava o chocolate sonho de valsa, e os meus companheiros do alojamento riam de contentes e me davam dinheiro para eu comprar mais fichas para dar tiros e acertar os patinhos e ganhar sonhos de valsa para eles, era nos sábados de noite que a gente ia passear no Parque Xangai, que tinha uma roda gigante enorme que eu fui um dia e passei mal de medo, gostava mesmo era de dar tiros nos patinhos e andar no trem fantasma mas foi dai que o moço do parque desconfiou, reconhecia minha pontaria e me proibiu de dar mais que cinco tiros, dizia que eu dava prejuízo, tanto bombom sonho de valsa que eu ganhava; então hoje é a cara do Zé Bobagem, maior que o patinho, que eu ia encher de chumbo, tinha que dar tempo, o tiro do revólver mais rápido, dois passos para trás quando a bala chegava no peito, mas mesmo assim, meio desequilibrado com a força da bala no meu peito tinha que apertar o gatilho da cartucheira – buummm! – esparramar chumbo no ar para só depois de cumprida essa obrigação me deixar cair para morrer; mas como eu contava, o’stava ali, sentado na pedra, o delegado deixou seu cavalo zanho amarrado debaixo da sombra do pé de umbu e veio se encaminhado pro meu lado, em minha direção, os olhos odientos de raiva enfiados nos meus querendo adivinhar o que passava pela minha cabeça, ver se eu tinha medo e eu fui me levantando da pedra, me deu uma vontade de alisar a bunda para aliviar a dor, pedra dura, e foi aí que ficamos – cara a cara - uns cinco metros um do outro, nós dois de pé, ele com o revólver na cintura, eu com a cartucheira na mão direita, ele não era bom de galeio, meio lento, e tinha que dar tempo de eu descarregar a cartucheira.

No fundo de nós dois a igrejinha enfeitava o descampado, nós dois encarados dentro dos olhos um do outro, a catinga forte que vinha de dentro da igrejinha, não se escutava nem o vento fraco sem força até para balançar as folhas do umbuzeiro, se escutava o zummm das moscas verdes, varejeiras, quando aquela imensidão de silêncio se quebrou e se escutou um farfalhar - igual ao barulho seco e oco das costas do boi quando coça berne na casca grossa da árvore – fruuu! – e vi que os olhos do delegado se desviam dos meus, buscaram ver um outro canto, o canto da igrejinha, atendendo de onde vinha o barulho farfalhento e eu levantei a cartucheira pro ombro, e num de repente – bum! – trovoou um barulho forte, o bummmm se espalhou pelo cerrado, logo ia fazer eco – bummmm - no morro do taquari, espantar as rolinhas, e eu pensei tenho que ser rápido, logo a bala chega no meu peito e me joga dois passos para trás, tenho que atirar, e apertei o gatilho – brummmm! – barulho e fumaça de pólvora no ar e o meu ombro direito doeu do coice da cartucheira, mas era assim mesmo, e eu não caia para trás, a bala demorava para chegar, será que eu estava com a o corpo fechado, com o capeta em dentro de mim como um escudo de ferro, e foi dai que escutei o berro do delegado, um urro forte, e o Zé Bobagem deu dois passos para trás, um braço aberto para o alto, largou o revólver no chão o outro braço segurando o peito, vi seu rosto polvilhado de chumbo e o peito sangrando vermelho, um buraco nas alturas do coração e o homem cai de costas, esbugalhado, levantando poeira do chão com a cabeça, a cara cheia de chumbo para cima, os olhos abertos, e eu desentendo aquilo tudo e resolvo olhar para trás, ver de onde veio o farfalhar que desviou o olho do delegado do meu olho e vi ajoelhado, dentro da igrejinha, revólver ainda esfumaçando na mão, grandão demais para a dimensão da capelinha, e enxerguei que era o Valti capadô, que foi se se levantando, saiu da igrejinha sem esconder com o lenço o buracão que era sua boca, a boca sem dentes, nenhum, misturada com o nariz, um buraco só: matei o homi e agora careço de um adjutório seu, falou com a voz cavernosa, o fedor de carniça se alastrando pelo cerrado e eu disse: fale Valti, o que pedir é ordem; e ele: vamos até o mato do Baguaçu, que é lá que eu faço meu pedido, te conto do que careço; mas em antes de começar o caminho para o mato do Baguaçu fui até o corpo do delegado, queria conferir sua morte, o sangue no peito escurecendo a camisa xadrez, a boca aberta, chumbos espalhados pela cara, e eu peguei o revólver que estava no chão, ao lado do corpo morto que eu suspendi, pesado o corpo morto, desatei o cinturão com balas, me vesti com ele, ajeitei o revólver que agora era meu e disse pro Valti: vamos! e caminhamos por uma meia hora, mais ou menos, os dois: ele -- enorme, passos largos – na frente e eu atrás, seguindo seu andar e imaginando o que ele ia querer de mim, e eu tinha certeza que ia cumprir, Valti salvou minha vida, pago o que ele pedir e tão logo chegamos no mato do Baguaçu, o Valti continuava sem o lenço para esconder o buraco da boca, me encarou de frente e disse: inhagora quero quimimate!; que isso mano? deixe de pensar besteira, em querendo te levo para um sanatório, você se cura da doença; tem cura não, sei e já vi sanatório que tem em Vitória: aquilo num é vida, melhor morrer; mas Valti...; ele interrompeu: só eu mesmo, por minha conta, não já resolvi por fim da minha vida, só eu mesmo não me dei um tiro, ou me enforquei com cabresto na cumeeira do meu rancho só de medo do pecado acabar com a vida, ir para o fogo do inferno, e eu quero o céu, vamos tem que ter pressa, logo os soldados estarão nos seus calcanhares, vamos acabar logo com isso; e eu mirei primeiro a cabeça do Valti depois a boca e, naquela tarde, mais um bummm! ecoou no cerrado, o cheiro de fumaça misturado com a catinga do corpo de Valti, que emborcou no chão e eu pensei não posso deixar este corpo aqui no tempo, no descoberto, logo chegam os urubus, tenho dar um jeito de enterrar, acender pelo menos uma vela em respeito ao corpo do finado e foi aquilo que dominava meu pensamento naquela hora e foi isso o que resolvi.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–IV–FOI QUANDO O DELEGADO ZÉ BOBAGEM DESAFIOU ARCEBIDES PARA UM DUELO!

