quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

HISTÓRIAS DO ARCEBIDES–II–O PARQUE DOM PEDRO!

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E o ônibus foi chegando em São Paulo ainda meio escuro, e as luzes da cidade, que se via bem lá longe, foram se misturando com a barra do dia que ia aparecendo no horizonte; uma vermelha barra – sinal de que o sol ia nascer bravo de quente - iluminava – clareando - as montanhas escuras, pondo o verde nas árvores e pouco depois já se viam – da janela do ônibus – prédios, casas, ruas com homens e mulheres andando depressa pelas calçadas, para onde iriam? eu teimava em conseguir ler as placas com o nome da rua, consegui: Rua Clélia, o ônibus sacoleja pela rua Clélia, calçadas, faróis nos cruzamentos, cheiro de pão nas padarias, mães segurando os filhos pelas mãos de certo carregando os pequenos sonolentos para a escola, era melhor estar na cama dormindo, mas têm que ir aprender a ler a somar; a rua Clélia é longa, as luzes nos postes se apagam e é só o sol que, agora, ilumina a cidade: e se via o chão da rua Clélia calçada por negras pedras, paralelepípedos gordos, quando o ônibus resolve se curvar para a direita e seguir – já cansado da viagem - por uma avenida sem paralelepípedos, asfalto liso, árvores plantadas no meio, carros vindo do lado de lá e o ônibus indo para frente. Pois então, foi assim, me lembro como se fosse hoje, e já são passadas dezenas de anos, que o ônibus vindo de Minas, do Jequitinhonha, chegou bufando a São Paulo e – exausto, fumegante – estacionou debaixo de uma árvore no Parque Dom Pedro, puf! puf! e o moço de mãos brancas, educado, fala mansa, em antes de descer, pede silêncio e dá suas ordens: chegamos e agora todos vocês antes de descer, peguem suas trouxas ou malas, recolham tudo o que trouxeram, vigiem se não esquecera nada no porta mala que está acima da cabeça e só depois destes cuidados é que podem descer e lá embaixo, na calçada, logo ali, frente ao ônibus, formar uma fila frente ao escritório; será no escritório que seremos fichados, a carteira ser assinada, cada um vai receber um par de botas, duas calças e duas camisas de brim, azuis, - uniforme de trabalho – e o capacete amarelo que é para colocar na cabeça e assim evitar acidentes.

Obedientes, apeamos do ônibus, cada qual se espreguiçando o mais que podia, coçando a cabeça, abrindo a boca do sono mal dormido, os joelhos e a bunda doendo da viagem demorada. Parque Dom Pedro: posso afirmar, com certeza ao senhor que sua primeira vista é um infinito de desconhecimentos nunca vistos: prédios altos, brancos, outros cinzas, árvores verdes, ônibus e mais ônibus parados com a porta aberta e filas de gentes entrando, engolidas, se ajeitando aqui, espremendo, pessoas aflitas com as marmitas de comida grudada contra o peito...gente demais, o Parque lembra um formigueiro de formiga cabeçuda em correção ou de saúvas quando advinham que vai chover, só que uma multidão de gentes e não formigas ou tanajuras, tantas filas, para onde vão? e a música do barulho dos ônibus, das pessoas, das filas, dos carros, em tudo diferente da silenciosa música dos gerais do vale. Mas foi logo que chegou a minha vez, entrei no escritório e o moço sentado na escrivaninha, óculos de grau, olhava para cima, dedos na máquina de escrever, enrolou um papel branco no carretel da máquina, girou, pegou o papel pelas pontas até se dar por contente com a exatidão da operação que tinha feito e, meio seco, a voz rouca perguntou: nome?; humm?; nome, perguntei qual o seu nome?; Alcebíades; e ele trooooo! troooc! troooc! dedos duros batendo na máquina; será que escreveu meu nome direito, bate sem olhar as letras; onde nasceu? nasci em Indaiabira, no Vale...; trooo! trooooc! data de nascimento? nasci no dia oito de janeiro de 1944; troooc! troooc! batucava com agilidade na máquina preta, o papel branco sendo engolido no rolo – crec! crec!; nome do pai...

E o Parque se transformou em um novo lar!

