terça-feira, 23 de agosto de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA - 8–PAINEL DE MEMÓRIAS -1 -


O que vou contar é como se fosse um painel - não sei vai ficar bonito ou feio, embora gostasse de tê-lo alegre e vivo – de mosaicos coloridos, desiguais em suas formas, sem disciplina e método em sua seleção, agrupados displicentemente, um depois do outro, misturando cores, datas, pessoas, locais e sentimentos; o único elo que os une é serem, todos, frutos da memória da caminhada pelos nortes da Espanha.

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O SOL ÀS COSTAS:

Deram sábios os peregrinos que, há séculos, sem o guia “El Camino de Santiago em Tu Mochila”, muito menos sem GPS, provavelmente sem mesmo uma mochila às costas, mas seguramente com um pesado cajado às mãos, que os protegia dos animais e os ajudava a vencer as fortes subidas ou longas e pedregosas descidas. Durante o dia era o sol que os guiava; à noite, provavelmente eram a lua e as estrelas, estrelas agrupadas e formando, aqui no norte da Espanha, acima da linha do Equador, desenhos diferentes dos que costumo contemplar em minhas caminhadas pelo Caminho da Fé ou da Luz.

Peregrinar pelo Caminho de Santiago, partindo de St-Jean-Pied-de-Port em direção a Santiago de Compostela é uma viagem, em uma linha reta imaginária, de Leste parra Oeste. E foi assim, observando o sol, que os remotos e fervorosos peregrinos, sem mapas e guias desenharam, fundamentados na lei da Economia das Probabilidades, o Caminho de Santiago de Compostela; a fé a movê-los em suas aventuras e o Sol e suas sombras como guias orientadores.

Ao caminhar do Leste para o Oeste, de manhã você tem o Sol às suas costas e sua longa sombra projetada para o Leste; e se você caminha buscando a direção de sua cabeça, o valor e a importância das setas amarelas, que apontam aos peregrinos a direção a seguir rumo a Santiago, desenhadas em árvores, pedras e muros, perdem em parte sua função orientativa.

É o sol e a sua sombra que te guia e isso, no meu caso, ficava comprovado, quando às vezes, cansado, via uma seta amarela em uma árvore ou em uma pedra apontando para uma direção diferente daquela que o Sol me orientava: era então que, nervoso, tinha certeza que, ou havia algum obstáculo intransponível à frente - um rio, por exemplo -, ou estaria a dar uma volta desnecessária; e, quando se está cansado, creio já ter dito isso, qualquer quilômetro a mais faz diferença.

Mas, afirmo e retifico: ter o Sol aquecendo suas costas e sua sombra projetando a direção a seguir é reconfortante e nos leva a passeios e devaneios internos indescritivelmente prazerosos em sua primitividade.

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EM NOME DO PAI...

Você já mudou de casa?

Se sim, sabe das dificuldades de adaptação nos primeiros dias que seguem à mudança. Onde está a pasta de dente? E a luz do quarto, acende onde?

Agora imagine o que ocorre quando, a partir de certo momento, todas – eu digo todas – as suas coisas e pertences estão contidos em uma mochila. A escova de dente? Na mochila. Remédios de uso contínuo? Na mochila. Saco de dormir? Na mochila. E a cueca? Na mochila, oras, onde mais se poderia estar.

A mochila é a sua casa às costas.

Assim, principalmente nas primeiras manhãs, início da caminhada, com o organismo e o espírito ainda em processo de adaptação, a arrumação da mochila se torna um verdadeiro Deus nos acuda. Se arruma, se ajeita, e, ao final se vê que a fralda, usada como toalha, estava esquecida acima do beliche, e então, a mochila já fechada tinha que ser novamente aberta e, a qualquer custo, sem ordem nem cuidado se enfiava a fralda meio úmida sobre a camisa seca que seria a “muda” para a troca do dia.

E, quase sempre, com a mochila novamente fechada vinha a dúvida: “será que não esqueci alguma coisa?” Uma operação “kafkaniana” era iniciada: verificar, reverificar e conferir os bolsos; com a mochila já às costas virar o corpo e olhar para o beliche desfeito para ver se não havia esquecido alguma coisa, voltar ao banheiro onde havia escovado os dentes, voltar ao beliche para remover o travesseiro do lugar e checar, novamente, se não havia esquecido alguma coisa debaixo...