 2009 Caminho da fé 091

“Valente não teme a luta,

Enchente não teme o rio,

Machado não teme o pau,

Touro não teme o novio...

Violão não teme a prima,

Poeta não teme a rima,

Nem eu temo desafio.”

“In” Vaqueiros e cantadores, Luís da Câmara Cascudo.

E chegou então uma manhã em que nasceu o dia 31 de agosto e foi naquela manhã que, às sete horas, eu estava na fila, frente ao escritório, para receber o envelope com os dinheiros do ordenado do mês; nos dias de pagamento aquele moço do escritório o que tinha as mãos brancas e a voz suave providenciava uma escala com horas certas para se ir receber e assim, dizia ele, evitava tumultos, filas compridas e também não se perdia horas de trabalho, tudo tinha que ser depressa, ligeiro: receber, conferir os dinheiros e os descontos, assinar os recebimentos, guardar o envelope no bolso traseiro do uniforme e voltar para o canteiro de obras; mas naquele dia, 31 de agosto, dia de São Raimundo, grudado no envelope veio a carta do aviso de férias, autorizando que eu gozasse as minhas no mês de outubro, e garanto que feliz por demais voltei para a obra assobiando, peguei a picareta e cavei fundos buracos, o trabalho rendeu, me esqueci do frio que fazia e passei o dia todo cantarolando baixinho, só para eu mesmo escutar e me deliciar de tanto contentamento: “quando o verde dos teus oios, se espalhar na plantação...eu te asseguro, não chores não, viu, eu voltarei, viu, prô meu sertão”; trabalhei sem nenhum cansaço e no fim do dia, logo depois do banho, engoli depressa a janta no refeitório dos peões e não quis saber de jogar truco nem escopa de quinze: fui para a rodoviária ver horários de ônibus, anotar preços, gozar – com antecedência - minha alegria da vontade de voltar para a vila, ver os parentes, os amigos, e testemunhar para mim mesmo se minha vida era no Parque Dom Pedro ou se era lá nos fundões do Jequitinhonha: vida vivida nos silêncios ou nos barulhos? no brilhar das estrelas e da lua ou nas luzes nos postes? de onde se é que regia a minha vida real, urgia saber.

Conto depressa para o senhor: não vi o mês de setembro passar; chegou o dia trinta, não trabalhei, acordado com o moço de mãos brancas do escritório, logo de manhã fui receber o pagamento – fora os descontos recebi cento e cinquenta cruzeiros – , arrumei a sacola com minhas coisas, na hora do almoço fui na Caixa e tirei trezentos cruzeiros que tinha guardado na poupança, comprei um relógio com pulseira grossa, folheada de ouro, um par de óculos raiban escuro, e, enquanto esperava a hora do ônibus na rodoviária cortei meu cabelo.

Cheguei!

E umas pessoas diziam: bem vindo Arcebides!; e umas outras: nossa ‘ce’tá bonito, homem; e eu agradecia e voltei a gostar do silêncio, do paradão do ar no céu sem ventos do cerrado, de me esconder do sol e tomar sombra embaixo da mangabeira - onde eu namorava Dulcinéia – e não me bateu saudades dela, a mangabeira carregada de frutas amarelas, logo iam cair, forrar de dourado o chão de tantas frutas, e ai sim é que era a hora de catar e comer as mangabas, doces, catar o resto do chão, encher o embornal e levar para casa pra mãe fazer doce, e revi amigos, fiquei a par das novidades: sabia que o Quinzim morreu?; não me diga isso, de que morreu?; de morte morrida mesmo, ficou doente e morreu, antes ele do que eu; novo para morrer assim de morte morrida...

E foi na chiboca do Noraldino – que era onde se jogava dominó, bebia pinga e se contava das novidades, poucas - que fiquei sabendo: na tarde daquele dia, ia ter desfile na praça; desfile? do que? sete de setembro já se foi; e foi o Dermiro que relatou: o Marruco havia roubado galinha no quintal do seu Gino, que deu queixa na delegacia e o delegado mandou prender Marruco e naquela tarde o cabo Jaime ia realizar o desfile do Marruco na praça da vila, mandou escrever placa de cartolina para pendurar no peito: eu sou ladrão de galinha, e o desfile ia ter zabumba e fogos!

Marruco era o que se acostumava chamar de louco manso: forte como um touro, por isso a alcunha de marruco - que é boi inteiro, sacudo, sem ser capão – mas fraco de juízo, ideias fracas, nunca aprendeu o beabá, não escrevia nem o ó com o fundo da garrafa, contar só até dez e o que ele mais gostava era de ficar esperando o fim da aula na escola da vila para brincar de rodeio: ficava de quatro e os moleques montavam em suas costas e ele pulava, bufava, saracoteava no ar – fingindo ser cavalo ou touro bravo - exigia que o seu cavaleiro batesse forte em suas pernas, e com as pancadas em sua bunda o homem rodopiava no ar para derrubar o vaqueiro, e os moleques faziam fila para montar e se divertiam, o Marruco com as calças sempre furadas nas alturas dos joelhos de tanto fingir que era touro de rodeio pulando e saracoteando para derrubar os moleques: “mete o rei, vaqueiro, num é homi não?” e a molecada agarrada no pescoço do Marruco batia com o rebenque ou com um rabo de tatu, apostavam quem mais durava em cima das costas dele, e os que não estavam montando ficavam contando o tempo: um, dois, três... caiu!, só aguentou até três, agora é a minha vez; fora isso Marruco era chamado pelos mais velhos para buscar água na mina, carregar os latões cheios de água branca para uso de cozinha, a mina era longe e os velhos não conseguiam carregar tanto peso, e pelo favor da busca d’água davam de comer para o Marruco: “graças pela comida, que não faça falta aqui, que deus ajude” e era assim a vida do Marruco, maldade nenhuma, morava sozinho, sua tapera encostada na cafua do Valti capadô, e este - o Valti – era o que tinha pego nos últimos tempos o mal de lázaro, a lepra, e andava o tempo todo com um lenço escondendo a boca que tinha virado um enorme buraco, misturada com o nariz: doença dos infernos a lepra, deus me livre, tão bom que é o Valti, porque foi castigado assim, terrível doença: culpa de quem? de deus ou da coisa? ninguém sabe.

