sábado, 15 de dezembro de 2012

O MORRO CABEÇA DO PADRE -II–AS MISSÕES!

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Quando se ia de charrete, do ponto de ônibus da agora comarca de Venda Nova até a fazenda do Tó Diniz, era coisa de vinte a trinta minutos, já a pé gastava uma hora: claro que a passos lentos, tudo se vendo, os descampados, os cafezais se formando, os morros de cupins nos pastos, escutando o quequezar alto e estridente das seriemas. Mas, como disse, fui de charrete buscar a professora Antônia. Cheguei rápido ao ponto de ônibus e lá estava ela, duas malas de couro ao seu lado, no chão, uma sombrinha cor de rosa aberta protegendo das quenturas do sol: me viu e já de cara me reconheceu, não sei como, talvez por graças de Deus e não do Tinhoso, pensei naquela hora. Tudo sabia de antes que a gente a professora! Na charrete ocupou só um cantinho do banco, durinha; fechou a sombrinha e fazia questão de não apoiar as costas no apoio do banco, ela acompanhava os balanços da charrete, toda firme, bonita – demais de bonita, eu via - a tudo olhando, observando, tudo vendo, e o narizinho se enrugando na busca de cheiros, de perfumes, que era mais assim que era como ela conhecia o mundo: vendo e cheirando.

Foi então que aconteceu o primeiro ocorrido. Logo depois da curva do ponteleão, pequeno túnel sobre o qual passava a linha de trem, existia uma capoeira de mato e, tão logo Brioso - cavalo garboso, tordilho – deixou para trás as sombras das aroeiras que desenhavam a capoeira ela ordenou: pare a charrete e não olhe para trás, vou desaguar. Assim, de repente e nos naturalmente, foi dizendo e ela mesmo, autoridade, soprou alto um “psiu” e as orelhas do Brioso escutaram quase não carecendo de ter que eu firmar as rédeas, fazendo o Brioso parar. Queria mostrar autoridades! Psiuuu, Brioso! Nem bem a charrete terminou de parar ela desceu lépida, saltou na estrada sem usar o apoio do estribo e repetiu: não olhe para trás, e eu obedeci - olhos e mente para o horizonte - e logo escutei um longo “chiiii” que era o barulho da pressão do seu desaguar e eu imaginava a poça d´água que estava se formando na beira da estrada e ela sentindo o cheiro do seu mijo misturado com a areia pedregosa, o seu narizinho enrugado. Desocupada do que tinha que fazer voltou ao banco da charrete e pôs-se a olhar e a cheirar o mundo.

E aquela cruz? Porque existe ali, meio daquele mundão de mato? assuntou curiosa e eu narrei que aquela cruz tinha sido colocada ali pelo fiéis, em respeitosa procissão, quando a última missão tinha vindo para Venda Nova, coisa assim de um ano mais ou menos atrás.

Missões? De jesuítas? Que isso? arguiu, curiosa, Antônia e eu tive que contar para ela que a cada três ou quatro anos, Frei Marcos, pároco de Venda Nova, que ela ia logo conhecer, homem bom, de caráter, escrevia ao bispado pedindo, encarecido, a vinda dos eloquentes padres missionários para esquentar as almas e os ânimos de suas ovelhas, como gostava de chamar os seus seguidores, insensíveis ou acomodados aos seus discursos e às suas preces, a igreja ficando mais vazia, apenas as beatas de sempre, homens fugindo do confessionário e das comunhões nas missas de domingo e dias santos. Bondoso frei Marcos, também ele um humano segundo as pecaminosas mentes, não sei se é verdade ou coisa de desocupadas mentes, que baixinho, ao pé do ouvido, segredamente cochichavam - voz baixa, olhando se não tinha ninguém escutando - de suas saídas diurnas e noturnas até a casa do Seu Bento, para encontros com Tarsila, solteirona sacudida, olhos claros dos italianos jogadores de bocha: na sexta-feira santa era ela, Tarsila, que cobria o rosto com os negros e longos cabelos, paramentava-se de roxo e cantava, na língua dos padres, como se fosse a Madalena, fazendo arrepiar de medo e de dor as almas dos vendanovenses, que era assim que se chamavam, então, os que lá moravam. O que de fato ocorria era que a fé dos filhos da Venda Nova ia esfriando só com a voz de contralto de Tarsila e as prédicas do Frei Marcos e urgia apelar para o clamor dos padres redentoristas, estes danados de bons para arrancar lágrimas dos olhos dos crentes arrependidos dos pecados cometidos e pelo fuga de, compenetrado, ficar de joelhos no confessionário e desfilar, olhos fechados, contrito, os mortais e veniais pecados. Missionários!

Eram mestres! Capazes por demais. Venda Nova rendia-se às suas vozes e preces: logo às quatro e trinta da manhã, tudo escuro e frio no mês de julho, as estrelas e lua enfeitando o escuro céu, do alto falante da torre da Igreja se ouvia “Bendito louvado seja” na voz do cantor de rádio famoso, o disco de trinta e três rotações girado na vitrola rodada a mão: e a bonita voz do cantor do “bendito louvado seja” era levada pelas ondas do vento e pelo silêncio a todos os cantos da cidade, acordando nas camas quentes os cristãos, clamando para a missa e rezas que iriam se iniciar logo às cinco horas da manhã. E mesmo com frio a igreja se abarrotava de gentes a rezar e a pedir perdão pelos pecados, a orar por graças, a pagar promessas: uma profusão de fé, lágrimas, soluços ao ouvir as prédicas dos redentoristas. Bendito louvado seja! e Venda Nova se travestia de Roma ou de Jerusalém: cidade de crentes e tementes a Deus, cuidadosos de suas almas, se esquecendo as agruras do dia a dia e buscando a eternidade junto d´Ele. Mas nem todos os vendanovenses, diga-se para não faltar com a verdade: o Doutor Odilon, médico formado no Rio de Janeiro, ateu, dizia ser tudo bobagem que quando morre é igual a um porco ou cavalo: a terra come. Mas e a alma, doutor? perguntavam os mais chegados no médico. Nada de alma, igual a um porco ou um cavalo, este negócio de alma é pura invenção da Igreja para ganhar dinheiro? E Deus? Bobagem...se existisse mesmo, de verdade, os padres, que de bobo não têm nada, já teriam provado sua existência, mais uma outra enganação da igreja, dos padres a contar das impossíveis besteiras de se ter filho sendo virgem, que isso? E eu fui me animando em minha preleção para a professora Antônia: e sabe que quem concordava com o doutor Odilon era o Seu Paulo, italiano comunista, celeiro e sapateiro com loja de sucesso em Venda Nova, fazedor de arreios e cutianos sob encomenda, bordados de estrelas prateadas, lindos e o Seu Gerônimo, que foi turco mascate e agora, meio enricado, era dono da Casa Radar, que vendia rádios, lâmpadas. Diziam, sem poder provar, conversas de bares e na quadra de bocha que foram eles, o Seu Paulo e o seu Gerônimo que aprontaram numa quinta feira de madrugada. O que fizeram? Foi assim: nos escuros da noite, por volta das duas horas da madrugada, tudo frio e escuro, saíram os dois pelas ruas de Venda Nova, carregando em cima de uma carriola, daquelas que os pedreiros usam para carregar cimento, só que ao invés de cimento ou pedras, que é para o que carriola foi inventada para transportar, carregava uma vitrola RCA, a bateria, da Casa Radar, com o mesmo disco usado pelos redentoristas...e a voz do cantor de rádio inundou a cidade.

“Bendito louvado seja” pelas ruas e as beatas, acordadas pela bela voz, levantando de suas camas e se dirigindo para a matriz ainda com tudo escuro, fora de hora: os redentoristas ainda dormiam esperando às quatro e meia da madrugada para iniciar seu trabalho. E o povo chegando na porta da igreja. E ainda contam que o Quito acordou e não viu ao seu lado a mulher de sempre, mãe de seus filhos: nervoso, correu para a casa de Dona Luiza, sua sogra, a procura da mulher imaginando coisas e mais coisas, dado que sua mulher, mesmo passado dos cinquenta continuava exigente nas delicias quenturas da cama e ele aos sessenta e pouco, muitas vezes não tinha vontades ou forças e dizia a ela que a cabeça doía, ou que o corpo estava cansado dos serviços de pedreiro, que as costas estavam quebradas da força que fazia de dia, “outra hora meu bem, amanhã a gente faz” e ao não encontrar sua mulher na casa da sogra, apressados e abobalhados saem os dois, ele e a sogra, pelas ruas, rezando e implorando a Deus Nosso Senhor para que trouxesse de volta sua esposa amada, e ele pensava e rezava: dali para frente passaria a cumprir mais com seus deveres de marido e de cristão e a sogra rezando baixo e prometendo deixar de implicar e ficar olhando pelo quebradinho da veneziana de sua janela a chegada do padre Frei Marcos na casa da Tarsila.

E a escadaria da igreja foi se enchendo de gente até que um mais esperto ou desconfiado da negritude da hora e da posição da lua, resolveu tirar bolso o patacão Ômega, corrente de ouro, e com o auxílio de uma binga iluminou os ponteiros e enxergou que as horas eram ainda três horas da madrugada. Frio e vento, urgia atitudes: voltar para casa, foi a decisão de muitos iludidos; outros crentes acharam um sacrifício e um desperdício ter que de novo esquentar as camas que deviam estar frias e resolveram que o mais adequado e sensato seria se acomodar na porta do salão paroquial, protegidos do vento e iniciar mais cedo o rezar, olhos fechados, o terço puxado pela Dona Luiza, sogra do Quito.

Mas o que deixou admirado foi que quando terminei de contar tão verdadeira história para Antônia, esperava que ela, professora formada, torcesse o nariz de indignação por tão mal feita arte que os ateus haviam aprontado com os crentes de Venda Nova, e nada: na verdade foi quando eu vi, pela primeira vez, seus dentes incrivelmente brancos: riu a não poder mais, ria com a boca, mostrando os dentes lindos e com a barriga que chocalhava e eu decepcionado com seu riso: Falta de educação e de respeito para com os crentes. E ela: Deve ter sido engraçado.