E era então um tempo que era gasto, muito ou pouco, não importa, e que passavam comigo dando volta e rodeando o beliche e a mochila, olhando estupidamente para os lados, para o alto e para baixo, se sentindo como um peru dando voltas em torno dele mesmo, abobalhado.

E o pior: muitas vezes, após ter andado um quilômetro ou dois era assombrado pela dúvida: será que peguei, mesmo, no banheiro e coloquei na mochila a “nécessaire” com a escova de dente, pasta e aparelho de barbear? Para eliminar a dúvida - torcendo para que não tivesse que voltar ao albergue a procura da nécessaire – e continuar a caminhada com o espírito em paz era parar, abrir a mochila e, aliviado, ver que a nécessaire com a escova e pasta de dente estava espremida abaixo do saco de dormir; espremida, mas estava lá, e é o que importa. Fechava-se a mochila, aproveitava e bebia um pouco d água, colocava novamente a mochila as costas e seguia o caminho.

Outra cuidado e preocupação eram com a, ou com o pochete – não sei se é masculino ou feminino esta palavra e prometo logo consultar o Houaiss e acertar a frase, isto se o corretor ortográfico, com ou sem minha permissão, não o fizer por mim - . Voltando ao assunto: era nesta pequena bolsa – seguramente pequena bolsa é feminino – que o passaporte, o "travelcheque", o cartão de crédito, a passagem de volta e uns trocados ficavam guardados; então, apesar da relativa segurança do caminho, diziam alguns peregrinos de que todo cuidado era pouco e por segurança, deveríamos ter a ou o pochete sempre presa ou preso à nossa barriga, mesmo a noite para dormir, o que não deixava de ser incômodo. Aprendi, na segunda ou terceira noite de caminhada, em Pamplona, com uma simpática italiana que o melhor para se guardar a pochete - enquanto não criar coragem de ir ao Houaiss ou o corretor automático de texto não de o ar da graça, vamos resolver , por nossa conta e risco que pochete é feminino, e fica assim: a pochete - à noite, na hora de dormir, era não deixá-la presa à cintura, como eu fazia, mas sim solta no fundo do saco de dormir. A pochete ficava aos seus pés, presa no saco com os eficientes zíperes que nos envelopavam dentro do saco, como uma múmia egípcia. E, verifiquei que era mesmo melhor: seguro e não incomodava o corpo durante o sono.

Outra coisa: e onde deixar os óculos quando se dorme no alto do beliche? Foi um holandês, com uma miopia de dar inveja ao Sartre, o autor da solução: guardava os óculos, junto com os chinelos, sob a cama debaixo: não havia perigo de ser pisoteado.

Na quarta ou quinta manhã, com o organismo e a alma já melhor adaptados, após a arrumação da mochila, buscava racionalmente imaginar que havia três coisas realmente importantes e com as quais eu deveria ter o máximo cuidado para não esquecer: meus óculos, a máquina fotográfica que levava a tiracolo e a pochete com os documentos e os dinheiros. E então, ao invés de ficar como um peru, dando voltas em torno de mim mesmo a procura de possíveis esquecimentos, colocava primeiramente a mochila às costas e checava com o apoio sensorial das mãos se os óculos estavam na testa, logo mais abaixo se a máquina estava pendurada no pescoço e mais abaixo ainda, acima do ventre, se a pochete estava presa na barriga.

E foi então que descobri que esta minha nova rotina de checagem havia sido confundida por peregrino japonês como uma persignação de minha parte: o pequeno e magro peregrino japonês imediatamente cerrou os olhos e, piedosamente, persignou-se.

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OS CORVOS

Neste Caminho de Santiago de Compostela ouve-se menos cantar de pássaros quando comparado com as caminhadas que realizei aqui no Brasil: tanto no Caminho da Fé, como no da Luz.