Frente da igrejinha da vila tinha uma praça. Explicando melhor uma praça sem bancos e sem árvores de sombra e nos anos da política a promessa de um coreto para a banda para tocar músicas nos sábados de noitinha, bancos de cimento, plantar mudas de mangueira pra sombrear; mas enquanto não tinha os bancos e coreto era ali na praça que o povo se reunia em antes da missa de domingo, quando vinha padre, e era na praça que se fazia a fogueira das festas de São João e foi na praça que naquele dia, uma terça feira, o povo se reuniu para assistir o desfile do Marruco, ladrão de galinha.

A zabumba batia em compasso ternário, pum...pum!pum!...pum!...pum!pum!, o cabo Jaime a pé regendo a zabumba, olhar nervoso de bravo e o Marruco, sem camisa, peito ao sol, a placa escrita - eu sou ladrão de galinha - pendurada no pescoço, escrita em lápis grosso, azul, na perna esquerda tinha amarrada com uma corda feita de embira uma galinha, daquelas do pescoço pelado, olhinhos negros, assustada e a cada passo do Marruco a galinha carijó do pescoço pelado se arrastava, batia as asas, cocoricava para logo depois já esquecida ciscar o chão procurando uma formiguinha ou uma minhoca para comer; na outra perna, também amarrado por uma corda feita de embira, um galo índio, vermelho, bico amarelo, espora enorme nos pés, bravo por causa de sua raça, olhava para o alto, e era arrastado pelo andar do Marruco, e o cabo Jaime berrava: dança Marruco, dança! e Marruco ouvia o som da zabumba e ensaiava – desajeitado - uns passos de chachado, e o povo ria, ladrão de galinha, e o delegado, por nome Zé Bobagem, acompanhava de perto, montado no cavalo zanho, bonito, revólver na cintura, esporeava vez ou outra o cavalo, olhando para o céu, mostrava autoridade, Marruco levantava poeira no chão da rua com o arrastado de seu chachado, o galo índio e a galinha de pescoço pelado amarrados em suas pernas, o papel ladrão de galinha pendurado cobrindo o peito largo, e num instante de minutos vi que ele olhou para dentro dos meus olhos e clamou por piedade, foi o que li nos olhos dele naquela hora e me deu uma dor grande no peito, isso não é coisa que se faça com filho nenhum de deus, ainda mais com um doido manso como Marruco e quando vi – tem horas, o senhor sabe e deve ter passado já por isso – que o corpo realiza atos sem ter dado o tempo devido para o pensar; como dizia minha mãe: conte até dez, e quando vi estava debaixo do cavalo do delegado, empurrei o cabo Jaime e com a faquinha de picar fumo para fazer cigarro, cortei as embiras que prendiam o galo e a galinha nas pernas de Marruco, e os dois – o galo e a galinha - meio abobalhados pelo ocorrido da surpresa, permaneceram por ali perto das pernas do Marruco e eu chutei forte: cho! desgraçados! e o galo índio e a galinha de pescoço pelado cacarejaram, bateram asas e correram apressados, e arranquei o papel escrito eu sou ladrão de galinha do pescoço do Marruco e rasguei em pedaços, joguei nos pés do cabo Jaime que veio em cima e eu tirei o punhal que tinha na cintura, cabo de madre pérola, ponta fina, boa de se enfiar até o fundo e disse: te mato seu puto, filho de uma égua, todo aquele fazer e xingar sem pensar e daí catei Marruco pelo braço e disse: vamos para casa, e andei em direção ao cafua onde ele dormia, o povo assustado, o cabo Jaime pedindo ordens e orientação para o delegado Zé Bobagem, que ficou de rosto vermelho, sangue subiu pela cabeça, odiento pelo sucedido, a mão desceu segurando e alisando o revólver: nunca fui desafiado assim, vai ter troco; e eu não olhei para trás, caminhei em direção ao cafua de Marruco, o povo parado na praça, regeu um silêncio de se ouvir o voo do urubu, que volteava a praça, olhando embaixo, prevendo mortes e carniças, bicho carniceiro, e cheguei em onde ficava a tapera do Marruco e disse: agora você entre e fique quieto por aqui hoje, não saia; e ele: mas os moleques vão querer montar em mim hora que acabar a escola; e eu: hoje não tem rodeio Marruco, se aquiete aqui.

E foi quando o delegado Zé Bobagem chegou montado em seu cavalo zanho, os olhos meio azulados brilhantes de tanta raiva, o revólver na cintura, disse: desacatou autoridade Arcebides e assim não pode ficar; e eu quieto, vou contar até dez, nada disse – contava até dez - e ele aturdido pelo meu não falar, - vou contar até vinte - e resolvi nada dizer e ele não suportou o silêncio e disse: desafio para um duelo em hoje ainda, as cinco e meia da tarde, atrás do cemitério, me espere na capelinha; e eu resolvi falar: arma branca? e ele: não, arma de fogo, e o certo é que um de nós dois volta esticado de lá, morto!

Olhei meu relógio novo, pulseira de ouro, eram três e pouco da tarde, daqui a duas horas o duelo desafio, o desgraçado não quis arma branca, impôs arma de fogo, de certo por saber ele que a arma de fogo que possuo é a espingarda de chumbo, a cartucheira de um cano só, boa para se caçar passarinhos, matar preás no brejo, mas para duelo é lenta, só se eu arrumar um Schimdt emprestado, mas de quem? ninguém vai querer emprestar arma para desafio de morte, todos na vila tinham conhecimento do tanto que eu era rápido e certeiro no gatilho, bom de tiro, mas acostumado em atirar com a espingarda de chumbo, matar codornas, pombos, preás.

Muito tempo em que pensar.

Medo?