E eu fui conhecendo assim, aos poucos, Antônia: e tinha certeza que ela, em sua esperteza ladina, já me conhecia, desde sempre; tudo de mim: meus medos, minhas covardias, meus sonhares.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O MORRO CABEÇA DO PADRE -I–OS INÍCIOS!

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Juvêncio se põe a rememorar e a contar:
“Cabeça do Padre é o nome do redondo e volumoso morro que quando enxergado do alto - tal como é visto pelos urubus em seus mansos voos - se assemelha a um enorme meteoro esborrachado no meio das planuras das furnas do Rio Guamá. Agora o nome Cabeça do Padre é devido ao seu topo: tal e qual uma careca - formada por uma rocha que brilha ao sol depois das chuvas ou das garoas - cercada do verde das árvores, lembrando a tonsura exigida para diferenciar a cabeça dos padres dos normais homens de poucas letras da região.
E é nos baixios do morro da Cabeça do Padre vivem pessoas - famílias e mais famílias - e suas criações sendo estas algumas de pura estimação, mas a maioria de utilidade prática de matar para comer ou da justa serventia de puxar charretes, carroças e carros de boi: cavalos e éguas, jumentos, burros e mulas, vacas, cabritos, algumas poucas ovelhas, galinhas muitas, perus também poucos, um único e solitário pavão. Em Venda Nova, nome da vila esparramada em volta do morro, as pessoas viviam - não sei como estão as coisas agora, mas acho que a modernidade e seus barulhos já alcançaram aquele fundão das Gerais - com os ouvidos acostumados ao musical som do silêncio: se escutava o assovio dos ventos, o farfalhar das chuvas nas folhas das árvores; também se ouvia, quase sempre, de dia e de noite, latidos dos cachorros que esqueci de listar junto com os outros animais, mas são classificados como de estimação embora tenham sua utilidade: não é animal de se comer e não têm forças para puxar carroças ou charretes, mas além da amizade com seus donos são carinhosos, vivem a abanar o rabo de alegria, lambem as feridas e mesmo o chulé que forma entre os dedos dos homens que usam botinas, e têm ainda a utilidade de vigiar as casas de humanos duvidosos e de assombrações; além disso ajudam – por causa de seu faro e de seus dentes - nas caçadas de veado ou de tatu, estas sempre a noite, que é a hora escolhida pelos tatus para saírem dos buracos com seus os olhinhos negros, brilhantes a procura de alimentos: de dia ficam nos escuros de suas locas, inacessíveis até ao faro dos perdigueiros, estes sim, são cachorros de raça; tem também os cachorros menores, remelentos vira-latas - Vinagres, Ferrugens, Ximbicas, Futricas esses os nomes usados - que latem sempre ao menor ruído e muito úteis para pegar nos quintais o frango para o almoço dos domingos e dos dias santos de guarda, dias de receber visitas, ou as galinhas para engrossar e dar sabor e sustância ao caldo quente necessário quando do resguardo da mulheres paridas em seus quarenta dias de descanso, que passam deitadas, quietas de trabalho algum, só a amamentar o serzinho parido ali mesmo, em casa, com suas forças e ajuda da parteira Cotinha, aqui na terra e as graças da Nossa Senhora dos Bons Partos, lá no céu: teias de aranha e rezas para o umbigo cair, seco. No ar, quase sempre, o cheiro das vacas e cavalos se sobrepõem ao delicado perfume das laranjeiras e das flores dos cafezais quando se chega a época de florada, e isso é lá por março ou abril.
E de onde começou a Venda Nova?
Tudo tem seus começos, seus inícios e eu vou contar o que eu sei de ouvir falar, nada de escritos ou registrado em anais, porque aprendi a ler, já moço, de barba e tudo: redigo o que escutava nos fins de tarde, quando em frente da casa, o avô, cigarro de palha fumacento, catingudo, narrava o que seus bisavós garantiam que o nascimento da vila se deu com os finais das riquezas das pedras do rio Guamá, que junto com as grupiaras perderam os brilhos, secaram - ouros, diamantes - se definharam, sumiram de vez e os aventureiros homens de então com as cacundas doloridas – estranhando o tanto de tempo em que eram obrigadas a ficar curvadas, os olhos dos seus donos, desacorçoados, desesperançados nos fundos das bateias carregadas de pedras molhadas, sem nenhum brilho reluzente, aluviões - e as dores e os esforços não respondendo a contento com a esperança de enricar dos homens que labutavam no Guamá à cata de brilhantes. Era o jeito, a sina e então eles foram voltando de sonhos desfeitos, uns, podendo, comprando fazendas, outros, mais carentes, pequenas chácaras, uns construindo casas de pedras e alvenaria, outros choupanas; chegaram e foram metendo fogo no mato para fazer roças, laçaram e domesticaram bugres para cuidar das lavouras, já que agora que não precisam mais deles para guiar pelos rios e cachoeiras das Gerais. Só depois, mais tarde, é que chegaram os negros, comprados no Rio, que vinham com suas mulheres, negras, belas e com elas, nas tardes quentes, ou nas frias madrugadas, se faziam filhos e os pias nascendo, povoando, misturando cores e almas. Já mais depois: italianos barulhentos, carcamanos para as roças de café, colonos e os turcos, estes mais para mascatear e negociar: lojas de tecidos, armarinhos: mas isso, bem depois, Igreja já construída, missas de natal e de corpo presente já rezadas.
Muitos!
“Mas está contando os de agora, Juvêncio?”
“Que nada! O que conto é dos meus tempos de moço, rapaz sacudido, os ouvidos acostumados ao cri! cri! cri! dos grilos, e o nariz capaz de sentir cheiros de onça e de moça. Embora não tenha mais tantas certezas: nos dias de agora, as cãs brancas, o miolo mole a tudo confunde: nunca sei se é de agora ou de ontem, perdi força sobre meu tempo. Mas o que é certo que é de agora, dos então deste momento que estamos a palestrar aqui tão quietos, tempos em que os sinos estão mudos, não sei se por ser fora de moda, ou se os seus sons prateados estão abafados pelo barulho carvoento e oleoso dos carros e caminhões que, dia e noite, não desistem e nem se cansam de passar frente a cobertura de telhas Eternit – minha casa - e do banco de cimento – minha cama - mandado fazer pelo prefeito que era para o povo ali esperar sentados, protegido do sol ou da chuva, os ônibus ou as topiques: mas os ônibus, as topiques e os passageiros, agora respeitando meu senhorio sobre o ponto – minha, nossa casa - se ajuntam acomodados um pouco mais a frente, sob o sol ou sob a chuva e ali, onde o prefeito construiu o ponto agora é a casa do “Juvêncio, o louco que mora no ponto de ônibus”, dizem, ou pensam; mas o que acontece é que daqui me apossei e é onde vivo. Mas, voltando ao de ontem, aos passados guardados dentro de mim, digo que nasci ali na Venda Nova, protegida nas manhãs do sol pela sombra escura do morro da Cabeça do Padre; outra coisa é que eu só vi outro mundo diferente da Venda Nova já homem casado, pai de filhos, fugindo dos medos da revolução.
Quando moço novo, cheguei a vaqueiro principal na fazenda dos Diniz, responsável por zelar e pelo retiro de mais de cinquenta vacas leiteiras: daquelas chifrudas, de úberes pequenos de pouco leite, as tetas duras exigindo força na munheca para encher os baldes de leite, coiceiras, as danadas. Uma manhã, leite tirado e gado apartado Seu Tó Diniz, dono da Fazenda Toca da Onça, chega e me diz: Juvêncio, pegue a charrete e vai no ponto de ônibus pegar a professora que vem para Venda Nova ensinar as crianças. Esta meninada carece de aprender a leitura e a escrita, carecem de aprender a fazer as contas de mais, de menos, de dividir e de multiplicar, principalmente este bando de meninos e meninas bronzeados: puris, bugrezinhos, cafuzos, cafuás porque os alvacentos têm professores que ensinam em suas casas, mas estes outros demais não. Foi ele que disse e ordenou.
Vale contar do seu Tó Diniz: homem de baixa estatura, magro, corpo todo coberto de negros, com a chegada da idade, mais no fim prateados, pelos subindo do pescoço e se misturando com a barba, quase sempre feita a navalha, dia sim, dia não. Gostava e apreciava os ócios e os luxos do bem viver, cuidadoso do jardim que cercava sua casa com hortênsias encanteiradas, floridas de azul nos invernos, orientando o caminho de quem chegava na caiada branca casa, alpendrada em toda face que dava para o Morro; casa de muitas azuis janelas, com a porta grande da entrada almofadada, feita de jacarandá e dentro dela, os cômodos todos com assoalho feito com largas e grossas tábuas de angico amarelo, de jacarandá ou de ipê - madeiras de lei – e, na sala de receber visitas, até piano com rabo tinha, fora a banheira que mandou buscar, diziam, nas europas. Um brinco de casa, cuidada com esmero e capricho por Dona Ester, sua esposa, que veio dos lados de Diamantina, acostumada às finuras e luxos da Corte, neta de nobres homens, pares de deputados da Assembleia Constituinte do Império, importantes pessoas. E ela, Dona Ester, que nas horas vagas, e eram muitas, tocava piano, misturando as melodias das notas das brancas e negras teclas aos sons dos sabiás, dos pintassilgos e até das agudas seriemas. Beleza: e era bela a Dona Ester: branca, clara, olhos negros, sacudida de forte, opulenta nas dianteiras e nos traseiros: bons peitos e boa bunda, sacolejando toda, na fartura, quando andava, boníssima alma de voz calma e doce sorriso.
Mas como ia te contando, obedeci às ordens, arrumei o cavalo na charrete e fui. Me lembro direitinho, vi Antônia descer da jardineira: uma mulher pequena, bronzeada na cor da face, cabelos negros, cacheados, lábios finos, narizinho bem feito – tremia na busca de cheiros e perfumes – dava a impressão de querer conhecer o mundo pelo nariz delicado, olhos escuros, brilhantes. Vou contar do corpo: pequena mulher, tudo nos diminutivos: peitos, bunda, pernas; mas tudo recheado, com carnes e não ossos à mostra, firmes carnes, com certeza, perfumadas. Me viu e disse: me ajude com esta mala, mais pesada, a outra eu carrego como que querendo mostrar desde o primeiro momento ser decidida, dona de seu nariz, brava em sua beleza!
Como adivinhou que eu estava ali para levá-la, de charrete, para a fazenda do Tó Diniz? demorou para me contar.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O VISITANTE–V–OS FINAIS: A BARRIGUDA!