No entanto, me encantou no Caminho de Santiago ouvir, pela primeira vez em minha vida, o Cuco. Havia dias em que caminhava horas e horas com um Cuco, me acompanhando ao longe, emitindo seu cantarzinho de tantas memórias. Mas como memórias se foi a primeira vez que ouviu o Cuco? Verdade: mas tinha na casa de um tio meu, um relógio de parede com uma longa corrente de dar corda dependurado, e o mais importante: de uma janelinha, nas horas cheias, saia o passarinho, gracioso, cantando Cuco! Cuco! As duas horas saia e cantava por duas vezes e assim sucessivamente; o melhor eram as doze horas: o Cuquinho saia mostrando a carinha, olhinhos negros e cantava por doze vezes o melódico Cuco! Cuco! Cuco!

Quando ia a casa deste tio de tudo eu fazia – tratava dos porcos, debulhava milho, buscava água na mina – para, em troca, ter o privilégio e autorização de ser eu o que daria corda no pequeno e delicado relógio. Para tal tinha que subir em uma cadeira, alcançar à argolinha da corrente e puxá-la até o seu final. Cumprida a deliciosa obrigação ficava à espreita aguardando a saída do cuco para anunciar a hora.

Mudando de passarinho.

No Caminho de Santiago tem e vi muitos corvos e seu cantar agudo, misto de um oboé um pouco mais grave que o sonoro instrumento e uma flauta de taquara rachada.

Villadangos Del Páramo é uma pequena vila, com aproximadamente seiscentos habitantes, próxima a León. Foi lá em Villadangos que vi e ouvi um bando de “cuervos”, provavelmente, em processo de acasalamento; voavam curto, rasante em volta de enormes eucaliptos cantando ao todos ao mesmo tempo em uma sinfonia que me parecia deliciosamente sensual.

Me livrei da mochila, achei uma pedra para sentar e ao som da sinfonia dos corvos e fiquei a lanchar: tinha reservado para o lanche pão rústico e queijo de cabra. Enquanto comia me lembrei, pela segunda vez no Caminho, do Carlos Saura. Aos mais novos uma informação: Saura, um sensível, belo e premiado cineasta espanhol dos anos 80. Em outro momento do Caminho, havia rememorado um de seus filmes ao avistar, em meio a um local totalmente isolado, uma belíssima e simples embora suntuosa residência. Veio à memória um de seus filmes, com a sempre presente Geraldine Chaplin no papel principal e a vida transcorrendo em uma mansão isolada do mundo; em uma das cenas mais fortes o “dono” da casa acaricia de um lado da vidraça os seios da empregada que, do lado de fora limpava as vidraças. Penso que este filme foi o Ana e os Lobos; mas o pão rústico, o queijo de cabra e aquela sinfonia de corvos me lembrou de outro clássico de Saura: “Cria cuervos”, belíssimo.

A primeira vez que ouvi o cantar estridente de um corvo, foi também no cinema: um filme japonês, dos anos sessenta: “O corvo amarelo”, muito triste.

E mais uma recordação de Villadangos Del Páramo. Pedro Páramo é o título de um belíssimo conto romance do mexicano Juan Rulfo que li várias vezes e só agora, aos sessenta e tantos anos, quase setenta, aqui na Espanha é que vim saber que “páramo” é um planalto deserto; aliás, para os espanhóis, em sua maioria, é a região dos “tristes paramos”, embora para mim, em minhas lembranças estão mais para “solitários” páramos do que para “tristes”. Vejam que caminhar também é cultura e é o que sempre digo para justificar os gastos e os dias com minhas andanças!

Aliás, continuando, ma s sem nada a ver com Santiago de Compostela. Na década setenta eu havia resolvido reler Sagarana, Grandes Sertões, Primeiras Histórias entre outros livros do Guimarães Rosa. Na livraria da antiga rodoviária, indo para Ribeirão Preto, comprei o Tutaméia do mesmo autor, com o propósito de ler para amenizar as cinco ou seis horas de viagem. Foi o que aconteceu: a viagem passou rápida. Na hora do almoço, á em casa, papo vem, papo vai minha mãe diz: “e foi então que seu pai, o Juca, vendeu o sítio que foi de meu pai, seu avô, por uma tutaméia”. Àquela hora, há mais de quarenta anos, me surpreendeu a precisão do sinônimo para tutaméia; agora confirma minha tese: viajar e caminhar é cultura: foi melhor que buscar no Houaiss, com o qual ando em débito e é na verdade, uma desculpa para inventar novos caminhos!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS - 7 - A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE BOADICÉIA E CARÁTACO–III–FINAL: O SONHO

