segunda-feira, 11 de maio de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VIII - E SE CONTA DOS DIAS EM QUE NENZÃO VIVEU EM CANUDOS!


 


 

Muito barulho em Canudos: os ganidos dos cachorros, os berros da criança pedindo as tetas da mãe ocupada em lavar roupas sujas nas sujas águas do Vaza Barris, os resmungos sofridos e lamentosos dos velhos com seus reumatismos e o cantar esperançoso da mocinha de peitos duros, empinados: uma mistura de sons nos ouvidos acostumados ao silêncio da vida de vaqueiro, orelhas mergulhadas no sertão a escutar um berro aqui outro acolá da vaca mojando, um distante mééééémé! do cabrito trepado nas pedras do morro e ali, na vila dos Canudos, era aquela musical barulheira, posso dizer, e aquilo encantava: me fazia sentir mais vivo e acendeu dentro do peito uma esperança que – minha pouca inteligência – eu não sabia qual era, mas era uma boa esperança de gentes, de barulhos e de cheiros; era como se eu tivesse, agora, vivendo nas festanças uma feira de gado ou em uma embriagada vaquejada. Gostava daquilo.

Quando estava no segundo dia em Canudos, Estevo reuniu cinco cabras fortes e ordenou que era para eles, mais eu, construir uma tapera para eu morar enquanto estivesse por ali e fui ainda cedinho, o sol escondido no vermelho horizonte, conhecer a data que tinha escolhido: era uma tripa de terreno, dava de fundos para o Vaza Barris, de vizinhança com outras infinitas taperas cobertas com sapé, com escuras paredes de pau a pique desenhando tortas ruelas; e ali levantou-se a minha tapera: quarto e cozinha misturados, duas janelas e o vão para a porta de entrada fechada nos inícios por um cobertor mode vedar a claridade da lua durante a noite e a do sol - e dos curiosos olhares do Bentinho, este sempre a andar pela vila na busca de novidades e dar os recados das novidades ao Conselheiro - para os quentes dias de calor em Canudos: ficava pouco por lá dentro: gostava mais das ruas e do vazio de construção que sobrou frente à branca igreja, acocorar perto da enorme cruz de madeira, imaginando lá dentro da igreja o Conselheiro e as beatas e o Bentinho que era o diácono do Conselheiro para as liturgias religiosas e seu ajudante de ordens, tão poucas ordens, dizia Bentinho: o homem pouco come, banho poucos e quase nunca troca a sua muda de roupa, uma bata azul comprida, de tosco algodão, encardida, sebenta nas alturas do pescoço e nas mangas, santo homem. Santo homem? seria o velho e magro Conselheiro, rosto vincado e tingido de uma cor de amarelo que fazia lembrar rosto de defunto, que deus me livre e guarde de pensar aquilo; mas criei coragem e enquanto ajudava a subir as paredes da tapera para perguntar – voz baixa – para o Anor do Quinquim, um curandeiro que conhecia os segredos das drogarias das raízes e das folhas e das frutas das matas, e como dizia antes perguntei baixinho para o Anor se ele achava que o Santo Homem Conselheiro seria mesmo capaz de vaquejar as nuvens do céu, ajuntando as pequenas brancas nuvens e encurralando todas elas em um curral de tábuas construído pela força da fé de sua imaginação, realizando com seu pensar um enorme curral de negras nuvens, aquosas, líquidas nuvens e fazer despencar águas para molhar o sertão e inundar as margens brejentas do Vaza Barris? seria, você acredita mesmo Anor, o Conselheiro tão fortemente assim milagroso?; e Anor, que diziam na vila ser por demais afeminado respondeu sem pestanejar: duvido não, tenho certeza: vi com estes olhos que um dia a terra vai comer o milagre que o homem fez quando as tropas do mal quiseram arrebentar com Canudos e sua igreja e seus crentes: o homem orou aos céus e nossos homens avançaram e entocaiaram os macacos do governo, meteram fortes medos nos macacos assobiando que nem coruja nas madrugadas escuras, imitando o trinar do guizo da venenosa cascavel e saindo dos buracos feitos a enxadão no meio das espinhosas caatingas, berrando e gritando o nome de Jesus – Viva Nosso Senhor Jesus Cristo e a Santa Igreja Católica Apostólica Romana - e amaldiçoando feias palavras contra república, e avançaram e mataram os covardes macacos que não tinham em seus corações a fé e o Conselheiro salvou Canudos e se deu uma grande festa frente da igreja: Bentinho tocou forte o sino, foguetes comprados em Bendengó de Baixo foram ao ar aguardando a chegada da coluna dos homens comandados pelo negro Pajeú – armados de bacamartes, espingardas, pistolas e facões e cacetes de berimba – que chegaram vitoriosos na vila, cansados mas alegres em suas feições e foram festejados por todos e abençoado pelo Conselheiro, por isso nunca duvide dos poderes de quem está a serviço do bem; e daí já se tinha formado uma roda em volta do Anor, todos largaram o que estavam a construir em minha tapera, deixaram de lado, por um pouco de tempo, suas obrigações, tiraram os chapéu da cabeça e ficaram a escutar: todos, ali, silenciosamente quietos: o Manoel Quadrado, o Chico Ema, o Macambiras, parecendo até que toda a vila se silenciou para escutar a flautosa voz do Anor.