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“BARRIGUDA: ...design comum a algumas árvores da família das bombacáceas, de tronco grosso e ventrudo.” Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa.

Bem antes, muito antes de clarear o dia, ainda com as estrelas piscando no céu negro e a com a lua gorda e amarela no alto, José Antônio se pôs de pé. Abriu os olhos e levantou da cama quieto, evitando barulhos que despertasse Nair; não queria que ela acordasse, pois então, logo de manhã, seria obrigado a falar, responder perguntas: “porque tão cedo? Alguma coisa? Você está bom?”, e o que mais José Antônio queria eram silêncios: nada queria ouvir, nada queria contar, nada de explicações que, naquela decidida madrugada, não ousaria explicitar. Acordou com esperançosas alegrias. Quieto, como um gato, catou a camisa pendurada na cadeira, vestiu e saiu do quarto enfiando - desequilibrado, tropeçando - a calça por cima da cueca: o meio das pernas atiçado, volumoso apontando direção em frente: “depois que mijar volta para o lugar, endireita”, pensou. Saiu para o terreiro e caminhou na direção da moita de bananeiras onde desabotoou as braguilhas e, ainda com o pinto volumoso, quente, febril, se pôs a urinar e a pensar. Será que encontraria solução para resolver satisfatoriamente sua vontade pessoal sem ferir e desgostar a quem estimava? De imediato não via solução. Decidido: os estimados serão feridos: com certeza sua mulher Nair e o compadre Chico de Barros, seus filhos, talvez menos. Imaginou ali, no escuro do seu quintal, que mesmo seu anjo da guarda logo, logo estaria a chorar pelo pecado que, com certeza, ainda hoje iria cometer. Pensou mais: as paixões desequilibram nossos interiores, rompem as harmonias preservadas por toda a vida, demolindo a cerca que a protegiam tal como uma cerca de arame farpado existe para cercar e proteger as vacas e os cavalos dos perigos, dos desequilíbrios! Mas José Antônio sentia, como nunca havia sentido, o fluxo da vida, e encorajou-se pelo gosto em voar acima da cerca que o mantinha inerte e calmamente equilibrado, cheio de conformações. Urgia cachoeiras de ruidosas e desconhecidas emoções!

Vida!

E continuou ensimesmando: a escuridão da madrugada não facilitava a clareza dos miolos. Pensamentos embaralhados na cabeça! Uma cachoeira de sins e de nãos, de vontades, de deliciosos e oníricos pecados, de sonhos com o corpo antecipando as vontades do pensamento, buscando realizações! “Acho que não adivinho meu destino pela fraqueza de não saber pensar as profundezas do meu viver, do meu existir e de só ser capaz de pensar nos simples e superficiais cotidianos e, por isso, não alcançar meus instintos primordiais?” A calça elevada pelo volume do pinto anunciava uma nova vida? “Quem manda e comanda o homem? A alma? Ou o pinto, ou de antes, o meio das pernas de uma mulher e seus peitos bicudos, suas pernas longas, suas opulentas nádegas? As asas dos anjos ou a catinga de enxofre do capeta?”.

José Antônio decidiu-se mais e mais.

Berrou o nome das vacas na ainda escuridão da noite - o pasto escuro - e pastoreou-as até o curral para tirar seu leite. Bulir e forçar as mãos para deixar os miolos em paz, sem pensamentos de dúvidas. Queria, a cada momento mais, Sebastiana.

O dia clareava devagar! No leste, de onde vinha o vento que soprava, a bola do sol vingava acima da serra do Baguaçu. Vermelha! Fogosa: um vulcão a encher de calor a madrugada fria: esperanças! Melhor: certeza e não mais esperanças.

Tirou o leite de todas as vacas: pegou um canecão de dois litros e separou o que era para ferver e encher o bucho dos meninos; ao restante, acresceu dois litros de água da cisterna e fechou os galões: “deve dar uns vinte litros”, pensou enquanto colocava os galões na charrete. Logo levaria até o ponto das três cruzinhas, na estradinha de chão: lá o Jaime leiteiro iria cheirar e conferir para ver se não tinha água, mediria e jogaria, mal ajeitados, na carroceria do caminhão e seriam levados para a cidade: leites transformado em queijos, manteigas, leites desnatados, requeijões.

José Antônio assistiu, meio escondido atrás de um pé de araticum, a chegada do caminhão GM do Jaime leiteiro: desceu do caminhão, fumando cigarro de papel, e carregou os galões. Tudo rápido, mas sem pressa: na carroceria os latões e na boleia, de garupa, viu a nuca de Chico de Barros. Se foi deixando todo o dia para ele, José Antônio, e Sebastiana.

A sombra da paineira os esperava. Era essa sua certeza!

Sob a copa da paineira, protegida do sol, estava Sebastiana. Trabalhava na colocação dos forros e pelegos a fazer uma cama macia meio as moitas de vassoura. Ao redor dos forros e dos pelegos – um confortável colchão - protegidos do sol, Sebastiana colocava flores da paineira, como a cercar e a delimitar o espaço do amor.

Quando o viu, simplesmente, sorriu. Encorajado pelo sorriso José Antônio ousou-se por demais e se aproximou: carinhosamente tocou seu rosto, limpou uma lágrima que escorria rosto abaixo, e esculturou, com as mãos, seu corpo, demorando um pouco mais na enculturação dos peitos empinados. Nus, sob a copa da paineira, se dedicaram aos amores: fortes e delicados, gemidos e doces - até aquele momento impronunciáveis - palavras, sussurros! Se amaram e após os auges amorosos se deixaram prostrar abraçados sobre os pelegos dedicando-se ao silêncio. O sol se fez forte, atravessou a copa da paineira: Sebastiana levantou-se semelhante a uma deusa dos livros, se vestiu e partiu. Caminhou, tão segura do filho que tinha, apoiando o ventre com ambas as mãos e fazendo os passos com as pernas meio abertas: era o peso do filho que acabara de fazer. Já o amava infinitamente!

José Antônio vestiu-se quieto. A calça agora não mais esticada com o volume do pinto, agora murcho, enfiado meio das pernas, calado, feliz!

Os dias seguintes assim se foram: todas as manhãs, na mesma hora dos acontecidos, José Antônio ficava sob a sombra da paineira esperando Sebastiana. Arrodeava em volta do que foi o leito do amor semelhante aos animais bravios presos em uma jaula: estupidamente marchando de lá para cá a procura de uma impossível fuga que as grades da jaula impedem, José Antônio caminhava em círculos volta do leito, marcado com as flores da paineira, a murchar. Sebastiana sentia-se completa: não era mais um corpo de mulher oco de filho e ele, José Antônio, com a alma vazia: sabia agora o que era o amor. Queria mais e mais!

As flores da paineira que cercava o leito do amor secaram: à sua volta o trilho feito com os passos de José Antônio. Tristezas infinitas desenhadas ao lado das flores secas.

Chico de Barros sabia, desde sua volta da cidade onde fora comprar óleo, sal, farinha de milho e chitas para o vestido de Sebastiana, que tudo mudara. Esperou as luas do sangramento para perguntar o que tinha certeza. “Dá assim para notar?” “Notei ainda quando estava na vila, onde fui comprar as necessidades!”. “E então, Chico?” “Não sou o pai: sei de minha incompetência para esta tarefa: defeito no corpo em gerar filhos. Só vontades!” “Carecia de encher meu corpo e minha alma com um filho: tão importante quanto viver!” “E agora?” “Vou criar meu filho, disso eu sei. Eu já amo este meu filho mais que tudo na vida!”. “Não sou o pai.” “Seja, é só querer! Te gosto demais, Chico! Mas carecia demais dessa necessidade.” “Não!”

Chico de Barros levou Sebastiana até embaixo da paineira. Chorou ao ver o círculo de flores murchas da paineira e o trilho feito pelos passos de José Antônio. Sacou o punhal: “mato os dois: mãe e filho!” Forte, como um tamanduá, abraçou a esposa e procurou o meio das pernas: enfiou o punhal, fazendo sangrar, imaginando, tirar primeiro a vida do filho que não era seu. Imediatamente depois cravou o punhal meio aos peitos de Sebastiana, agora maiores. Sebastiana sucumbiu ao primeiro sangramento meio das pernas. Perdera o filho: nada mais importava.

Chico de Barros, depois das mortes, lidou em preparar a cova; o corpo de Sebastiana, esticado debaixo da paineira, quase grudado nas duas poças de sangue: negras, que se secavam ao sol que teimava em atravessar a copa da paineira - casa do amor. Chorava!

José Antônio se aproximou e viu:

“Te mato desgraçado. Assassino, bandido do caralho! Desgraçado, desgraçado e desgraçado!”

Jogou-se em cima de Chico de Barros e os dois homens lutaram sabendo que só a morte de um aliviaria a vida do outro. Rolaram enfiados em abraços mortais, fortes, quebradiços de ódio: no meio dos corpos dos homens enlouquecidos por amor e ódio se misturava galhos de capim arrancados do chão, flores caídas da paineira e sangue que iniciava a derramar. Matos, flores, terras e sangues: ódios mortais. José Antônio venceu e mais uma poça de sangue iniciou seu enegrecimento debaixo da paineira.

José Antônio preparou três covas: duas maiores e uma pequena. O que se diz é que a pequena cova – onde José Antônio colocou o sangue primeiro da Sebastiana, vingou e frutificou-se nas raízes e a paineira – barriguda - teve seu caule engordado, crescido, ou “ventrudo” como aparece escrito no dicionário.

Isso é verdade!