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Cebreiro, uma pequena e por demais de linda aldeia medieval, com seus vinte e nove habitantes - “o Orlando está mesmo velho, agora deu de esquecer-se de escrever os mil na frente dos números”, dirão os mais apressados e eu respondo “não, não me esqueci, não: são realmente vinte e nove habitantes e não vinte e nove mil” - fica em um dos pontos mais alto do Caminho: quase mil e trezentos metros. E esta pequena aldeia possui uma muitíssima bem conservada igreja construída no século nove: toda de pedra, o que lhe dá um aspecto de solidez, parecendo querer confirmar sua perenidade, elegante com suas portas em arco, sua torre majestosamente simples, seus sinos de bronze badalando a cada hora do dia. Aliás, outra memória inapagável do Caminho são os sinos das igrejas teimando em nos contar, com suas badaladas, as horas do dia ou da noite; e assim, como nos tempos em que ouvia as badaladas do sino da igreja matriz da pequena cidade onde nasci ou mesmo, ouvindo pelo rádio o "dém", "dém", "dém" dos sinos do Mosteiro de São Bento anunciando à hora certa, me peguei, várias vezes, neste Caminho de Santiago, contando com a ajuda dos dedos das mãos as badaladas dos sinos e conferindo, mentalmente, qual era a hora do dia ou da noite em que eu estava a viver.


Do Albergue Municipal de Cebreiro construído em estilo montanhês, um pouco fora da vila, grande e confortável com mais de cem camas, a vista é belíssima; se vê, abaixo, um “mar” de montanhas: sinuosas, verdes, negras, recortadas por estradas, aqui e ali pingam brancas construções isoladas apontando que há vida naquela imensidão de mundo. Toda esta bela visão, me disse um velho peregrino japonês, que fazia o caminho pela segunda vez, é, normalmente, coberta, por uma grossa, branca e densa neblina, o que não ocorria naquele dia, àquela hora, em que tudo se enxergava, se via longe, quase o infinito.


Cheguei a Cebreiro após haver caminhado por volta de trinta quilômetros, distância entre esta vila medieval e Villafranca De Bierzo onde havia pernoitado; o cansaço, ao chegar a Cebreiro, se explica tanto pelos trinta quilômetros caminhados, como pela diferença de altitude entre estes dois pontos percorridos: mais de oitocentos metros.


Resumindo para não cansar e encompridar desnecessariamente a história: cheguei cansado a Cebreiro.



No Albergue Público, um banho restaura, em parte, as forças e o “menu do peregrino”, a nove euros, na Mesón de Anton, completa a restauração e me enche de ânimo para passear pela vila, conhecer a igreja e uma casa, do século IX, meticulosamente restaurada e que funciona como um “museu” antropológico, forçando nossa imaginação até a vida que levavam há séculos e séculos atrás os seus habitantes; e devia ser uma vida de permanente luta: de um povo em busca contínua por alimentos, na labuta para manter crepitando a lenha no fogão para cozinhar seus caldos e se esquentar durante os longos invernos gelados, cheios de neve.



Depois do passeio pela vila, voltei ao albergue disposto a cumprir a obrigação de lavar minhas roupas, mas, e mais uma vez tem o “mas” nestas minhas andanças, a preguiça, talvez fruto do cansaço, me levou para a cama: dormi e sonhei.



Vou contar o sonho, que foi assim:



Encontrávamos, em meu sonho, Boadicéia, Carátaco, Kretzschamar com seu cachorro “Joselito” e eu sentados no chão, descansando sob a sombra de uma enorme uma enorme árvore; próximo a nós corria um caudaloso rio e ouvíamos deliciosamente concentrados, a Dança Ritual do Fogo, trecho primitivo e bárbaro do El Amor Brujo, de Manuel de Falla.