Quando deixei Marruco em seu cafua eu vi, na janela da tapera de frente, os olhos de Valti capadô: com a janela meio fechada, pela frestinha vi seus dois olhos negros, ele dentro do escuro da sua tapera, tinha tudo observado, escutado as palavras do delegado, e escutei sua voz que falou para mim: coragi homi qui deus está cum ocê.

Medo? De morrer, acho que sim, ou não, não sei, não soube distinguir naquela hora.

Fui para casa, não contei do desafio de morte nem ao pai nem pra mãe, catei a espingarda de chumbo que estava pendurada na parede, juntei dois cartuchos novos e o saquinho de couro com pólvora e chumbo e falei: vou sair por ai, matar umas rolinhas; cuidado meu fio; me cuido minha mãe, sua benção, eu te acompanho meu fio; carece não meu pai, quero ir só; deus de abençoe, meu fio!

Atrás do cemitério, tinha uma pequena capela - só cabia uma pessoa – que andava maltratada, faltava pintura, tinha um buraco no telhado, telha rachada por onde entrava a luz do sol, clareando o seu escuro, porta estreita; era lá que as pessoas, em dia de chuva, ou de vento forte, deixava as velas acesas em recomendação para almas, mortos, defuntos, novenas, preces: na pequena prateleira a imagem de Santa Izildinha e os tocos das velas se misturavam com as velas derretidas, montanhas e morrinhos da cera branca, as telhas negras de tanta fumaça das velas, picumãs negros parecendo morcegos; era essa a capela de trás do cemitério que se referiu o delegado Zé Bobagem, como ponto de encontro para o desafio de morte.

Fui! O céu azul, nuvem nenhuma bordando, um urubu aqui e outro ali em seus voos silenciosos, sem bater as asas, voo de descanso, os olhos buscando carniça para saciar sua fome e eu ali, sentado em uma pedra perto da capelinha, em um ângulo que eu sabia que enxergaria o chegar do delegado Zé Bobagem, que viria em seu cavalo zanho, resolver novo, carregado de balas e eu soquei forte o cartucho com chumbos e pólvora, tinha resolvido, comigo mesmo, que ia encher a cara do delegado de chumbo, deixar marcado o rosto branco com negros chumbos, enfeiar ainda mais a cara do safado que ia me matar, pum!, um tiro no peito, se fala que o tiro joga a gente até uns dois passos para trás, mas eu tinha que descarregar a espingarda de chumbo, pum! esparramar chumbo em direção da cabeça, furar os olhos azuis do delegado, ia dar tempo, deus vai me ajudar, morro mas deixo a marca em sua cara para sempre, delegado filho de uma égua, desgraçado.

Medo? Sim e não, a raiva esconde o medo.

Sentei em uma pedra, ao lado da capelinha, para esperar a hora e quando puxei o ar para dentro dos pulmões, senti que vinha de dentro dela uma catinga forte de carniça, prenúncio de morte, o corpo se desfazendo, os urubus de olho...o sol ainda forte, fazia calor e a catinga vindo de dentro da capelinha, e eu me lembrei que não gostava do cheiro de vela queimada misturado com o perfume de rosas, aquilo me lembrava defunto, e aquela catinga de carniça que vinha da capelinha.

Cinco horas, o sol querendo se esconder atrás do morro do Taquari, poucas nuvens na barra do por do sol, um vento pequeno começou a assoprar vindo do leste. Tem que aguardar a hora!

sábado, 8 de fevereiro de 2014

HISTÓRIAS DO ARCEBIDES–III–E FOI QUANDO DULCINÉIA, POR CARTA, DESMANCHOU O NOIVADO!

2009 Bahia 157

Foi lá nas banda do Brejo

muito bem longe daqui

qui essas coisa se deu

num tempo qui num vivi

nas terra qui meu avô

herdô do meu bisavô e pai seu

Dindinha contô cuan meu avô morreu...”

Auto da Catingueira, Elomar Figueira Mello.

Me desculpe, que mal lhe pergunte, mas como ficou o senhor sabendo que andei preso, vendo o sol nascer no quadrado das grades de ferro grosso, o sol entrando e gerava cruzes de sombra no assoalho do quarto da prisão? apois alguém tem que ter contado ao senhor, só pode ser assim! e pode me dizer quem foi? anram! ta’bom! o senhor me afirma que ficou sabendo em cantorias e falatórios de feiras; pode mesmo ser, naqueles tempos o caso foi muito falado.

Pois isso de fato ocorreu. Andei preso em cadeia! Conto!

E, já adianto, que essa é uma das dificuldades de se parlamentar as coisas da vida: quem conta tem uma música, quer contar em uma melodia, narrar os ocorridos em um ritmo mas quem escuta tem outra música, os ouvidos se cansam de escutar, quer rapidez nos finais, e o que narra, na ânsia de agradar, mistura seus tempos, confunde fatos, as ideias não se aclaram para ordenar corretamente os acontecidos e então careço de tempo, peço: um gole de pinga, da branquinha e o enrolar o fumo na paia de um cigarro vai me ajudar a rememorar os acontecidos, servido uma dose? não? pois asseguro que é das boas, feita da melhor cana, região das Salinas, pura pinga; e a hora que a fumaça do pito chegar no fundo nos pulmões, bom, as ideias vão se ajeitar em um modo de narrar. Tento, me escute.

Tão logo o dia de São Gerônimo apareceu na folhinha naquele ano que eu estava a viver no Parque Dom Pedro, labutando nas obras de um trem que iria correr por debaixo do chão, escondido nos escuros fundões, e que quando se realizasse de pronto ia carregar gentes como se fosse uma minhoca, uma minhoca com a barriga grávida de pessoas, mas como dizia, tão logo completei um ano de firma, procurei – no escritório – por aquele educado moço de mãos brancas, de fala mansa e argui de quando eu ia tirar minhas férias e Igor - era esse seu nome – me disse que eu já tinha direito aos trinta dias de férias, mas que as obras estavam atrasadas, que o governo estava cobrando os prazos e que ninguém ia gozar férias naqueles momentos; e quando acha que eu vou tirar minhas férias?; no momento não posso precisar, mas você receberá o aviso de férias sempre com um mês de antecedência; será que é no fim do ano?; não posso garantir, tudo vai depender do andamento da obra, a chuva tem atrapalhado; o aviso vem junto com o envelope do ordenado?; isso mesmo, este é o procedimento: o aviso de férias vai chegar junto com o envelope de pagamento, o apontador vai pedir para você assinar; obrigado; de nada, estou sempre as ordens, bom trabalho.