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O VISITANTE IV–PESCARIA PENSANTE

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“Depois disso, tive uma visão: vi uma porta aberta no céu, e a voz que falara comigo,como uma trombeta, dizia: “Sobe aqui e eu te mostrarei o que está para acontecer depois disso” Apocalipse II- 4.1

 

José Antônio chegou na região do Toca da Onça onde o córrego corre forte entre as pedras negras, formando dezenas de pequenas, barulhentas e espumantes cachoeiras; lá, o musicante córrego tem suas margens ladeadas por guatambus, embaúbas, ingazeiros, que tapam o sol, tudo escondendo, enegrecendo e deixando frias as águas claras do riacho. Barulho? Sim, música tem: das águas, dos galhos sacudidos pelo vento que vinha lá dos lados de Minas e dos pássaros que, confiantes, se punham a cantar por perto. Mas o coração de José Antônio, em tudo, via amores: “oras bolas, se o pássaro está a cantar é porque quer, com seu canto, clamar a companheira pro seu lado; onde já se viu, parece que até os ventos estão fazendo os galhos se retorcerem, se encostarem uns nos outros em apertados abraços.” Era assim que se sentia e foi assim pensando que encontrou uma clareira e resolveu sentar: acomodou – com um certo desconforto - sua bunda na pedra escorregadia e iniciou a feitura de um cigarro; alisou com os lábios a palha de milho que enrolaria um cigarro grosso que queria com muito fumo, forte o bastante para espantar os mosquitos com sua fumaça e, mais que isso, forte o suficiente para encher sua garganta e seus pulmões de sonhos, fantasias, realizações difíceis. E estava a pitar quando viu, no céu, uma nuvenzinha parecida com uma mula-sem-cabeça tingindo de branco o azul do céu e, parece que foi o encantamento da nuvem mula sem cabeça que tomou conta de todo o seu ser, apoderando-se dele e o animando em pensamentos delirantes, transbordantes: “em que que Sebastiana, naquele instante, naquele justo de hora, estaria pensando? Será que pensava nele, José Antônio, a danada mulher ? Será que, depois dos acontecidos, Sebastiana enxergava nele o sonho de gerar um filho? Ou estaria brava, de ovo atravessado, cheia de ofendidas raivas pela ousadia de minha fala?” E foi então que a mula sem cabeça, formada pela nuvenzinha no céu, começou a se turvar, se plumbeando toda e, empurrada pelo vento, ou, até acredito mais nisso, por outras forças, iniciou uma rápida marcha de descida e direção à terra, a tudo cobrindo, enevoando a clareira do Toca da Onça, onde estava José Antônio a fumar. E deu-se então que a fumaça do cigarro foi se misturando com a névoa da nuvem da mulinha sem cabeça e o branco das fumaças do cigarro e das névoas foi encobrindo as árvores, as pedras, os pássaros, o sol e mesmo o olhar do anjo da guarda que tudo via, deixando José Antônio a sós com Sebastiana. Será, pensou, que era a fumaça do cigarro forte que promovia tantas delícias em sua alma? Sim, delícias porque não teve medo, e melhor que isso, sentiu a presença de Sebastiana no meio do nevoeiro, perto demais, junto dele, quase sentindo os cheiros dela. Medo? Medo não, apesar de nunca aquilo lhe ter acontecido até então, jamais ocorrido, nunca antes visto, sentido ou sonhado. Mas aconteceu nos ocorridos! José Antônio teve a certeza da presença de Sebastiana ao seu lado e resolveu, dali onde estava à beira do Toca das Onças, enfiar seus pensamentos cabeça adentro da mulher, misturar na cabeça dela as suas vontades e seus desejos! Fazer fervilhar um redemoinho de ideias, de desejos e de sonhos: tudo misturado, dos dois – dele e de Sebastiana – e deixar subir o redemoinho, ao sabor dos ventos, se elevando aos céus, levantando folhas, ciscos e poeiras, assustando as mansas vacas, aconchegando em seu miolo materno de redemoinho o saci de uma perna só com seu cachimbo aceso, suas fumaças. Medo não: quem não arrisca não petisca! E sentiu Sebastiana ao seu lado ali: toda presente. Não pode ser? Você não acredita? Precisa de real para crer, como o São Tomé, o santo do ver para crer? Mas, me diga então: você acredita na luz da vela que alumia as nossos corpos no escuro do quarto sem tocá-los? Experimente: na escuridão de um breu total chega a luz da vela, quieta, sem volume ou matéria, e alumia os braços, as mãos, os peitos de Sebastiana aos seus olhos, que graças a luz da vela tudo vê: acabou –se a escuridão do breu. Era tal e qual o que ocorria ali, no Toca da Onça, mesma coisa: eram não matérias – reais não matérias, como a luz da vela, ou a luz do sol - se tocando, confabulando futuros, agora estes futuros , sim, materiais em suas concretudes sonhadas. E soube Sebastiana dividida ao meio: urgia decisões difíceis, pesando os futuros, lacrimosa: sem filho, se sentia vazia, queria um filho como quem quer a própria vida; e soube dela que andava por pouco a chorar: imagine que chorava até mesmo, quando via os bezerros mamando nos peitos das vacas, e estas - olhos enormemente negros – sentindo as cabeçadas dos filhos nos seus peitos e não reclamavam da dor: ao contrário, as cabeçadas faziam descer o leite que tinha escondido dentro de si, no mais fundo de seu corpo, escondido do homem que, todas as manhãs, amarrava suas pernas e sugava suas tetas com as mãos fortes, em movimentos de cima para baixo, querendo encher seus baldes com o leite do filho bezerro! Sebastiana disse que também chorava ao entardecer que era a hora de apartar vacas e bezerros, chorava ao ouvir o berrar agudo do filhote e a resposta – o berro grave – da mãe, como que respondendo: “logo logo a gente se vê e eu te dou o meu leite e você que ao me esvaziar de leite, vai me encher de vida.” Mas, e o Chico? O que será do Chico? Será o fim! E José Antônio, calado, fumando seu cigarro, alimentando ainda mais, com a fumaça do cigarro de palha, o nevoeiro da nuvem parecida com a mula sem cabeça que se desmanchava sobre os dois, reconheceu que tudo estava resolvido. Geraria um filho em Sebastiana e era, naquela hora, tudo o que ela mais queria. Onde encontrariam outra nuvem a descer sobre eles escondendo-os de todos os olhares, até o de Deus? E a imagem da paineira que fica no fundo do cerradinho, perto do curral do sítio do Chico de Barros, surgiu como uma fotografia: a pequena paineira protegendo os corpos do sol, as flores brancas e de miolos rosa, esparramadas lindamente no chão como que enfeitando os chãos para o amor. Um lençol de flores de paineira. Mas, e Nair? Será o fim! O amanhã é o amanha, o agora é o agora! E foi então que o sol iniciou a se enfiar no meio do nevoeiro, dissipando a nuvem que tudo escondia de todos os olhares, mesmo o olhar da Virgem Maria que tudo espiava, clareando as árvores, sobrando somente a fumaça catinguda do cigarro de José Antônio. Sonhou? Desmaiou de sonhos, ou foi real? Sentia, agora, apenas o cheiro de Sebastiana, não mais ali, para onde teria ido? Havia enlouquecido? Fraqueza no estômago e fumaça forte demais do cigarro de fumo goiano? Zonzo de bêbado, cambaleante como quando tomava seus tragos a mais de cachaça, pegou o enxadão e foi a caça de minhocas... Voltou para casa tardezinha com duas fieiras de negras e escorregadias gambevas para fritar. Apartou as vacas dos bezerros, decidido que na manhã seguinte queria tirar leite das vacas e jantou quieto, mudo: dava para ouvir, na cozinha, o “creque creque” do barulho dos ossinhos das gambevas nos dentes! “Cuidado que peixe tem espinho menino: mastiga direito senão vai engasgar.” Deitou e dormiu.

terça-feira, 10 de julho de 2012

O VISITANTE–III– JOSÉ ANTÔNIO:UM REDEMOINHO DE PENSARES E SOLUÇÕES!

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O visitante continua em suas memoriações: as três cruzinhas, o José Antônio, a Sebastiana, o Chico de Barros, as adivinhações com ajuda de São Cipriano...sua mente como que embaralha, desvaria , tantas imaginações misturadas.

Nos bailes e nos velórios, alma umedecida com café e pinga, os mais velhos contavam que nas noites de lua cheia os lobos saiam de suas tocas encravadas nos fundões das furnas e, uivando, com os olhos acesos e os dentes à mostra, vinham até as três cruzinhas cavar o chão à busca de carnes; os que assim acreditavam e assim contavam nos velórios e nos bailes eram desmentidos e contestados pelos que duvidavam do escutado, achando que era apenas para meter medo, porque, diziam os incrédulos nas fantásticas histórias, nos reais dos conhecimentos, os lobos são bichos, tal e qual as onças, carnívoros, acostumados a carnes quentes; quem gosta de carnes frias e podres é urubu e tatupeba. Mas mesmo assim, alguns mais velhos, teimavam em afirmar e que tinham chegado a avistar rastros, sinais evidentes de que os lobos tinham vindo até as cruzinhas e, com suas patas afiadas, cavado o pedregoso e duro chão que cobria e abrigava os três corpos. Procurando o que os lobos? Carnes? Não mais: tem nada mais de carne não, tanto tempo passado; as carnes dos corpos já teriam, por ali, sido comidas pelas larvas, minhocas, tatus-pebas e outros desconhecidos e pequenos seres que só respeitam o que é vital aos homens: os ossos que devem ainda estar por lá, afundados meio às pedras e areias do serrado. Outros falam que também os cabelos e as unhas são vitais, não se deixam consumir: e o Barsanufo, coveiro há mais de trinta anos, fala histórias de unhas e cabelos que cresceram e cresceram nos fundões dos chãos! E o visitante confessava , confabulava com ele mesmo que tinha medo até mesmo de pensar em cabelos e unhas que, se esquecendo de suas tão naturais mortes, continuavam vivos, crescendo e, igual um broto de bambu, à busca de claridade saem de suas covas e, como plantas, se transformando em flores nos campos! Cruz credo! Ainda bem que era só pensar, nos abstratos, sem a dureza dos concretos: pensar não cansa e fantasia as realidades ásperas dos cotidianos reais.