Percebi que mesmo durante tão concentrada audição, Joselito, por ser cachorro e por isso, talvez, não gostar de música, mostrava-se inquieto, e que em dados momentos não se continha em sua ansiedade e uivava, apontando com o focinho negro para as altas montanhas vermelhas, esburacadas em seus picos por cavernas imensas. E foi então que, inesperadamente, todos nós, ao mesmo tempo, pensamos a mesma coisa e fomos decididamente conduzidos até as cavernas pelo gordo Carátaco, com o cão Joselito à frente de todos.



Em meu sonho Boadicéia carregava seu enorme cajado, enfeitado com flores de todas as cores e tamanhos; Carátaco vestia suas roupas apertadas, a barriga querendo sair para fora, calçava sandálias de couro que deixavam à mostra seus dedos gordos e suas unhas compridas; o jovem suíço vestia-se como um típico peregrino: calças e jaqueta cinza da Solo, botas Salomon, e carregava, às costas, sua enorme mochila Deuter. Não lembro como eu me vestia, mas devia ser com uma das minhas duas “mudas” de roupa que usei para percorrer o Caminho.



E assim que chegamos às cavernas, parecidas com enormes bocas abertas no pico de uma enorme e gorda montanha vermelha, o dia se transformou em noite. E escureceu. Para nos aliviar da escuridão que parecia um breu, Boadicéia tirou de uma sacolinha de veludo, presa a sua cintura, toda bordada com lantejoulas, seis vaga-lumes, e ofereceu dois para cada um de nós. Tirou, depois, do fundo da mesma sacolinha de veludo bordada com lantejoulas, uma boa quantidade de lacraias e, com elas, fez um colar para o Joselito.



Para melhor entendimento do sonho que estou a contar vou precisar abrir parênteses e falar da diferença entre o que chamo de “lacraia” e o vaga-lume. Erradamente, agora eu sei, em minha infância chamávamos de “lacraia”, um besouro que é, na verdade, apenas outra espécie de vaga-lume. Explicando: caçávamos e brincávamos com dois tipos de vaga-lumes: um, o maiorzinho, que lembra mais um besouro compridinho e dispõe de dois “faróis” que permanecem sempre acesos à noite e outro, que chamávamos “lacraia”, mas vim, a saber, quando estudava no ginásio, que era também um vaga-lume; esta espécie, a “lacraia”, tem no abdome órgãos luminescentes que ficam a piscar. Tanto o vaga-lume com os dois faroizinhos na cabeça quanto o que ficava piscando na escuridão da noite, nós caçávamos balançando tições acesos e cantando: "vaga-lume tém tém seu pai t’áqui sua mãe também"; e assim enchíamos vidros com os vaga-lumes que tinham os faroizinhos na cabeça. Já “lacraia”, menor, que ficava piscando no escuro, e lembrava um marimbondo, pegávamos e esfregávamos com força o seu abdome em nossas camisas ou no peito e assim, escrevíamos nomes ou desenhávamos figuras que brilhavam à noite.



Os vaga-lumes maiores ficavam presos nos vidros por uns dias até que nossas mães, penalizadas com a sorte dos bichinhos, nos obrigavam a soltá-los no brejo, perto do cemitério; tinham, portanto, melhor sorte que as lacraias que eram espremidas e mortas para enfeitarmos nossos peitos ou nossas camisas com rabiscos que logo se apagavam a sua fosforescência. Fecham-se os parênteses.



E então, com a claridade dos vaga-lumes em nossas mãos e do pisca-pisca do colar de lacraias no pescoço de Joselito, fomos entrando na primeira caverna, guiados por Carátaco. Em fila indiana fomos nos enfiando caverna adentro e encontramos um enorme salão, com pé direito altíssimo, e que tinha em suas beiradas, junto às paredes da caverna, bancos de barro cobertos com almofadas de seda, convidando ao descanso. Joselito, agora, calmo, passeava pelo salão da caverna, tudo farejando, com seu colar de lacrais piscando, parecendo uma moderna árvore de natal. Kretzschamar sentou-se em uma beirada da sala e iniciou, ritualmente, a preparação um de seus cigarros que passou a fumar impregnando a sala com o cheiro amargo da fumaça de maconha, inebriando a todos.