E quando chegava o fim do mês, dia do pagamento, eu pensava: agora vem o aviso das férias, mas nada e foi quando chegou o mês de abril eu pensei forte que era naquele mês que ia chegar o aviso, que a firma queria que eu gozasse minhas férias nas festas de São João, no vale, soltasse foguetes, pulasse a fogueira, bebesse licor de jenipapo, mas só veio o envelope do ordenado, os dinheiros, os descontos e não veio o aviso e eu perguntei ao Igor de quando eu ia tirar minhas férias e ele respondeu que não podia ainda saber com precisão, que os mais antigos tinham preferência de gozar, que tinha peão com até três férias vencidas, que eu carecia de ter paciência; sai tristemente ensimesmado do escritório, saudoso do silêncio do vale, uma vontade grande de encostar meu peito no corpo moreno Dulcinéia, sentir seu coração batendo nos peitinhos pequenos, rijos, me deu uma grande necessidade de mulher, as putas da praça do correio eram boas para um descarrego, mas minha necessidade era de maior monta: queria possuir Dulcinéia, fazer da moça mulher, casar na igreja, no cartório com papéis e padrinhos, festanças...

E garanto ao senhor que naquele mês de junho, dos que eu conhecia e que eram lá dos meus lados de Indaiabira, apenas um saiu de férias, e o sortudo foi o Anselmo, e ele foi carregado de cartas, presentes, retratos, lembranças. Muitos iam de férias e não voltavam, gostavam mais da solidão dos gerais do que do barulho do Parque Dom Pedro, e o moço do Mappin vinha até o canteiro de obra reclamar dos que não tinham pagado as prestações, que o Mappin estava tendo prejuízo, que ia colocar o nome dos devedores no cartório e o que ficasse com nome sujo nunca mais ia poder comprar em prestações, mas em Montes Claros e nem em Indaiabira tinha lojas que vendiam rádio a prestação e o Igor – apesar de que utilizar outro tom de voz, um sorriso meio escondido – falou que devíamos cumprir nossos tratos, pagar nossas contas direitinho; mas o Anselmo voltou: voltou e contou das festas de São João, dos que haviam morrido, da seca forte, contou que as pedras do rio estavam apontadas para fora d’água, quentes do sol, em nunca antes o rio esteve tão baixo e depois passou a entregar cartas, embrulhos que trouxe de Indaiabira e para mim veio um embrulho com uma carta de Dulcinéia e no meio do papel a aliança que eu havia mandado, a carta desmanchando o nosso namoro, e eu fiquei um pouco desesperado: mas Anselmo, o que houve com Dulcinéia, homem de deus, me fale?; e ele: o que se conta é que se enrabichou com o mágico do circo de Montes Claros, fugiu de casa e por lá, ninguém, nem sua mãe, sabe para onde foi, melhor esquecer, arruma outra.

Bateu uma tristeza grande, uma vontade grande de matar o mágico do circo, matar com punhal, furar o coração fundo; ou matar com minha espingarda de chumbo, esparramando chumbo na cara toda, o mágico ia morrer com a cara toda furada igual a quem teve varicela, ou matar com um cabresto apertano devagar o pescoço, a cara roxeando, o peito parando de subir e descer, matando, deixar morto debaixo de um pé de umbu pros urubus comerem a carne podre, com ele pendurado no umbuzeiro, furar os olhos, caçar os miolos lá dentro da cabeça: desgraçado, mágico de merda, filho do demônio, que o diabo te leve para os fundos do inferno e Dulcinéia não te quero mais, vou ficar com as putas da praça do correio, peitos enormes, moles, cobram para ir para a cama, mas são obedientes nos pedidos, gemem um gemido fingido: já vai gozar meu bem! goze! cadê o dinheiro meu bem?; tá no criado mudo, sábado eu volto; te espero, mineirinho lindo, meu amor!

De tarde na hora do banho, eu na fila esperando minha vez de usar o chuveiro escutei o Antônio da Chicuta cantar debaixo do chuveiro, enquanto ensaboava o corpo com perfumado sabonete:

“Fui lá

no indaiá,

pra comprar, ah,

roupa nova, suspensório, enxoval...

E vi moça

em janela

a chamar, ah:

- Ôi, vem cá, p’ra nós, se casar!”

E parece que querendo me consolar:

“Casar sério lá é triste,

namorar só é que é gostoso...” (2)

(2) “in” Manuelzão, João Guimarães Rosa

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

HISTÓRIAS DO ARCEBIDES–II–O PARQUE DOM PEDRO!

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E o ônibus foi chegando em São Paulo ainda meio escuro, e as luzes da cidade, que se via bem lá longe, foram se misturando com a barra do dia que ia aparecendo no horizonte; uma vermelha barra – sinal de que o sol ia nascer bravo de quente - iluminava – clareando - as montanhas escuras, pondo o verde nas árvores e pouco depois já se viam – da janela do ônibus – prédios, casas, ruas com homens e mulheres andando depressa pelas calçadas, para onde iriam? eu teimava em conseguir ler as placas com o nome da rua, consegui: Rua Clélia, o ônibus sacoleja pela rua Clélia, calçadas, faróis nos cruzamentos, cheiro de pão nas padarias, mães segurando os filhos pelas mãos de certo carregando os pequenos sonolentos para a escola, era melhor estar na cama dormindo, mas têm que ir aprender a ler a somar; a rua Clélia é longa, as luzes nos postes se apagam e é só o sol que, agora, ilumina a cidade: e se via o chão da rua Clélia calçada por negras pedras, paralelepípedos gordos, quando o ônibus resolve se curvar para a direita e seguir – já cansado da viagem - por uma avenida sem paralelepípedos, asfalto liso, árvores plantadas no meio, carros vindo do lado de lá e o ônibus indo para frente. Pois então, foi assim, me lembro como se fosse hoje, e já são passadas dezenas de anos, que o ônibus vindo de Minas, do Jequitinhonha, chegou bufando a São Paulo e – exausto, fumegante – estacionou debaixo de uma árvore no Parque Dom Pedro, puf! puf! e o moço de mãos brancas, educado, fala mansa, em antes de descer, pede silêncio e dá suas ordens: chegamos e agora todos vocês antes de descer, peguem suas trouxas ou malas, recolham tudo o que trouxeram, vigiem se não esquecera nada no porta mala que está acima da cabeça e só depois destes cuidados é que podem descer e lá embaixo, na calçada, logo ali, frente ao ônibus, formar uma fila frente ao escritório; será no escritório que seremos fichados, a carteira ser assinada, cada um vai receber um par de botas, duas calças e duas camisas de brim, azuis, - uniforme de trabalho – e o capacete amarelo que é para colocar na cabeça e assim evitar acidentes.

