“Foi lá nas banda do Brejo
muito bem longe daqui
qui essas coisa se deu
num tempo qui num vivi
nas terra qui meu avô
herdô do meu bisavô e pai seu
Dindinha contô cuan meu avô morreu...”
Auto da Catingueira, Elomar Figueira Mello.
Me desculpe, que mal lhe pergunte, mas como ficou o senhor sabendo que andei preso, vendo o sol nascer no quadrado das grades de ferro grosso, o sol entrando e gerava cruzes de sombra no assoalho do quarto da prisão? apois alguém tem que ter contado ao senhor, só pode ser assim! e pode me dizer quem foi? anram! ta’bom! o senhor me afirma que ficou sabendo em cantorias e falatórios de feiras; pode mesmo ser, naqueles tempos o caso foi muito falado.
Pois isso de fato ocorreu. Andei preso em cadeia! Conto!
E, já adianto, que essa é uma das dificuldades de se parlamentar as coisas da vida: quem conta tem uma música, quer contar em uma melodia, narrar os ocorridos em um ritmo mas quem escuta tem outra música, os ouvidos se cansam de escutar, quer rapidez nos finais, e o que narra, na ânsia de agradar, mistura seus tempos, confunde fatos, as ideias não se aclaram para ordenar corretamente os acontecidos e então careço de tempo, peço: um gole de pinga, da branquinha e o enrolar o fumo na paia de um cigarro vai me ajudar a rememorar os acontecidos, servido uma dose? não? pois asseguro que é das boas, feita da melhor cana, região das Salinas, pura pinga; e a hora que a fumaça do pito chegar no fundo nos pulmões, bom, as ideias vão se ajeitar em um modo de narrar. Tento, me escute.
Tão logo o dia de São Gerônimo apareceu na folhinha naquele ano que eu estava a viver no Parque Dom Pedro, labutando nas obras de um trem que iria correr por debaixo do chão, escondido nos escuros fundões, e que quando se realizasse de pronto ia carregar gentes como se fosse uma minhoca, uma minhoca com a barriga grávida de pessoas, mas como dizia, tão logo completei um ano de firma, procurei – no escritório – por aquele educado moço de mãos brancas, de fala mansa e argui de quando eu ia tirar minhas férias e Igor - era esse seu nome – me disse que eu já tinha direito aos trinta dias de férias, mas que as obras estavam atrasadas, que o governo estava cobrando os prazos e que ninguém ia gozar férias naqueles momentos; e quando acha que eu vou tirar minhas férias?; no momento não posso precisar, mas você receberá o aviso de férias sempre com um mês de antecedência; será que é no fim do ano?; não posso garantir, tudo vai depender do andamento da obra, a chuva tem atrapalhado; o aviso vem junto com o envelope do ordenado?; isso mesmo, este é o procedimento: o aviso de férias vai chegar junto com o envelope de pagamento, o apontador vai pedir para você assinar; obrigado; de nada, estou sempre as ordens, bom trabalho.
E quando chegava o fim do mês, dia do pagamento, eu pensava: agora vem o aviso das férias, mas nada e foi quando chegou o mês de abril eu pensei forte que era naquele mês que ia chegar o aviso, que a firma queria que eu gozasse minhas férias nas festas de São João, no vale, soltasse foguetes, pulasse a fogueira, bebesse licor de jenipapo, mas só veio o envelope do ordenado, os dinheiros, os descontos e não veio o aviso e eu perguntei ao Igor de quando eu ia tirar minhas férias e ele respondeu que não podia ainda saber com precisão, que os mais antigos tinham preferência de gozar, que tinha peão com até três férias vencidas, que eu carecia de ter paciência; sai tristemente ensimesmado do escritório, saudoso do silêncio do vale, uma vontade grande de encostar meu peito no corpo moreno Dulcinéia, sentir seu coração batendo nos peitinhos pequenos, rijos, me deu uma grande necessidade de mulher, as putas da praça do correio eram boas para um descarrego, mas minha necessidade era de maior monta: queria possuir Dulcinéia, fazer da moça mulher, casar na igreja, no cartório com papéis e padrinhos, festanças...
E garanto ao senhor que naquele mês de junho, dos que eu conhecia e que eram lá dos meus lados de Indaiabira, apenas um saiu de férias, e o sortudo foi o Anselmo, e ele foi carregado de cartas, presentes, retratos, lembranças. Muitos iam de férias e não voltavam, gostavam mais da solidão dos gerais do que do barulho do Parque Dom Pedro, e o moço do Mappin vinha até o canteiro de obra reclamar dos que não tinham pagado as prestações, que o Mappin estava tendo prejuízo, que ia colocar o nome dos devedores no cartório e o que ficasse com nome sujo nunca mais ia poder comprar em prestações, mas em Montes Claros e nem em Indaiabira tinha lojas que vendiam rádio a prestação e o Igor – apesar de que utilizar outro tom de voz, um sorriso meio escondido – falou que devíamos cumprir nossos tratos, pagar nossas contas direitinho; mas o Anselmo voltou: voltou e contou das festas de São João, dos que haviam morrido, da seca forte, contou que as pedras do rio estavam apontadas para fora d’água, quentes do sol, em nunca antes o rio esteve tão baixo e depois passou a entregar cartas, embrulhos que trouxe de Indaiabira e para mim veio um embrulho com uma carta de Dulcinéia e no meio do papel a aliança que eu havia mandado, a carta desmanchando o nosso namoro, e eu fiquei um pouco desesperado: mas Anselmo, o que houve com Dulcinéia, homem de deus, me fale?; e ele: o que se conta é que se enrabichou com o mágico do circo de Montes Claros, fugiu de casa e por lá, ninguém, nem sua mãe, sabe para onde foi, melhor esquecer, arruma outra.
Bateu uma tristeza grande, uma vontade grande de matar o mágico do circo, matar com punhal, furar o coração fundo; ou matar com minha espingarda de chumbo, esparramando chumbo na cara toda, o mágico ia morrer com a cara toda furada igual a quem teve varicela, ou matar com um cabresto apertano devagar o pescoço, a cara roxeando, o peito parando de subir e descer, matando, deixar morto debaixo de um pé de umbu pros urubus comerem a carne podre, com ele pendurado no umbuzeiro, furar os olhos, caçar os miolos lá dentro da cabeça: desgraçado, mágico de merda, filho do demônio, que o diabo te leve para os fundos do inferno e Dulcinéia não te quero mais, vou ficar com as putas da praça do correio, peitos enormes, moles, cobram para ir para a cama, mas são obedientes nos pedidos, gemem um gemido fingido: já vai gozar meu bem! goze! cadê o dinheiro meu bem?; tá no criado mudo, sábado eu volto; te espero, mineirinho lindo, meu amor!
De tarde na hora do banho, eu na fila esperando minha vez de usar o chuveiro escutei o Antônio da Chicuta cantar debaixo do chuveiro, enquanto ensaboava o corpo com perfumado sabonete:
“Fui lá
no indaiá,
pra comprar, ah,
roupa nova, suspensório, enxoval...
E vi moça
em janela
a chamar, ah:
- Ôi, vem cá, p’ra nós, se casar!”
E parece que querendo me consolar:
“Casar sério lá é triste,
namorar só é que é gostoso...” (2)
(2) “in” Manuelzão, João Guimarães Rosa
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