terça-feira, 5 de maio de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VII - FOI QUANDO JOÃO DA MATA CONTOU DA COBRA BUIUNA


 


 

Foi naquela primeira tarde, quase noitinha, na vila do Canudos, adespois de ter visto com estes olhos que deus me deu e que um dia vai virar pó, que o Estevo que me apresentou João da Mata: João da Mata, pernambucano forte, cara amarrada de poucos risos e era o que comandava os piquetes dos jagunços que vigiavam as entradas de Cocorobó e Uauá que é por adonde as forças do mal chegavam armadas com estrangeiras espingardas e canhões, cumpriam ordens da ateia república para invadir, matar e solapar a vila de Canudos do santo Conselheiro. João da Mata morava sozinho, não tinha muito gosto por mulher, em uma tapera nos fundos da vila, na beira do Vaza Barris e aceitou de dividir, até eu construir, a tapera que ele ocupava sozinho. Suja a tapera, faltava ali mão de mulher para ordenar os pratos e as panelas e as cabaças esparramadas tapera adentro misturadas com a espingarda e o facão de brilhante lâmina e com o revólver de cabo de madrepérola com mais de dez riscos - marcas de quantas vidas já tinha dado fim; achei que era melhor armar a rede no canto do fogão, perto da janela, mas João da Mata ordenou: aqui não, a janela é o meu ponto de fuga em caso de necessidade, arme sua rede junto à porta e não me restou senão acatar a grossa voz de João que puxou conversa: e foi em onde que Estevo te encontrou?; sertão da Bahia, pros lados de Feria de Santana, era lá que eu vaquejava; sei, e se cansou da miséria da vida de vaqueiro?; mais ou menos isso que assucedeu comigo e com vosmecê? em antes de viver aqui neste santo lugar, ocupando posto de importância e de confiança do Conselheiro, em antes o que fazia o amigo?; amigos até podemos ser um dia, por enquanto conhecidos e respondo sua arguição: era capanga de um coronel nos sertões de Pernambuco.

Foram estas as primeiras palavras com João da Mata, cada um desconfiando do outro: ele com sua cara amarrada, nunca mostrando os dentes em sorriso, o peito riscados com marcas de punhal nas alturas do coração: se eu não tivesse escorregado de lado o cabra tinha enfiado um pouco mais eu não estava agora aqui vivo para contar o assucedido e foi quando o estômago roncou, dando sinais de fome e resolvemos que era hora de alimentar os buchos e comemos farinha com rapadura e bebemos água na cabaça com a lua chegando ao céu: um vento fraco vindo do norte aliviava o calor, e cada um procurou sua rede – um lá e outro cá: um perto da janela pronto para a qualquer momento fugir, cair no Vaza Barris e o outro – eu neste caso – perto da porta: e, se fosse necessário, para onde iria fugir? atravessar o Vaza Barris, sair na outra margem e lá molhado da barrenta água para que lado correr? sei não, deus do céu, melhor esquecer os perigos do viver. E foi, mais uma vez, João da Mata que teve a iniciativa de palestrar: sabe que vi hoje uma cobra buiuna?, voismecê já viu alguma, lá pelos lados onde vaquejava tinha a buiuna?; conheço não, nunca vi, com esse nome pelo menos nunca vi; buiuna é uma cobra preta, lisa de brilhante, grande e dizem os mais velhos que mansa de veneno, mas aprecia leite de mulher e mode isso assim sempre procede a buiuna: sente de longe, de seu buraco, o cheiro de leite de mulher e se esconde por perto esperando a hora em que todos os dois, a mãe parida de novo o nenê dormem de cansados e então prepara sua arte: em antes molha seu rabo com mel e avança pela cama e lá primeiro põe o seu rabo lambuzado de mel na boca do nenê e chupa o seio da mulher, mama seu leite e o bebê quieto por causa do sabor adocicado do mel, não chora, não geme e assim a buiuna se satisfaz, enche a barriga de leite da mãe; verdade, isso João? nunca em antes ouvi isso, pros meus lados tem esse tipo de cobra não, que deus me livre, nojo puro; pois por aqui tem e até posso te contar do Manoel, vaqueiro e jagunço, que chegou a sua tapera, ao entardecer e viu a mulher e a filhinha de duas semanas dormindo na rede e no alto da tapera a enorme buiuna preta, lisa, enrolada no balaio de estocar milho e Manoel chamou pela mulher e disse que ela se levantasse da rede e fosse até a cacimba para buscar água e que levasse junto a menina bebezinha para ela não chorar e foi só as duas saírem da porta para fora ele meteu a foice no meio da buiuna e dividiu a danada em duas e ele contou que da barriga saia um leite azedo, parecendo coalhada e era leite da sua mulher que a buiuna tinha mamado, acredita não?; acredito sim, não costumo duvidar das palavras de homens sérios e você já viu por aqui a capitão do mato?; que isso, cobra também?; sim, cobra que aparece nos cerrados, cabeça amarela, triangular, corpo manchado de preto e alaranjado e quando enfeza fica toda em pé, só o rabo na terra e em vez de serpentear o corpo para correr, corre demais de veloz com o corpo esticado a cabeça olhando por cima das moitas e se diz que vence inté seriema e cachorro na corrida, mas de verdade, eu nunca vi, só de contar é que eu conheço; e ficamos dos dois, João da Mata e eu, cada um em sua rede cada um com seus pensares, imaginações sem saber o que era de verdade, o que tinha mesmo acontecido nos reais e o que era sonho sonhado de dia, acordado, olhos abertos, uma misturança de coloridas realizações acontecidas ou nascidas nos profundos de nossas almas... dormimos!

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