Obedientes, apeamos do ônibus, cada qual se espreguiçando o mais que podia, coçando a cabeça, abrindo a boca do sono mal dormido, os joelhos e a bunda doendo da viagem demorada. Parque Dom Pedro: posso afirmar, com certeza ao senhor que sua primeira vista é um infinito de desconhecimentos nunca vistos: prédios altos, brancos, outros cinzas, árvores verdes, ônibus e mais ônibus parados com a porta aberta e filas de gentes entrando, engolidas, se ajeitando aqui, espremendo, pessoas aflitas com as marmitas de comida grudada contra o peito...gente demais, o Parque lembra um formigueiro de formiga cabeçuda em correção ou de saúvas quando advinham que vai chover, só que uma multidão de gentes e não formigas ou tanajuras, tantas filas, para onde vão? e a música do barulho dos ônibus, das pessoas, das filas, dos carros, em tudo diferente da silenciosa música dos gerais do vale. Mas foi logo que chegou a minha vez, entrei no escritório e o moço sentado na escrivaninha, óculos de grau, olhava para cima, dedos na máquina de escrever, enrolou um papel branco no carretel da máquina, girou, pegou o papel pelas pontas até se dar por contente com a exatidão da operação que tinha feito e, meio seco, a voz rouca perguntou: nome?; humm?; nome, perguntei qual o seu nome?; Alcebíades; e ele trooooo! troooc! troooc! dedos duros batendo na máquina; será que escreveu meu nome direito, bate sem olhar as letras; onde nasceu? nasci em Indaiabira, no Vale...; trooo! trooooc! data de nascimento? nasci no dia oito de janeiro de 1944; troooc! troooc! batucava com agilidade na máquina preta, o papel branco sendo engolido no rolo – crec! crec!; nome do pai...

E o Parque se transformou em um novo lar!

Morávamos, os que viemos juntos no ônibus mais outros , em um acampamento feito de madeira, um salão comprido, fino, estreito com fileiras de camas, o telhado coberto com telhas de cimento e como fui um dos últimos me deram uma cama em cima, embaixo de mim dormia um negro forte do Maranhão, eu deitava com o nariz encostado na telha, calor bravo, barulho de chuva encostado no rosto, nos pés da cama a trouxa com o que havia trazido; ali se vivia: o refeitório dos empregados, café da manha na mesa comprida, banco de madeira , na bandeja de plástico vermelha vinha uma banana nanica, pão com manteiga e um copo de pingado, e depois do café tomado, ainda no refeitório quando o tempo era suficiente fumava cigarros: os que tinham mais dinheiro fumavam continental, outros mistura fina e ainda uns outros que fumavam o macedônia, cigarro ovalado, forte, de fumaça catinguda; já o almoço era no canteiro de obra, marmita de alumínio com arroz, feijão, abóbora, picado de carne e um saquinho de farinha para quem gostava e eu comia tudo, muito, faminto, achava boa a comida, tinha carne, o arroz misturado com o caldo do feijão, e no primeiro mês era tudo fiado, marcado na caderneta; para os que tinham recebido salário podiam comprar, no escritório, as fichas de plástico azul para o café da manha e as de plástico vermelho para o almoço; mas enquanto não se recebia o primeiro ordenado tinha um moço – profissão de apontador – que fornecia as fichas de plástico, tudo anotado em sua folha de registros e se cobrava no final do mês: tudo já descontado e anotado no envelope com os dinheiros, e o dia de pagamento era dia de bebedeiras e farras na zona da rua Aurora, ou aqueles que achavam alto o preço das putas da Aurora iam buscar amores e prazeres com as mulheres que se ofereciam na praça do Correio.

O que mais a gente fazia fora o trabalho?; a bem da verdade, a gente buscava construir alegrias nos sábados de tarde e nos domingos, dias de folga, a não ser em momentos de aperto da obra e, como dizia, nestas horas folgazãs o que mais se praticava, fora conversar e ouvir música no rádio, era jogar baralho – truco ou escopa de quinze, os mineiros gostavam mais de truco e os do norte apreciavam mais jogar escopa de quinze - e era uma algazarra de barulhos e gritos no salão do refeitório: truco! seis, seu ladrão! sim, sim, se jogava a dinheiro, apostas pequenas mas mesmo assim aconteciam ,muitas vezes, violentas brigas: era um que ladino roubava nas cartas, mas tinha um outro que percebia e depois dos xingamentos e ofensas era hora de mostrar o punhal que estava escondido debaixo da camisa, a polícia aqui de São Paulo prende se ver a homem com arma branca, e o feitor chegava bravo, e berrava: baianos filhos da puta, o que está acontecendo aqui, cambada de putos! e se fazia silêncio até que um mais corajoso dizia que era isso que estava acontecendo: foi promode do Aloísio que roubou no jogo e o feitor apagava as luzes do refeitório e expulsava a gente de lá. No primeiro sábado de folga fui com o Antônio da Chicuta, aquele mineiro de Montes Claros que sabia cantar versos, e dois outros sergipanos mais experientes de viver em São Paulo para o Mappin: era no Mappin, loja das maiores, com elevadores que uma moça manobrava e anunciava o que tinha no andar: segundo andar: linha branca, móveis de cama...os elevadores lotados, a gente se encostando um no outro, eu tinha medo da moça pensar que era sem-vergonhice minha, coxas duras, perfumes, e era no Mappin que se usava comprar rádios de pilha – daqueles grandões – que produziam som alto, pegava estações em am e fm, bom para se escutar - sem ruídos - a novela das oito logo depois da Voz do Brasil, que ninguém gostava, mas antes da Hora do Brasil, enquanto se esperava na fila a vez de tomar banho tinha sempre um rádio ligado e dava para escutar o moleque saci, voz estridente, ouvir o pracatá! pracatá! dos cascos dos cavalos galopando, os tiros – bum! prum! do revólver do Gerônimo matando os bandidos: era o seriado do Gerônimo, o herói do sertão; mas voltando a falar do Mappin, para poder comprar rádio a prestação – cinco vezes, dez vezes - tinha que ter três meses de firma e para comprovar se levava o envelope de pagamento e mostrar para o moço de gravata que ficava no quinto andar, foi o que disse o sergipano João do Avelino; mas foi nessa meu primeiro passeio pelo Mappin que vi a imensidão de papéis coloridos, bons para se escrever cartas de amor, e vi, também, uma caneta que conforme você apertava saia uma ponta de cor azul, ou preta, ou vermelha; voltei sozinho no Mappin, depois que recebi meu primeiro ordenado para comprar folhas coloridas, envelopes combinando com as folhas e uma caneta que escrevia em quatro cores, mas em antes disso eu, no refeitório, tinha lido, emprestado de um pernambucano, o livro “50 modelos de carta de amor” de onde eu tirava ideias para escrever para Dulcinéia, nos papéis coloridos que eu havia comprado no Mappin:

Parque Dom Pedro, 17 de novembro de 1969!

Espero que estas mal traçadas linhas te encontre em paz e gozando de saúde, junto a seus familiares...aqui tudo é muito grande, muitos ônibus e gentes, e é perigoso de atravessar as avenidas sem olhar direito porque os carros correm muito depressa e atropelam, sem tempo de brecar....acho que não vou poder ir para São João, mas em antes disso vou comprar e te mandar uma aliança bonita que vi e gostei por demais, delicada, o ouro brilhando e vou te dar para você vai usar no dedo da mão direita, ficando minha noiva, a aliança de ouro vai enfeitar sua mão e todo mundo ficar sabendo que vamos casar, ter filhos...minhas lembranças aos seus pais, que tanto quero e que Deus nosso Senhor proteja a todos com saúde e muito amor, e muitas saudades do seu Alcebíades!

E ia vivendo e vivendo no Parque Dom Pedro. Mas, de noite, quando eu escutava a novela das oito, O direito de nascer, e me misturava com os padeceres do Albertinho Limonta, ou da Mamãe Dolores e sofria com eles, eu, para encerrar o sofrimento, pensava bem alto comigo mesmo: isso não é de verdade, é uma novela e daí o pensamento meu voava para Jequitinhonha e posso contar para o senhor que era também desse mesmo jeito que eu sentia vivendo ali no Parque Dom Pedro, era como se fosse uma novela, uma não verdade, o meu mundo não era ali e batia uma saudade dos chapadões, da lua no cerrado, dos pássaros pretos, de caçar rolinha com a espingarda de chumbo ou com estilingue, de namorar Dulcinéia debaixo do pé de mangava, que escondia a gente – ela e eu – do mundo e a gente se beijava, se prometia, e era lá que eu sentia que era o real da vida.

Em junho de insuportável frio e manhas garoentas muitos viajaram de férias para as festas de São João! quem, como eu, não tinha um ano de casa – sem direito a férias - ficamos por ali, pelo parque Dom Pedro, fazia muito frio naquele mês de junho e eu mandei cartas escritas em papéis coloridos, bonitos e comprei e mandei um terço de presente para a minha mãe, lembranças para quem eu gostava de lá dos distantes, do longes cerrados, da vila e eu pedi ao Jonas que também levasse um embrulho para a Dulcinéia: uma carta de amor, uma aliança e um lenço de cobrir a cabeça.

Antônio da Chicuta e eu fomos juntos de Jonas até a rodoviária fazer companhia até ele pegar o ônibus para primeiro parar em Belo Horizonte e de lá pegar outro para Montes Claros para só depois pegar outro ônibus ou caminhão para chegar até Indaiabira: grandes festas de São João, fogos, foguetes, fogueiras; e eu e Antônio, não tenho receio de confessar, um pouco invejosos, querendo a gente também viajar, festejar São João, fomos se despedindo de Jonas, fazendo o sinal da cruz, se benzendo e pedindo – com fé do coração - que São Cristóvão protegesse o amigo e os presentes que ele levava junto em tão longa viagem; voltamos para o Parque Dom Pedro e foi então que Antônio cantarolou em voz baixa, voz afinada, bonita, só faltando a rabeca para acompanhar:

“Veio aquela grande seca

De todos tão conhecida;

E logo vi que era o caso

De despedir-me da vida.

No ano da seca grande,

Daquela seca comprida,

Secaram os olhos d’água

Donde era a minha bebida.” (1)

(1) “in” Vaqueiros e Cantadores, Luís da Câmara Cascudo.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

HISTÓRIAS DO ARCEBIDES -I– OS INÍCIOS!