 

terça-feira, 5 de maio de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VII - FOI QUANDO JOÃO DA MATA CONTOU DA COBRA BUIUNA


 


 

Foi naquela primeira tarde, quase noitinha, na vila do Canudos, adespois de ter visto com estes olhos que deus me deu e que um dia vai virar pó, que o Estevo que me apresentou João da Mata: João da Mata, pernambucano forte, cara amarrada de poucos risos e era o que comandava os piquetes dos jagunços que vigiavam as entradas de Cocorobó e Uauá que é por adonde as forças do mal chegavam armadas com estrangeiras espingardas e canhões, cumpriam ordens da ateia república para invadir, matar e solapar a vila de Canudos do santo Conselheiro. João da Mata morava sozinho, não tinha muito gosto por mulher, em uma tapera nos fundos da vila, na beira do Vaza Barris e aceitou de dividir, até eu construir, a tapera que ele ocupava sozinho. Suja a tapera, faltava ali mão de mulher para ordenar os pratos e as panelas e as cabaças esparramadas tapera adentro misturadas com a espingarda e o facão de brilhante lâmina e com o revólver de cabo de madrepérola com mais de dez riscos - marcas de quantas vidas já tinha dado fim; achei que era melhor armar a rede no canto do fogão, perto da janela, mas João da Mata ordenou: aqui não, a janela é o meu ponto de fuga em caso de necessidade, arme sua rede junto à porta e não me restou senão acatar a grossa voz de João que puxou conversa: e foi em onde que Estevo te encontrou?; sertão da Bahia, pros lados de Feria de Santana, era lá que eu vaquejava; sei, e se cansou da miséria da vida de vaqueiro?; mais ou menos isso que assucedeu comigo e com vosmecê? em antes de viver aqui neste santo lugar, ocupando posto de importância e de confiança do Conselheiro, em antes o que fazia o amigo?; amigos até podemos ser um dia, por enquanto conhecidos e respondo sua arguição: era capanga de um coronel nos sertões de Pernambuco.

Foram estas as primeiras palavras com João da Mata, cada um desconfiando do outro: ele com sua cara amarrada, nunca mostrando os dentes em sorriso, o peito riscados com marcas de punhal nas alturas do coração: se eu não tivesse escorregado de lado o cabra tinha enfiado um pouco mais eu não estava agora aqui vivo para contar o assucedido e foi quando o estômago roncou, dando sinais de fome e resolvemos que era hora de alimentar os buchos e comemos farinha com rapadura e bebemos água na cabaça com a lua chegando ao céu: um vento fraco vindo do norte aliviava o calor, e cada um procurou sua rede – um lá e outro cá: um perto da janela pronto para a qualquer momento fugir, cair no Vaza Barris e o outro – eu neste caso – perto da porta: e, se fosse necessário, para onde iria fugir? atravessar o Vaza Barris, sair na outra margem e lá molhado da barrenta água para que lado correr? sei não, deus do céu, melhor esquecer os perigos do viver. E foi, mais uma vez, João da Mata que teve a iniciativa de palestrar: sabe que vi hoje uma cobra buiuna?, voismecê já viu alguma, lá pelos lados onde vaquejava tinha a buiuna?; conheço não, nunca vi, com esse nome pelo menos nunca vi; buiuna é uma cobra preta, lisa de brilhante, grande e dizem os mais velhos que mansa de veneno, mas aprecia leite de mulher e mode isso assim sempre procede a buiuna: sente de longe, de seu buraco, o cheiro de leite de mulher e se esconde por perto esperando a hora em que todos os dois, a mãe parida de novo o nenê dormem de cansados e então prepara sua arte: em antes molha seu rabo com mel e avança pela cama e lá primeiro põe o seu rabo lambuzado de mel na boca do nenê e chupa o seio da mulher, mama seu leite e o bebê quieto por causa do sabor adocicado do mel, não chora, não geme e assim a buiuna se satisfaz, enche a barriga de leite da mãe; verdade, isso João? nunca em antes ouvi isso, pros meus lados tem esse tipo de cobra não, que deus me livre, nojo puro; pois por aqui tem e até posso te contar do Manoel, vaqueiro e jagunço, que chegou a sua tapera, ao entardecer e viu a mulher e a filhinha de duas semanas dormindo na rede e no alto da tapera a enorme buiuna preta, lisa, enrolada no balaio de estocar milho e Manoel chamou pela mulher e disse que ela se levantasse da rede e fosse até a cacimba para buscar água e que levasse junto a menina bebezinha para ela não chorar e foi só as duas saírem da porta para fora ele meteu a foice no meio da buiuna e dividiu a danada em duas e ele contou que da barriga saia um leite azedo, parecendo coalhada e era leite da sua mulher que a buiuna tinha mamado, acredita não?; acredito sim, não costumo duvidar das palavras de homens sérios e você já viu por aqui a capitão do mato?; que isso, cobra também?; sim, cobra que aparece nos cerrados, cabeça amarela, triangular, corpo manchado de preto e alaranjado e quando enfeza fica toda em pé, só o rabo na terra e em vez de serpentear o corpo para correr, corre demais de veloz com o corpo esticado a cabeça olhando por cima das moitas e se diz que vence inté seriema e cachorro na corrida, mas de verdade, eu nunca vi, só de contar é que eu conheço; e ficamos dos dois, João da Mata e eu, cada um em sua rede cada um com seus pensares, imaginações sem saber o que era de verdade, o que tinha mesmo acontecido nos reais e o que era sonho sonhado de dia, acordado, olhos abertos, uma misturança de coloridas realizações acontecidas ou nascidas nos profundos de nossas almas... dormimos!