Mas José Antônio quer lá saber de lobos ou de carnes mortas? Não! Sem conhecer, mas levado por humano e ancestral instinto, o homem resolveu se espelhar em Zeus que quando descobriu Helena, se endoideceu todo, não se intimidou com as reações da esposa Hera nem com sua reputação de Deus maior e passou a viver uma ideia só: fazer amor com Helena; para isso - possuir Helena - , foi necessário, contam os livros, se transfigurar em cisne ou ganso, sabe-se lá, é o que se conta, mas a verdade é que Zeus, por Helena, se transformaria até mesmo em um sapo, ou mesmo cortaria uma perna , fumaria cachimbo e se transformaria em um saci ou, se necessário, colocaria fogo pelos olhos e pela boca e viraria um capeta, qualquer coisa! Helenas! Mas isso foi há muito tempo atrás, nos inícios do mundo, quando os deuses e os homens se misturavam na ocupação da Terra e não nos tempos de agora, tempos de José Antônio enlouquecido de amor por Sebastiana e suas carnes redondas, cheirosas, seus peitos parecendo mamões, bicos roxos! Sebastianas! Só pensa nisso: Sebastiana ocupa o mundo: não se incomoda e deixa o capim crescer, cobrir o cafezal, nada de obrigações rotineiras, cansativas, desumanas: deixa os bezerros no mesmo pasto das vacas-mães, não apartados, e assim, os bezerros ficam o dia inteiro a sugar o total do leite dos úberes, que para eles é muito melhor e mais gostoso que comer capim, secando-os, deixando-os murchos, vazios de leite, parecendo as tetas de Nair, sem leite para tirar de madrugada, e José Antônio volta do curral com os baldes vazios de leite para encher os galões e para os filhos. Sebastiana! Seus peitos empinados como mamões: Sebastiana!

E foi Nair, sua mulher, que segredou, semanas depois, em uma tarde, quando foi até o cafezal levar cabaça com água fria da mina e uma tigela de arroz doce; o marido carpia e Nair o colocou a par dos acontecidos na benziçaõ acontecida nas três cruzinhas. E José Antônio sabia, agora, que o encantado corpo de Sebastiana queria filhos e que , Chico de Barros, por doença, não dava conta. E, enquanto comia a tigela de arroz doce, não contou para Sebastiana, mas se lembrou: Chico de Barros, quando rapaz, tinha se enrabichado com uma ciganinha acampada nas beiras da vila e, noites e noites, mesmo correndo perigos de morte, se enfiava embaixo da tenda dos ciganos, tateando e guiado pelos cheiros encontrava a ciganinha e, em silêncio, gemidos mudos, os dois se possuíam. Mas os ciganos, que enquanto estavam acampados perto da vila roubaram cavalos e mulas, venderam tachos de cobre, leram a sorte tanto nas mãos de católicos como dos espíritas, em uma sexta-feira qualquer, sem a ninguém avisar, sem motivos reais aparentes, se foram. Partiram! Os ciganos são assim: árvores sem raízes, ou nos piores, semelhantes a umas árvores dos charques beira-mar, que em obediência às cheias e vazantes têm raízes andantes, parecidas com perna de pau que os meninos gostam de brincar e ao longo dos tempos, devagarzinho, imperceptíveis aos olhos, se mudam de lugar. Mas, estou eu, de novo, a mudar de assunto, pensa o visitante. Volta ao assunto: Chico de Barros ficou a chorar a ausência de seu amor cigano e a dor de uma doença que começou jorrando pus na cabeça do pinto e depois foi se abaixando pinto abaixo, inchou suas duas bolas, seu saco, deixando o rapaz acamado, febril. Chás, remédios caseiros, simpatias e nada: só piorava: o saco dolorido e o pinto jorrando pus mais que urina, sujando cuecas, toalhas e lençóis; por sorte teve o Doutor Sudário, que abaixo de Deus, o curou: em sua visita mensal à vila, visitou o rapaz e só de olhar o saco inchado e as manchas na cueca leu a doença e recomendou remédios de farmácia; e como as ciganas que liam as mãos, ao sair, Doutor Sudário falou com o pai de Chico de Barros: “pode ser que a doença do menino tenha secado a sua fonte de vida e, se isso acontecer, embora não vá tirar do rapaz a sanha para ter e gostar de mulher, e em nada diminuir suas forças e competências para o amor, pode afetar e impedir que o rapaz gere filhos! Isso não é certo , mas pode acontecer e não se esqueçam de dar os remédios como receitei. Mês que vem volto aqui e vejo o menino de novo”. Sem muita importância na história, mas só para contar: mês depois, quando Doutor Sudário voltou à vila, não viu o rapaz: forte, faceiro e curado tinha ido ao rio pescar. Curado? Nem tanto: a gonorreia deixou sequelas - a difícil às vezes incompreensível palavra do Doutor Sudário: “sequela” , na mansa palavra que fugia da compreensão dos não estudados , dos mais simples, ou “castigo de Deus”, como queria crer o fervoroso e devoto pai?

Uma manhã, mais uma vez, José Antônio volta do curral com os baldes de leite vazios. E um inferno aconteceu em sua cabeça: Nair furiosa com o desleixo do marido em não mais apartar os bezerros das vacas, chorava lágrimas silenciosas pelo futuro que antevia , os filhos, estes mais inocentes das realidades, reclamavam a falta do leite espumoso que enchiam suas barrigas nas manhãzinhas. Resolveu: “vou buscar leite emprestado com o Chico de Barros” e não deixou ser acompanhado, como de costume quando isso acontecia, pelo filho mais velho que gostava de ir pedir benção ao padrinho e a madrinha. E foi só, nas mãos a leiteira, que chegou ao alto do morro de onde dava para avistar as redondezas todas: se via, de lá, as três cruzinhas e o trilho que saia da casa do Chico de Barros até a estrada de chão esburacada e pela qual vinha o caminhão buscar os galões de leite. Ficou por lá, dando um tempo, quieto fumando seu cigarro de palha: esperou ver a carrocinha puxada por um burro, guiada por Chico de Barros que ia levar o leite para ser recolhido. Só então desceu o morro, tempo bem calculado em sua cabeça, certeza de encontrar Sebastiana sozinha. E foi mesmo assim que aconteceu. Chegou no terreiro da casa dos compadres, tossiu para avisar de sua presença, Sebastiana com duas espigas de milho nas mãos chamando as galinhas para comer: “pru, pru, ti, ti, ti, ti, pruuu...!” Sebastiana rodeada de galinhas que ciscavam e se beliscavam famintas de comer milho: “Uai compadre...logo cedo aqui; Chico foi levar o leite pro caminhão; comadre e os meninos estão bem? Alguma coisa?”, “nada, tudo bem, queria um litrinho de leite emprestado, leite para as crianças, pois me esqueci de apartar as vacas ontem”, “claro, compadre, quer leite já fervido? Vou pegar”. E José Antônio acompanhou com os olhos Sebastiana deixar o terreiro de casa e se enfiar cozinha adentro buscar o leite, e, naquele instante de segundos , resolveu: “viver assim não dá: endoideço e endoideço todo o mundo, vou resolver isso, e agora”. Sebastiana voltou com a leiteira cheia de leite quente para entregar ao compadre e estranho suas mãos quentes que mais tocavam as suas do que segurava a asa da leiteira, os olhos soltando faíscas, uma quentura úmida exalando do corpo, ocupando os espaços: “Deus do céu, o que tem o compadre?” , e retirou suas mãos debaixo das mãos do compadre que, enlouquecido, desembestou a falar: “Sebastiana eu sei que está a sofrer. Sei que quer um filho e, por mais que tente, não tem. E não vai ter se continuar assim. Isso, essa sua vontade de filho, mais que de homem, pode te endoidecer, acabar com sua saúde e, comadre, posso te assegurar: o compadre Chico não te fará esse filho desejado.”, “Compadre o que está a dizer, comadre te falou alguma coisa, desrespeitou o segredo de mulheres?”, “Comadre: eu tenho a solução...” “Compadre, pare, é o Chico que chega, veja o latido dos cachorros”. “Oi Chico, vim aqui pegar um litro de leite emprestado, não apartei as vacas ontem e estou sem leite para os meninos, já me vou”, “Bebe um café, compadre, Sebastiana coa um café novo”. Sebastiana chegou no terreiro com o bule e duas canecas de ágata: o cheiro do café tomou conta do terreiro, exigindo silêncios. As mãos de Sebastiana tremiam: “Chico, pegue logo o café que tá quente, queimando minha mão”; e voltou para dentro de casa apressada e o coração de José Antônio encheu-se de alegria. José Antônio tomou uma golada de café e tomou coragem: “Vamos jogar truco amanha compadre: hoje é sexta-feira.”, “Posso não compadre: amanhã vou na vila, pegar rabeia no caminhão do Dito leiteiro; vou cedo: Sebastiana quer umas compras, deixe pra semana”, “Então a comadre quer comprar chitas? Sobrando dinheiro da colheita, compadre?”, “Nada de chita, Sebastiana vai ficar: vou buscar querosene, óleo, veneno para formigas e se sobrar compro um talho de bacalhau seco”.

E José Antônio voltou para casa: as mãos quentes com o calor do leite fervido na leiteira, o cheiro das mãos de Sebastiana misturados com o cheiro do leite quente: não conseguia pensar, tudo embaralhava sua mente, havia ficado louco? Como uma tormenta de chuva de março: águas e raios, tudo ao mesmo tempo: baixava uma felicidade junto com um medo do que tinha feito; mas o que tinha feito? tinha tão apenas e simplesmente segurado nas mãos de Sebastiana; será que era mais o medo do que estava para acontecer? era a leiteira queimava suas mãos ou era a quentura das mãos de Sebastiana? será que ela tinha entendido? O que seria o amanhã? Oh! o amanhã, com certeza diferente do hoje, isso eu garanto, pensava. Chegou em casa e entregou a leiteira pra mulher e resolveu que ia pescar: queria um dia de solidão, beira do córrego da Toca da Onça, pegar gambevas, fumar cigarros e cigarros...aliviar o pensar do futuro do amanhã. Deixou Nair com a leiteira na cozinha, nada falou, foi até a tulha, pegou as varas e anzóis, um pequeno enxadão para catar minhocas e partiu. Só!