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E respondendo a sua indagação de que lugar eu sou, das minhas origens de nascimento, digo: nasci longe daqui, estado de Minas, perto da Bahia, nos gerais, distante das veredas encharcadas que geram rios de águas cristalinas, e aproveito para contar - já que o assunto são as veredas - que a primeira vez que eu vi uma, de tão encantado fiquei com tanta verdura, não resisti tirei a botina e dei passos: pisei com os pés descalços nela – macia, grama verde - e meus pés sentiram a umidade da água, amassaram respeitosamente a grama, deixando meu rastro, mas isso quando eu já era moço feito e foi o Chico do seu Acácio quem me falou que apesar da grama verde, as veredas não são boas para pasto e explicou: quando a vaca ou o cavalo mordem – famintos - a verde grama e segura firme os ramos entre os dentes e depois levanta o pescoço para mastigar e comer, vem moita de capim arrancada em seu total, a grama verde junto com suas raízes esbranquiçadas, isso por causa da terra molhada e fofa, e os bichos - a vaca e o cavalo - não gostam muito da mistura da grama com suas raízes; aprendi , então, com o Chico do seu Acácio, que as bonitas e frescas veredas e seus buritis são boas para produzir os rios e riachos, para denunciar chuvas que vão cair, mas que para pasto mesmo de alimentação de gado não tem serventia, mas que também tem uso, quando seca o capim dourado, para se fazer cestas, colares parecendo feitas no ouro.
Mas estou fugindo do assunto, mania de sonhar acordado, fugir dos principais! E, então, como antes contava eu vivia lá pelos confins dos gerais de Minas, o Jequitinhonha com suas belezas e agruras: seca brava, roças de mandioca esturricadas, nada de raízes, tudo – cachorros, velhos, meninos - com as costelas pra fora, as mulheres com os peitos caídos, falta d’água, só farinha não dá conta de sustentar o corpo, sol de madrugada até o anoitecer e daí os cortantes ventos frios, a falta de coberta, um inferno! Mas, e as belezas? ah! as noites estreladas, poder olhar a estrela caindo e depressa – tem que ser enquanto ela cai – fechar as duas mãos em figa e – com os olhos fechados - fazer o pedido de tirar a sorte grande, bonito também ver a lua iluminando o cerrado, o pé de araticum fazendo sombra negra de noite, ouvir o cantar do pássaro preto, apreciar o canário da terra ciscar o chão procurando comida, e – no silêncio dos gerais – acompanhar o voo circular do urubu...bonitezas!
E tinha, então naqueles tempos deu ainda rapaz, a Dulcinéia, linda, mocinha de cabelos encrespados, olhos negros, lábios grossos, mãos e braços delicados, pernas roliças e os dois peitos pequenos parecendo maminha de cadela, cheirosos, o sorriso que mostrava os dentes brancos sem buracos de doenças, linda em sua voz baixa de falar e a gente namorava escondido, se beijava embaixo da sombra do pé de mangaba e com aquelas ondas que eletrificavam nossos corpos cada um se prometia para o outro, jurávamos eternas felicidades, sonhos, filhos, chuvas caindo molhando as roças, o mandiocal verde no fundo da casa; mas a seca brava não dava trégua, o sol quente secando o córrego do Urucuí, as pedras negras e quentes onde de antes corria água e se pescava gambevas, mandis e bagres, a triste música do silêncio do riacho seco, nem mais sapos nos brejos e o jeito era de ir para São Paulo, de ônibus, carteira de trabalho assinada, salário mínimo garantido, alojamento de graça – era assim o que prometia e garantia o moço loiro, delicado no falar, atencioso e explicador: e os perigos de São Paulo?; não há, desde que se tome alguns cuidados: na rua Aurora, a rua das putas, só ande pelo meio da rua, evite as calçadas porque os bandidos ficam nas portas e ao passar te puxam e te carregam pra dentro dos cafuas e lá tiram suas roupas, roubam seu dinheiro, seu relógio e podem te machucar de bater; mas eu não estou pensando em puta, o que mais quero é trabalhar, ganhar dinheiro para poder casar com Dulcinéia. E todos nós ali sentados nos bancos da igreja, o padre de testemunha, mostrando os documentos, perguntando, sendo respondido pelo moço loiro, educado: decidi, vou-m ‘embora!
A viagem do Jequitinhonha até parque Dom Pedro, em São Paulo, durou mais de dois dias. Ajeitei a trouxa com as mudas de roupas, o canivete, uma lanterna, e do dia que vim embora, do dia que despedi e parti, me lembro que na sala de casa tinha uma folhinha com o bloco dos dias, e era nosso costume de manhã se arrancar o dia de ontem, o dia que passou e ler o verso onde vinha escrito a vida do santo daquele dia; um costume: minha mãe, não conhecia as letras, pedia para eu ler e enquanto eu lia ela se ajoelhava e pedia para o santo olhar por nós, para cuidar de entupir o céu com nuvens negras de chuvas, molhar as plantas e fazer o renascer de águas o córrego do Urucuí, fazer o córrego encher até se escutar o barulhar das águas entre as pedras, e será que o Urucuí - cheio - vai ter, novamente, gambevas e mandis? e naquele dia, arranquei do bloco o dia vinte e nove de setembro, dia de São Gerônimo, e eu li que era o santo dos raios e dos trovões, e é por isso que quando arrelampeia no céu a gente faz o sinal da cruz, se benze, e pede proteção: São Gerônimo, santa Bárbara, a virgem, medo grande dos raios e trovões mas carecendo de chuvas, de águas. Então, eu viajei do Jequitinhonha um dia depois do dia de São Gerônimo e naquele dia minha mãe se ajoelhou e pediu ao santo que me guardasse dos perigos de São Paulo e que me ajudasse a voltar para os gerais o mais depressa, tão logo ganhasse dinheiro para comprar um pedaço de chão, plantar mandioca, arroz e ela chorou!
No início da viagem ocupei dois bancos do ônibus e acompanhava, pela janela, os gerais se indo, as árvores correndo, o céu azul sem nuvem, montanhas e chapadões que apareciam e sumiam, o ônibus corria estrada a fora, seriemas assustadas quequezando, o mundo passava na janela e quando chegou em Montes Claros, ou Diamantina, não me lembro direito agora, sentou ao meu lado um mineiro forte, quieto de falar, mas que sabia histórias de lobisomem, da mula sem cabeça e que recitava cantante, sem acompanhamento de rabeca, quadras de antigas histórias de reis, de rainhas e mesmo de santos daqui do Brasil, e não dava para saber se o Antônio da Chicuta, era esse o seu nome, inventava aquilo tudo de sua cabeça ou se tinha lido livrinhos de histórias porque o homem, sem ter frequentado escola, era letrado:
“Faz quarenta e tantos ano
que chegou no Juazeiro,
construiu uma Matriz,
botou na frente um cruzeiro ...
celebrou a Santa Missa,
deu bênção ao Mundo Inteiro...
É um pastor delicado,
é a nossa proteção,
é a salvação das alma,
o padre Cisso Romão,
é a justiça divina
da Santa Religião!”(1)

(1) "in" Vaqueiros e Cantadores, Luís da Câmara Cascudo.