Morávamos, os que viemos juntos no ônibus mais outros , em um acampamento feito de madeira, um salão comprido, fino, estreito com fileiras de camas, o telhado coberto com telhas de cimento e como fui um dos últimos me deram uma cama em cima, embaixo de mim dormia um negro forte do Maranhão, eu deitava com o nariz encostado na telha, calor bravo, barulho de chuva encostado no rosto, nos pés da cama a trouxa com o que havia trazido; ali se vivia: o refeitório dos empregados, café da manha na mesa comprida, banco de madeira , na bandeja de plástico vermelha vinha uma banana nanica, pão com manteiga e um copo de pingado, e depois do café tomado, ainda no refeitório quando o tempo era suficiente fumava cigarros: os que tinham mais dinheiro fumavam continental, outros mistura fina e ainda uns outros que fumavam o macedônia, cigarro ovalado, forte, de fumaça catinguda; já o almoço era no canteiro de obra, marmita de alumínio com arroz, feijão, abóbora, picado de carne e um saquinho de farinha para quem gostava e eu comia tudo, muito, faminto, achava boa a comida, tinha carne, o arroz misturado com o caldo do feijão, e no primeiro mês era tudo fiado, marcado na caderneta; para os que tinham recebido salário podiam comprar, no escritório, as fichas de plástico azul para o café da manha e as de plástico vermelho para o almoço; mas enquanto não se recebia o primeiro ordenado tinha um moço – profissão de apontador – que fornecia as fichas de plástico, tudo anotado em sua folha de registros e se cobrava no final do mês: tudo já descontado e anotado no envelope com os dinheiros, e o dia de pagamento era dia de bebedeiras e farras na zona da rua Aurora, ou aqueles que achavam alto o preço das putas da Aurora iam buscar amores e prazeres com as mulheres que se ofereciam na praça do Correio.

O que mais a gente fazia fora o trabalho?; a bem da verdade, a gente buscava construir alegrias nos sábados de tarde e nos domingos, dias de folga, a não ser em momentos de aperto da obra e, como dizia, nestas horas folgazãs o que mais se praticava, fora conversar e ouvir música no rádio, era jogar baralho – truco ou escopa de quinze, os mineiros gostavam mais de truco e os do norte apreciavam mais jogar escopa de quinze - e era uma algazarra de barulhos e gritos no salão do refeitório: truco! seis, seu ladrão! sim, sim, se jogava a dinheiro, apostas pequenas mas mesmo assim aconteciam ,muitas vezes, violentas brigas: era um que ladino roubava nas cartas, mas tinha um outro que percebia e depois dos xingamentos e ofensas era hora de mostrar o punhal que estava escondido debaixo da camisa, a polícia aqui de São Paulo prende se ver a homem com arma branca, e o feitor chegava bravo, e berrava: baianos filhos da puta, o que está acontecendo aqui, cambada de putos! e se fazia silêncio até que um mais corajoso dizia que era isso que estava acontecendo: foi promode do Aloísio que roubou no jogo e o feitor apagava as luzes do refeitório e expulsava a gente de lá. No primeiro sábado de folga fui com o Antônio da Chicuta, aquele mineiro de Montes Claros que sabia cantar versos, e dois outros sergipanos mais experientes de viver em São Paulo para o Mappin: era no Mappin, loja das maiores, com elevadores que uma moça manobrava e anunciava o que tinha no andar: segundo andar: linha branca, móveis de cama...os elevadores lotados, a gente se encostando um no outro, eu tinha medo da moça pensar que era sem-vergonhice minha, coxas duras, perfumes, e era no Mappin que se usava comprar rádios de pilha – daqueles grandões – que produziam som alto, pegava estações em am e fm, bom para se escutar - sem ruídos - a novela das oito logo depois da Voz do Brasil, que ninguém gostava, mas antes da Hora do Brasil, enquanto se esperava na fila a vez de tomar banho tinha sempre um rádio ligado e dava para escutar o moleque saci, voz estridente, ouvir o pracatá! pracatá! dos cascos dos cavalos galopando, os tiros – bum! prum! do revólver do Gerônimo matando os bandidos: era o seriado do Gerônimo, o herói do sertão; mas voltando a falar do Mappin, para poder comprar rádio a prestação – cinco vezes, dez vezes - tinha que ter três meses de firma e para comprovar se levava o envelope de pagamento e mostrar para o moço de gravata que ficava no quinto andar, foi o que disse o sergipano João do Avelino; mas foi nessa meu primeiro passeio pelo Mappin que vi a imensidão de papéis coloridos, bons para se escrever cartas de amor, e vi, também, uma caneta que conforme você apertava saia uma ponta de cor azul, ou preta, ou vermelha; voltei sozinho no Mappin, depois que recebi meu primeiro ordenado para comprar folhas coloridas, envelopes combinando com as folhas e uma caneta que escrevia em quatro cores, mas em antes disso eu, no refeitório, tinha lido, emprestado de um pernambucano, o livro “50 modelos de carta de amor” de onde eu tirava ideias para escrever para Dulcinéia, nos papéis coloridos que eu havia comprado no Mappin:

Parque Dom Pedro, 17 de novembro de 1969!

Espero que estas mal traçadas linhas te encontre em paz e gozando de saúde, junto a seus familiares...aqui tudo é muito grande, muitos ônibus e gentes, e é perigoso de atravessar as avenidas sem olhar direito porque os carros correm muito depressa e atropelam, sem tempo de brecar....acho que não vou poder ir para São João, mas em antes disso vou comprar e te mandar uma aliança bonita que vi e gostei por demais, delicada, o ouro brilhando e vou te dar para você vai usar no dedo da mão direita, ficando minha noiva, a aliança de ouro vai enfeitar sua mão e todo mundo ficar sabendo que vamos casar, ter filhos...minhas lembranças aos seus pais, que tanto quero e que Deus nosso Senhor proteja a todos com saúde e muito amor, e muitas saudades do seu Alcebíades!

E ia vivendo e vivendo no Parque Dom Pedro. Mas, de noite, quando eu escutava a novela das oito, O direito de nascer, e me misturava com os padeceres do Albertinho Limonta, ou da Mamãe Dolores e sofria com eles, eu, para encerrar o sofrimento, pensava bem alto comigo mesmo: isso não é de verdade, é uma novela e daí o pensamento meu voava para Jequitinhonha e posso contar para o senhor que era também desse mesmo jeito que eu sentia vivendo ali no Parque Dom Pedro, era como se fosse uma novela, uma não verdade, o meu mundo não era ali e batia uma saudade dos chapadões, da lua no cerrado, dos pássaros pretos, de caçar rolinha com a espingarda de chumbo ou com estilingue, de namorar Dulcinéia debaixo do pé de mangava, que escondia a gente – ela e eu – do mundo e a gente se beijava, se prometia, e era lá que eu sentia que era o real da vida.

Em junho de insuportável frio e manhas garoentas muitos viajaram de férias para as festas de São João! quem, como eu, não tinha um ano de casa – sem direito a férias - ficamos por ali, pelo parque Dom Pedro, fazia muito frio naquele mês de junho e eu mandei cartas escritas em papéis coloridos, bonitos e comprei e mandei um terço de presente para a minha mãe, lembranças para quem eu gostava de lá dos distantes, do longes cerrados, da vila e eu pedi ao Jonas que também levasse um embrulho para a Dulcinéia: uma carta de amor, uma aliança e um lenço de cobrir a cabeça.

Antônio da Chicuta e eu fomos juntos de Jonas até a rodoviária fazer companhia até ele pegar o ônibus para primeiro parar em Belo Horizonte e de lá pegar outro para Montes Claros para só depois pegar outro ônibus ou caminhão para chegar até Indaiabira: grandes festas de São João, fogos, foguetes, fogueiras; e eu e Antônio, não tenho receio de confessar, um pouco invejosos, querendo a gente também viajar, festejar São João, fomos se despedindo de Jonas, fazendo o sinal da cruz, se benzendo e pedindo – com fé do coração - que São Cristóvão protegesse o amigo e os presentes que ele levava junto em tão longa viagem; voltamos para o Parque Dom Pedro e foi então que Antônio cantarolou em voz baixa, voz afinada, bonita, só faltando a rabeca para acompanhar:

“Veio aquela grande seca

De todos tão conhecida;

E logo vi que era o caso

De despedir-me da vida.

No ano da seca grande,

Daquela seca comprida,

Secaram os olhos d’água

Donde era a minha bebida.” (1)

(1) “in” Vaqueiros e Cantadores, Luís da Câmara Cascudo.

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