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O VISITANTE–II–AS TRÊS CRUZINHAS!

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O visitante continua pensando sua história:
Em se vindo da vila para o sítio do Rebita Unha ou do Tira Prosa, quando se vê, ou melhor, quando se chega nas três cruzinhas, sabe que é hora de largar a estradinha de chão toda esburacada, machucada pelas pesadas e agudas rodas das carroças e dos carros de boi que nela trafegavam, marcada aqui e acolá por amontoados de bosta de vaca e de cavalo se assemelha, de longe, a flores negras enfeitando o rosado pedregosos da estrada, e pegar, às esquerdas, o estreito e tortuoso trilho que leva aos sítios dos acontecidos que estou aqui a rememorar.
O que se conta das três cruzinhas? Vi, com estes olhos que a terra vai comer, as cruzinhas que sob o sol escaldante, se achavam enfeitadas de flores, colhidas por contritos cristãos e levadas até os seus pés na busca de alcançar graças ou de agradecer milagres. Galhos com flores azuis de jacarandá mimoso quebrando a monotonia, fazendo companhia para as solitárias cruzinhas. Era assim. Quem? Ora, sabe-se lá, muitos: alguns em louvor de uma graça alcançada na cura da dolorosa espinhela caída, que impedia o trabalho com enxada ou de montar cavalo; outros, estes quase sempre os mais de perto, das vizinhanças redondezas, que levavam garrafas verdes cheias d´água e buquês de flores colhidas nos quintais de suas casas: vermelhas crista de galo, azuis hortênsias, brancas margarida, onze horas, e outras mais que eram ali colocadas, parede meia das verdes garrafas cheias d´água e ali deixadas ali depois de rezas e cantos clamando por chuvas que vez ou outra faltava e quando isso acontecia vinha junto a miséria, a fome, a morte...Voltando ao assunto: se sabe que as três cruzinhas foram feitas em boa e forte madeira de aroeira, e ali enfiadas, naquele deserto do serrado do chapadão dos Biasoli, para marcar e cerimoniar a morte de três pessoas: um casal – Gerônimo e Bárbara – e sua filha Maria, a Virgem, mortos, juntos, na mesma hora e instante, por um raio, em uma tarde de um dia 19 de março, dia das enchentes de São José. Os três corpos, fulminados e queimados pelo raio, molhados e encharcados pelas fortes chuvas que todo ano acontece no dia 19 de março, foram encontrados por Salim, um mascate turco, que por ali passava pelo motivo de sua função de viajar em seu trabalho de mascatear. Salim montava, naquela manhã do dia vinte de março, sua mula negra, selada com arreio cutiano e carregava duas malas de couro, parecendo arcas, cheias de mercadorias nas costas de um jumento orelhudo, de olhar triste. E o que se conta foi que o mascate Salim, compadecido com os corpos ao relento, urubus sobrevoando famintos, esperando o fedor para atacar as carniças, deixou o jumento ali vigiando os corpos e assustando os urubus e trotou, tão célere quanto pode trotar uma mula, para a vila trazendo junto dele o padre para benzer e encomendar os corpos e Barsanufo, coveiro de profissão, para fazer as covas e ajudar no enterramento da família de defuntos.
Conto mais das três cruzinhas depois.
Quero, agora, buscar nos fundos dos meus miolos o que se passava com José Antônio depois do susto de sua coragem em pensar Sebastiana como mulher. Enlouquecido? É o que parecia, ou melhor dizendo, assim se sentia. O homem, taciturno, remoía em sua cabeça o tanto de tempo – dias, semanas, meses, verões, invernos ou anos, quem sabe? – que levou para criar coragem em pensar Sebastiana como mulher, e concluiu, sozinho, que já que desgraça pouca é bobagem, não queria mais saber de ter Sebastiana em seus sonhos, ou em seus delírios em cima da carne, agora magra e sem perfume, da mulher Nair ou mesmo, vergonha de pensar, mas que ocorreu, sim, e mais de uma vez, quando sozinho no meio do mato ou escondido na beira do córrego, possuir, em Sebastiana em seus pensamentos: e naquelas horas, possuía com toda a força e sentires possíveis e imagináveis. Não: de agora em diante, nada mais de sonhos e delírios oníricos! Resolveu que, desde agora, o que queria era a verdade quente e macia de suas carnes, os bicos roxos de seus peitos, queria ouvir seus gemidos, saborear seus cheiros; e o que sentia era mais forte que tudo: incomparavelmente mais forte que amizades, apadrinhamentos, filhos, rezas e pecados. Queria Sebastiana sua: resolvido! E contava, em sua querência, com todos os riscos: brigas e mortes! Conhecia bem Chico de Barros, em sua quietude calada, e sabia que o afilhado, com certeza, não temeria a morte frente a vergonha da desonra e da dor da traição. E foram naqueles dias e dias de pensamento decisório, que José Antônio se enxergou por dentro com uma clareza nunca antes pensada: percebeu, em sua alma, o fim do mundo ordenado e previsível como a sucessão da noite depois do dia e a chegada de um vulcão de incertezas que brotava com toda a força nas profundezas do seu ser, derramando larvas em seu corpo, queimando sua pele, seus peitos, seu ventre, queimando, enfim, o seu ser, que a partir daquele agora, já era outro ser. Mas, tudo resolvido: seja o que Deus quiser.
Estava assim a matutar quando, numa manhã, avistou Sebastiana que chegava em sua casa a procura de Nair e aquela visão bastou: não havia outro rumo possível a não ser o que havia traçado. Mas o que queria, ainda tão cedo da manhã, ali em sua casa, Sebastiana? Será que tinha vindo pedir açúcar ou pó de café emprestado? Sebastiana passou por ele, pediu benção e enfiou-se casa a dentro a procura de Nair. Coisas de mulher? Assuntos de receitas? Sabe-se lá. O que sei, o que se conta, é que José Antônio, que se preparava, enxada às costas, para ir capinar o cafezal do Tira Prosa, curioso pelos motivos da visita e com o coração exigindo ter por perto o corpo de Sebastiana, tirou do ombro a enxada e voltou para dentro de casa, na cozinha e foi ao fogão tomar mais café do bule: e bebeu café com os ouvidos atentos como para ouvir o voo da coruja, na tentação de escutar as confabulações que, em sussurros, se ouvia no quarto.
Foi para a roça capinar, cumprir seu dever e do alto do pequeno monte, beira da matinha, viu sair de sua casa Sebastiana e sua mulher Nair. Sebastiana de mãos vazias, ajeitava ora sim ora as tranças nos cabelos e Nair com as mãos ocupadas: uma com o grande rosário de contas cor de maravilha e a outra carregava a cestinha de bambu que tinha dentro os cordões bentos usados para cura de males com benzeção e rezas, o livro com capa vermelha de São Cipriano e as agulhas de costurar sacos de linhagem que Nair gostava de usar muito mais para confirmar as anunciações adivinhadas pelo Santo. E caminharam, as duas, rumo das três cruzinhas! Foi lá, junto as três cruzinhas, que as benzeções tiveram seus inícios e seus acontecidos: rezas, pedidos e a chave presa dentro do livro de São Cipriano teimando em virar para o lado errado, querendo dizer não, quando a pergunta é se Sebastiana teria filhos. Não: não teria, afirmava o Santo fazendo a chave se virar para as esquerdas, que é assim que responde o São Cipriano: se rodasse para as direitas a resposta seria positiva. “Mas, São Cipriano, que está presente, ela , sua filha Sebastiana, não vai ter filhos este ano ou nos nunca mais?” “Nunca”, responde o Santo. Sebastiana e Nair se põem, ambas as duas a chorar. Nair insiste agora com a sorte com as agulhas: esperança! E as agulhas, para que lado iam pender? Para o mesmo lado das negativas do Santo: confirmado então que, seguindo os conformes, Sebastiana não teria os filhos tão desejados. Pobre menina mulher Sebastiana. E os males eram seus? “Vamos consultar? Quer?”. “Sim, quero de tudo saber.” E Nair, contrita, invoca a presença do Santo: “São Cipriano está presente?”. Silêncio. “Responde pelo amor da Virgem: São Cipriano está presente?”. E a chave dentro do livro de capa vermelha do São Cipriano gira afirmativamente. Sim o Santo está ali junto as duas mulheres e as almas dos três mortos pelo raio. E Nair: “É o corpo de Sebastiana que não pode ter filhos, São Cipriano?” E a chave gira para as esquerdas. “Não é o seu corpo Sebastiana. Você pode. Vamos confirmar com as agulhas”. Prende a agulha no cordão bento, ora com os olhos fechados, suas mãos tremem, emocionada: e a agulha gira para as esquerdas: “Não é o seu corpo, Sebastiana. Agora, minha filha, penso que devemos ajoelhar e rezar.” Ajoelharam as duas: Nair puxou o rosário e as vozes das duas mulheres ecoaram no silêncio do serrado: “ave-maria cheia de graça, o senhor é convosco, bendito é o fruto, de vosso ventre”: Sebastiana chorava e rezava. Rezava e orava: seus soluços se confundiam com os améns e com o Pai nosso que estais nos céus, “quero tanto um filho, o que será de mim?” Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte, Amém.
E Nair, condoída, achou melhor e por bem acompanhar Sebastiana, que tinha o corpo em tudo sarado para gerar e parir filhos e filhos, até sua casa, continuar em suas rezas e oferecer, ver se ela tomava, chá de erva cidreira,

sábado, 9 de junho de 2012

O VISITANTE: - I - OS SÍTIOS DO REBITA UNHA E DO TIRA PROSA.

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“Aquele morto voltou para assistir à primeira reunião familiar

E retirou-se agradecido

Ao ver que seus saudosos parentes estavam falando de outras coisas...”

“in” Quintana, Mário – Velório sem defuntos.

