Foi naquela primeira tarde, quase noitinha, na vila do
Canudos, adespois de ter visto com estes olhos que deus me deu e que um dia vai
virar pó, que o Estevo que me apresentou João da Mata: João da Mata, pernambucano
forte, cara amarrada de poucos risos e era o que comandava os piquetes dos jagunços
que vigiavam as entradas de Cocorobó e Uauá que é por adonde as forças do mal chegavam
armadas com estrangeiras espingardas e canhões, cumpriam ordens da ateia
república para invadir, matar e solapar a vila de Canudos do santo Conselheiro.
João da Mata morava sozinho, não tinha muito gosto por mulher, em uma tapera
nos fundos da vila, na beira do Vaza Barris e aceitou de dividir, até eu
construir, a tapera que ele ocupava sozinho. Suja a tapera, faltava ali mão de
mulher para ordenar os pratos e as panelas e as cabaças esparramadas tapera
adentro misturadas com a espingarda e o facão de brilhante lâmina e com o
revólver de cabo de madrepérola com mais de dez riscos - marcas de quantas
vidas já tinha dado fim; achei que era melhor armar a rede no canto do fogão,
perto da janela, mas João da Mata ordenou: aqui não, a janela é o meu ponto de
fuga em caso de necessidade, arme sua rede junto à porta e não me restou senão
acatar a grossa voz de João que puxou conversa: e foi em onde que Estevo te
encontrou?; sertão da Bahia, pros lados de Feria de Santana, era lá que eu
vaquejava; sei, e se cansou da miséria da vida de vaqueiro?; mais ou menos isso
que assucedeu comigo e com vosmecê? em antes de viver aqui neste santo lugar,
ocupando posto de importância e de confiança do Conselheiro, em antes o que
fazia o amigo?; amigos até podemos ser um dia, por enquanto conhecidos e
respondo sua arguição: era capanga de um coronel nos sertões de Pernambuco.
Foram estas as primeiras palavras com João da Mata, cada
um desconfiando do outro: ele com sua cara amarrada, nunca mostrando os dentes em
sorriso, o peito riscados com marcas de punhal nas alturas do coração: se eu
não tivesse escorregado de lado o cabra tinha enfiado um pouco mais eu não
estava agora aqui vivo para contar o assucedido e foi quando o estômago roncou,
dando sinais de fome e resolvemos que era hora de alimentar os buchos e comemos
farinha com rapadura e bebemos água na cabaça com a lua chegando ao céu: um
vento fraco vindo do norte aliviava o calor, e cada um procurou sua rede – um
lá e outro cá: um perto da janela pronto para a qualquer momento fugir, cair no
Vaza Barris e o outro – eu neste caso – perto da porta: e, se fosse necessário,
para onde iria fugir? atravessar o Vaza Barris, sair na outra margem e lá
molhado da barrenta água para que lado correr? sei não, deus do céu, melhor
esquecer os perigos do viver. E foi, mais uma vez, João da Mata que teve a
iniciativa de palestrar: sabe que vi hoje uma cobra buiuna?, voismecê já viu
alguma, lá pelos lados onde vaquejava tinha a buiuna?; conheço não, nunca vi,
com esse nome pelo menos nunca vi; buiuna é uma cobra preta, lisa de brilhante,
grande e dizem os mais velhos que mansa de veneno, mas aprecia leite de mulher e
mode isso assim sempre procede a buiuna: sente de longe, de seu buraco, o
cheiro de leite de mulher e se esconde por perto esperando a hora em que todos
os dois, a mãe parida de novo o nenê dormem de cansados e então prepara sua arte:
em antes molha seu rabo com mel e avança pela cama e lá primeiro põe o seu rabo
lambuzado de mel na boca do nenê e chupa o seio da mulher, mama seu leite e o
bebê quieto por causa do sabor adocicado do mel, não chora, não geme e assim a buiuna
se satisfaz, enche a barriga de leite da mãe; verdade, isso João? nunca em
antes ouvi isso, pros meus lados tem esse tipo de cobra não, que deus me livre,
nojo puro; pois por aqui tem e até posso te contar do Manoel, vaqueiro e
jagunço, que chegou a sua tapera, ao entardecer e viu a mulher e a filhinha de
duas semanas dormindo na rede e no alto da tapera a enorme buiuna preta, lisa,
enrolada no balaio de estocar milho e Manoel chamou pela mulher e disse que ela
se levantasse da rede e fosse até a cacimba para buscar água e que levasse
junto a menina bebezinha para ela não chorar e foi só as duas saírem da porta
para fora ele meteu a foice no meio da buiuna e dividiu a danada em duas e ele
contou que da barriga saia um leite azedo, parecendo coalhada e era leite da
sua mulher que a buiuna tinha mamado, acredita não?; acredito sim, não costumo
duvidar das palavras de homens sérios e você já viu por aqui a capitão do
mato?; que isso, cobra também?; sim, cobra que aparece nos cerrados, cabeça
amarela, triangular, corpo manchado de preto e alaranjado e quando enfeza fica
toda em pé, só o rabo na terra e em vez de serpentear o corpo para correr,
corre demais de veloz com o corpo esticado a cabeça olhando por cima das moitas
e se diz que vence inté seriema e cachorro na corrida, mas de verdade, eu nunca
vi, só de contar é que eu conheço; e ficamos dos dois, João da Mata e eu, cada
um em sua rede cada um com seus pensares, imaginações sem saber o que era de
verdade, o que tinha mesmo acontecido nos reais e o que era sonho sonhado de
dia, acordado, olhos abertos, uma misturança de coloridas realizações
acontecidas ou nascidas nos profundos de nossas almas... dormimos!
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