A sala da caverna cheia de fumaça e com o pisca-pisca dos vaga-lumes no pescoço do Joselito me fazia lembrar os antigos inferninhos da Rua Aurora.



Kretzschamar passou seu cigarro para Boadicéia, tirou de dentro de sua mochila uma flauta doce e começou a tocar.



E ao som da melodia simples, primitiva, Boadicèia se pôs a fumar, a dançar e a cantar: - - “Meus avoengos se aventuraram do Reno até os sopés dos Pirineus; nem as tão altas e espinhosas montanhas os detiveram, e a Hispânia não resistiu à força e a coragem de nossos ancestrais germanos.” Dançava sensualmente, passos lentos, pronunciando cada palavra com os lábios abertos, dentes brancos à mostra, seios arfando no peito, obedecendo ao ritmo da melodia, pescoço erguido, olhar desafiador, convidando-nos à dança, à orgia.



Foi quando a melodia tão simples e primitiva da flauta do jovem suíço foi repentinamente substituída por outra melodia: esta pírrica, que com seu ritmo forte, inundou a caverna com sons de tambores e de tubas; Carátaco, contagiado pela música, levantou-se do banco e demonstrando uma agilidade incrível para corpo tão pesado e gordo iniciou uma dança estranha, bela, e cantou desafiando Boadicêia:



- “Vocês germânicos e mouros tomaram e devastaram nossa terras, nossas casas, nossas mulheres, nossas vidas; nem a oferenda de todo nosso ouro e de nosso sangue foram suficientes para a sua retirada; e nos escravizaram, a nós e aos nossos filhos e aos nossos reis; mas Deus, fez surgir Roldan e El Cid, que conduzidos por um exército de anjos, nos libertou”



E no meio do salão da caverna Carátaco e Boadicéia se uniam na estranha e sensual dança e foram, aos poucos e delicadamente, despindo de suas roupas, mostrando corpos tão diferentes em sua beleza: a esbelteza rígida do corpo de Boadicéia se misturando às gorduras das banhas do enorme corpo de Carátaco.



Boadicéia disse: “Carátaco: segundo um escritor português, quando a península se deslocou do continente e se transformou em uma enorme jangada de pedra, um grupo peregrinou por aqui, por perto dos Pirineus. E naquela longa viagem que empreenderam na jangada foi gerado uma criança, fruto do amor de um velho com uma jovem. E é o que quero, agora: um filho seu! E saiba que este seu filho não ficará os longos nove meses em meu ventre, mas sim e apenas os nove dias que faltam para eu caminhar até Santiago, onde a criança nascerá.”



E abraçou fortemente a Carátaco que correspondeu ao seu abraço. Respeitosamente todos os vaga-lumes fecharam os olhos de seus faróis e a sala ficou iluminada apenas pelos piscares das lacraias envoltas no pescoço de Joselito.



O som de amor emitido pelos amantes misturou-se à fumaça e ao silêncio da flauta doce, agora muda no colo do peregrino alemão.



E um silêncio sepulcral tomou conta da sala: tão silêncio que era possível ouvir as batidas de nossos corações e os seus pulsares misturados às nossas respirações ofegantes. Descansados ficamos a ouvir o silêncio e a enxergar o breu da escuridão até o momento em que os vaga-lumes foram abrindo novamente seus faróis e a luz, no início fraca, inundou toda a sala e me vi a cantar:



“Ai clariô ai ai clariô


Ai clariô ai ai clariô



Ai clariô ai ai clariô



Purriba do lajedo o luá chegô”.



E enquanto eu cantava e assobiava e dançava a canção do Elomar, a luz da lua invadia a caverna forçando a todos a cerrar os olhos, tamanha a imensidão de claridade; e os vaga-lumes e as lacraias, que gostam da escuridão, voaram para fora da caverna e voltaram a acender seus faróis e seus pisca-piscas lá fora, indicando o caminho que deveríamos percorrer depois, na volta para a cidade.



E então foi que acordei com a intensa luz do sol das sete horas da noite invadindo as janelas do albergue e incendiando os meus olhos com sua claridade e calor.



Acordei, esfreguei os olhos, espreguice-me e assim acabou-se a história e morreu a vitória.