Gostava de contar histórias o visitante! E como gostava! “E de onde as tirava?”, pensava eu? “Deve ser igual aos mágicos dos circos, que pululavam pelo interior a fora com suas lonas gastas, que tiravam – mágica e assombrosamente - de dentro de ocos chapéus ou de vazios bolsos, coelhos orelhudos, baralhos ou lenços vermelhos misturados com pombas brancas? Circos do interior: a moça de cintura fina e pernas bem torneadas de fora, cabelos negros, um coração vermelho pintado no lado esquerdo da face, olhos maquiados, ajudando o mágico. Diziam, nos bares, que era com que ele que ela – sonhando mágicas - dormia depois do espetáculo.

Para contar qualquer história se faz necessário preambular e, ademais que isso, solicitar paciência de quem escuta, pois a história - na verdade dos acontecidos – ocorre tudo ao mesmo tempo, em diferentes lugares, juntando distintas pessoas, diversos amores, paisagens, sons e cheiros; pensando bem e fazendo uma comparação uma história é tal como o raio e o trovão: os dois, uma só coisa – fenômeno primordialmente único – mas vivemos em dois tempos: primeiro vivemos o riscar brilhante no horizonte e depois, muitas vezes dando tempo até de fazer o sinal da cruz e pedir ajuda a São Gerônimo, Santa Bárbara e a Virgem –, só depois é que, assustados, mãos em concha tapando os ouvidos, vivemos o barulho forte do trovão, que é o barulho do raio. Aqui, nesta história, também: tudo está acontecendo ao mesmo tempo e só para contar é que se em que se vai dividindo, separando: necessárias estratégias para o contador visitante se fazer entender. Complexidades!

Ele conta:

Duas pequenas propriedades, dois pequenos sítios, vizinhos, existentes nas gerais de Minas, enfiados nas costas da Mantiqueira. O primeiro, e ponho nesta ordem para facilitar o entendimento, tinha por nome Rebita Unha e o segundo Tira Prosa. E este “tinha”, no passado, também é uma forma de se contar que os que moravam e existiam nos dois sítios – época dos acontecidos - não mais estão mais por lá: sobraram as casas – vazias –, os pastos – outras vacas e cavalos – e as roças – expirantes - de café.

Só pelos nomes – Rebita Unha e Tira Prosa - dá para imaginar suas feições: sítios, ambos os dois, em terrenos pedregosos, secos, beirando os precipícios e tembés da negra serra da Mantiqueira, lobos uivando nas noites de lua, isolados dos mundos da luz elétrica e dos telefones. Em fins de semana, nas épocas em que se negociavam os resultados das colheitas – cafés, arrozes, milhos e feijões - seus donos se banhavam no riacho ou na bacia, ensaboavam o corpo, cortavam as barbas com a navalha, tiravam da arca as roupas de sair e iam para a cidade de carroça ou de charrete; lá, na vila, se dedicavam a vender o que haviam colhido e a comprar querosene para as lamparinas e metros de panos: chitas para os vestidos e brim para as calças; agora quando a colheita era farta se comprava extravagâncias: sardinha e bacalhau salgados, pó de arroz para embelezar os rostos das mulheres...e o que mais se comprava? A cada dois anos um chapéu, uma sombrinha para esconder o rosto da mulher do sol e era quase que só isso: o mais das necessidades se plantava e se colhia nos sítios do Rebita Unha e do Tira Prosa, fora o que já existia, por Deus, de graça na natureza: pés e pés de araticuns, jurubebas, bacuparis, gabirobas, jatobás e as caças: seriemas, rolinhas, nambus, codornas, porco do mato, um veadinho ou outro – estes mais difíceis de se ver, ariscos – as pacas, os preás, e peixes e peixes no córrego do Bom Jesus.

Dois sítios, duas famílias. No Rebita Unha: o casal José Antônio e Nair, mais três filhos, o cachorro Duque, dois cavalos machos e a égua Briosa, uma meia dúzia de vacas que dava para o gasto de leite e no chiqueiro cercado e fétido, porcos para a carne e a banha. E o que mais que tinha no Rebita Unha? Tinha as roças de arroz, de feijão e de milho separadas dos mais de mil pés de café, que se colhia nos dias frios de julho. Neste ano do ocorrido esta história a colheita do café foi fraca, pouca produção e compras mais medidas na cidade: nada de extravagâncias!

No Tira Prosa, o outro sítio vizinho: Chico de Barros – rapaz novo ainda - , sua mulher: Sebastiana – de quem tenho que contar melhor depois, daqui a pouco, dois cachorros: o Vinagre e o Duque, vacas, poucas, dois bois capões para uso no carro de boi, um cavalo e duas mulas. No quintal: laranjeiras e mexeriqueiras que nos meses de junho e julho se carregam com tantas frutas doces que fazia com que os galhos, com o peso das frutas se arrastarem no chão, formando uma choupana onde as galinhas ciscavam e se escondiam, sim, porque naqueles dois sítios, soltas nos quintais, meio as laranjeiras e mangueiras, galinhas e mais galinhas: ovos quase diários e carne aos domingos de vistas ou dias santos.

Duas vezes por mês, sempre aos sábados, noitinha, os dois vizinhos se juntavam para o jogo de truco: os homens jogavam truco e bebiam o café coado pelas mulheres que conversavam e confabulavam na cozinha. Mais raramente se juntava aos dois, que combinados se jogava de parceiros contra, o Arnaldo e o Alcindo Baltazar; e quando o jogo era assim, a quatro, se apostava leitão assado: quem perdia o jogo devia o leitão para o outro jogo. Mas isso era mais raramente, muito uma vez ou outra. O de rotina, de sempre, todo o mês eram os compadres José Antônio e Chico de Barros urrarem “truco, seis...seu ladrão” e bebiam café de coador. Também muito raramente é que uma família dormia, no chão forrado de panos de colher café, na casa do outro: o mais normal era que lá pelas nove horas, se acabava o jogo, despedidas e no escuro, quando não se tinha lua cheia, o visitante voltava para sua casa, seu quarto, sua cama. Manhã do dia seguinte acordava com as obrigações de tirar leite, cuidar dos porcos e isso mesmo que fosse dia de domingo: o dia de folga mesmo, guardado e naquele dia nem a casa se varria – era um só no ano: sexta-feira santa, dia da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

E foi em um dia de jogo de truco com os irmãos Baltazar – Alcindo e Arnaldo – valendo um leitão assado que desta vez foi assado pelos visitantes que perderam a última queda de truco, que os berros no jogo de truco se fizeram escutar mais longe: entusiasmo, talvez, acrescido pelas doses de pinga, pelas companhias diferentes, pelos torresmos, pelas tripas de porco fritas...E foi naquela noite que José Antônio tomou coragem por dentro de ver e comparar Sebastiana sem as censuras de ser seu padrinho de casamento e compadre do marido dela, que batizou seu filho mais novo. Além disso tem-se que pesar que os dois eram primos distantes - compadres, amigos e primos distantes - : assim todo respeito era pouco. Mas naquela noite José Antônio se livrou de todas estas considerações e viu que Sebastiana era moça forte, bem torneada, peitos parecendo mamão empinados, traseiro redondo, rebolante quando andava. Chico de Barros e Sebastiana eram casados há pouco mais de dois anos; Chico descobriu a moça lá pelas bandas de Tocos de Mogi, quando foi lá um dia jogar futebol. Se apaixonou, prometeu a si mesmo e cumpriu: pediu a mão da moça e casou com ela de papel passado e cerimônia religiosa na igreja da vila. Como já disse antes, na Igreja, o padrinho foi José Antônio. Não tinham filhos nestes dois primeiros anos de casados e se os filhos não vinham não por falta de tentativas que eram tantas que os dois não sabiam muito bem se tentavam por querer filhos correndo no quintal da casa ou se era por necessidades puras de desejos de enrolar seus corpos quentes: um recheado, curvento e outro magro, ossos saindo fora, peito cabeludo. Carinhos! Amores!

E naquela noite José Antônio reolhou sua mulher: Dona Nair, e já ponho aqui o Dona antes do nome, pelo olhar entristecido do marido que viu a mulher parecendo mais que os seus trinta e tantos anos que realmente tinha: olhos azuis, cabelos escorridos, loiros, quase sem bunda de tão reto o traseiro, poucos peitos e um coração enorme de bom: um poço de bondade. Benzedeira afamada: benzia com orações e costurava curando males de quebradura ou de espinhela caída com barbante, puxava os terços e cantava, voz doce, nas rezas e terços de clamação por chuvas. Aparentava mais idade que tinha de verdade: as rugas e uma tristeza indefinida no olhar davam a ela anos a mais.

E naquela noite comeram leitão, beberam pinga e jogaram. Nove horas, noite escura, se iniciam as despedidas com José Antônio, ainda, com os olhos corajosos em cima da Sebastiana; as mulheres terminam de falar das receitas de pé de moleque, de outros assuntos de mulher já fora de casa, céu aberto, estrelado e o homens foram se despedindo e combinando o próximo desafio: a turma dos Baltazar ganhou, desta vez, as três quedas de truco, cada queda com três mãos e o próximo leitão seria de responsabilidade dos primos distantes José Antônio e Chico Barros.

Todos saíram pelo escuro da noite, cada qual buscando o caminho de casa: os Baltazar se foram montados em seus dois cavalos e Chico de Barros foi-se embora, a pé, levando consigo a Sebastiana que ficou nos olhos de José Antônio: que deitou, exigiu da mulher posições de amor e socou forte como nunca, penetrando o corpo magro com a fúria dos primeiros encontros, despejou fazendo sobrar entre as pernas da mulher o seu líquido pegajoso, uma vez e quis mais e mais assustando a esposa Nair com tantas e até então nunca vistas exigências de amor; e naquela noite foi que José Antônio possuiu fortemente em sua mulher os sonhos de possuir Sebastiana com seus seios iguais a dois mamões empinados, sua bunda gorda e forte, seus lábios grossos e seus dentes brancos; seu perfume de eucalipto, cabelos negros tapando o pescoço. E Dona Nair, assustada com tão estranha fúria, foi para o quintal, buscar água na cisterna para assear o corpo dolorido.

Chico de Barros e Sebastiana, calados, um frente do outro, seguiam caminho pelo trilho em direção a casa. Sebastiana tropeça e se enrola em uma touceira de capim vassoura e cai. Chico de Barros acode e busca levantar a mulher do meio do mato. Um beijo cobre seus lábios e os dois, apressados, não esperam chegar em casa e usufruir do quentinho do colchão de palha: aquecem os corpos e a touceira de capim vassoura se enrolando sob o céu estrelado, escuro...Se amam! Grilos saltitam, assustados soltando, olhos saindo fora do corpo,  “cri..cri...cri”, temerosos de serem amassados pelos corpos nervosos, gementes. Adormecem os espasmos e chega aquela morte conhecida que acontece depois das fúrias do amor! Silêncio total! Céu forrado de estrelas piscantes: uma estela cai no vazio do céu, deixando o seu rastro lluminoso que se junta com as lanterninhas verdes de um vagalume vigilante, curioso, que ilumina o trilho de casa. E lá se vão os dois, agora de mãos dadas, lado a lado, tropeçando, felizes, trilho a fora.

Os Baltazares levam, na garupa de cada cavalo, cada um sua mulher. Vão quietos, felizes pela vitória no jogo de truco. O sacolejar, pelo trote vagaroso dos cavalos, faz esfregar delicadas e sensíveis partes do corpo no quente do pelego macio de pele de carneiro! As mãos das mulheres segurando na cintura para se equilibrarem nas gordas garupas dos cavalos antecipam o que ocorrerá, logo logo, nas camas dos Baltazares...

Dez horas: todos dormem nos sítios Rebita Unha, Tira Prosa e em suas cercanias. Ouve-se, quem tem ouvidos acordados e atentos, o crescer do capim e o cair do sereno no jaraguá!

terça-feira, 29 de maio de 2012

PROFUNDOS SERTÕES–III–FOI QUANDO A OUTRA ALMA PENADA CONTOU DO ENCONTRO DAS MORTES!

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“A primeira vítima foi um cabo do 9. Morreu matando. Ficou trespassado na sua baioneta o jagunço que o abatera atravessando-o com o ferrão de vaqueiro. A onda assaltante passou sobre os dois cadáveres” - “in” Cunha, Euclides, Os Sertões, pag. 348

Me apresento: Fabrício do Cocobocó é o meu nome; cabra vaqueiro foi a minha profissão: conheci, quando em vida, todos os recantos destes sertões; sentia e podia recitar todos os seus cheiros das vezes tão santamente delicados, seus sabores agrestes, salobros e áridos de tanta secura, conhecia seus perigos para quem está vivo e suas belezas, sendo que estas, as suas belezas, costumo apreciar mesmo agora, sem vida viva que é como estou; sim, porque o sertão tem, para quem aprecia silêncios e noites estreladas, belezas que enchem a alma de felicidade, quase fazendo se esquecer das agruras das secas, das mortes e das doenças. Sertões! Mas como dizia: minha vida se baseava no trabalho de vaqueiro nas enormes fazendas e posses que iam além dos horizontes visíveis, propriedades do coronel Bartolomeu; terras e mais terras: sertões, planuras, chapadas, chapadões e gerais que eu, montado em animal valente, pernas vestidas com perneiras de couro de vaca, protendo dos espinhosos ju-etê, seguia a sina de vaqueiro: nos tempos de paz escanchado atrás das pegadas deixadas pelos garrotes, vigiando os rastros, rastreando as marcas deixadas nos matinhos dobrados, amassados, pegando garrotes fugidios ou rezes perdidas em vaquejadas trabalhosas de muita ajuda entre vaqueiros, noites de conversas do dia acontecido entre vaqueiros: se fala e se conta casos de amor, de assombrações, da caipora, de tudo até o sono chegar; quando os tempos não eram de paz, obedecia as ordens do patrão e aí seguia os rastros de cabras que mereciam as mortes por punhal ou pelas balas do bacamarte, matava e a cada morte fazia um risco no cabo de madeira do bacamarte: era meu jeito de contar os mortos por chumbo do bacamarte ou, quando se precisava de silêncio, pela lâmina afiada do punhal. Muitas mortes: mais de uma dúzia de riscos no cabo da bacamarte; sempre, é preciso se afirmar, sempre seguindo as ordens do Coronel: mortes por dinheiros, por invasões de pastos, por roubo de gado ou por causa da coragem ousada de alguém de bolir com suas filhas: tinha duas, muito iguais, flores de lindezas, princesas em suas brancuras, olhos castanhos esverdeados, sobrancelhas negras e contrastantes nos rostos claros da falta de bater sol, lindas, as duas, nos cabelos longos descendo as costas quase chegando nas alturas da bunda; demais de bonitas mas, aqui eu comigo mesmo, tinha medo até de pensar besteiras: vai lá que o Coronel, como dizia Chico Ema, sabe ler os pensamentos: Deus me livre e guarde! Nem nos pensamentos eu boli ou desejei as carnes brancas das filhas do patrão: Medo! Vontades menor que o medo. E foi chegado uns tempos que o coronel passou a ter interesses na Chapadas da Diamantina: de lá, da Chapada, se ouvia contar das minas de diamantes, das riquezas possíveis que rolavam meio as pedras redondas do rio Pati, um rio que corre depressa, cheio de água marrom, em cima das pedras redondas; rio Pati de muitas cachoeiras onde as águas quando caem espumosas tapeiam as vistas parecendo trocar a cor marrom pela branca; rio de muitos variados peixes bom de se comer: farturas! Na Chapada, tanto em Mucugê como em Andaraí, para onde patrão me mandou, meu trabalho era menos de vaquejar e mais de seguir rastros de cabras: sempre em obediência ao Coronel, e posso dizer que lá, por aquelas bandas fiz mais de uma meia dúzia de riscos na bacamarte: matados com tiros, matados com meu facão jacaré, com meu punhal afiado ou com a longa parnaiba que nada mais é que uma espada usada por nós os vaqueiros. Mortes nos sertões! Muitas! Demais de mortes! Estava vivendo assim, com muitas mortes, até que chega um dia quando eu estava na casa das mulheres da vida em Mucugê, recebi a visita de Estevão, cabra da mais inteira confiança do patrão: “Coronel mandou te chamar” e eu larguei as doçuras dos carinhos de Maria da Conceição e tomei rumo da sede. Longas distâncias, muitos pensares: "que quer o coronel de mim? tenho matado direito, sem deixar rastros, cumprido todas as mortes encomendadas; será que já me acha velho para os serviços que precisa? Será que ele pensa que a velhice já chegou e não presto mais para perigos? Que velhice que nada: Maria da Conceição diz que, na rede, quando me encosto em seus peitos, sinto seus lábios mais me assemelho a um garrote novo. Danada de bonita a Maria da Conceição: se fosse homem de parar e me conformar em viver em um lugar só, ter uma casa, me casaria com ela. Gosto dela! Mas, para saber mesmo o que o Coronel quer de mim, só chegando e palestrando: vou mais de antes é escutar e escutar, entender o que o coronel quer de mim: ouvir o capim crescer e não falar bobagens de comprometimentos. Quieto!” Viajei e viajei: apreciei mais andar nas noites claras de lua cheia que no dias de sol quente do agreste. Conhecia os caminhos, todos: rios secos, atalhos, evitei de passar nas terras dos inimigos do patrão, podiam querer vinganças. A lua cheia foi diminuindo, as noites foram ficando escuras, negras e tornei a viajar durante o dia: sol quente, cavalo cansado, a fome apertando os dois: comi calangos, periás e cortei palmas, retirei os espinhos e dei de comer ao cavalo. Cheguei na sede e o Coronel me recebeu na varanda. Li em sua cara, antes mesmo dele iniciar sua conferência, que eu tinha sua confiança: seu bigode não tremeu em riba da boca e ele não demorou a contar o que queria: “Fabrício, vaqueiro bom: preciso de seus serviços! Careço de um cabra como você: honesto e cumpridor de ordens, mas corajoso e sem medos de matar e morrer. Preciso que você tire esta roupa de vaqueiro e vista a roupa azul do Exército Nacional da República do Brasil; é isso vaqueiro Raimundo, porque somos hoje uma República, a monarquia se foi, rabo entre as pernas, fugida para o Portugal das Europas, de onde nunca devia ter saído, e preciso de você na defesa da República contra os perigos que corre pelas ações dos bandidos do Antônio Conselheiro em Monte Santo e em Canudos. E é para lá que eu quero que você vá agora cumprir outras tarefas. É o que quero e preciso.” Troquei de vestimentas: tirei o gibão e o chapéu de couro em troca de um boné e um blusão azul, de algodão, os dois largos, sobrando panos na cabeça e nos peitos; desvesti as luvas de couro e os guarda-pés e vesti calças azuis e uma botina de nome estranho: coturno: apertava os dedos, dificultava o andar. Deixei o cavalo e viajei de trem: junto de mim, outros soldados, todos de azul: louros alguns com conversas de difícil entendimento, manias estranhas, diferentes. Fomos, soldados da República, de trem. O trem parou estacionado em Queimadas: soube que nos começos era mais para eu rastejar meio das caatingas na procura dos rastros dos homens soldados do Antônio Conselheiro, nossos inimigos a partir daquele então, a partir daquelas ordens! Viva a República! E uma manhã o homem Capitão, branco de dar medo, bigodes enormes cobrindo a boca, quase chegando nas orelhas, calças largas parecendo saia de mulher ordenou em sua lingua um pouco diferente da minha: “você conhece o agreste, sabe das manhas dos bandidos: abre caminho, descubra atrás de que espinhos, de que matos e de que pedras eles se escondem”. E saí a procura, não mais de rezes e de cabras que boliam com a filha do patrão, mas sai, naquela hora atrás dos bandidos que queriam arruinar a República Federativa do Brasil. E foi então que nas gargantas do Cambaio encontro Quinquim do Caiaqui, todo emboscado: parecia um teiú marrom, roupas de couro, enfiado no meio das pedras, muito acima do Vaza Barris, apontando a espingarda de chumbo. Me viu. Vi que ele me viu! E a gente se viu caminhamos devagar, um pro lado do outro, pés pisando quietos igual o voo da coruja, olhos sem piscar, atentos, cada um em direção do encontro do outro sem medo nenhum: Viva Bom Jesus! Viva a República! Tão perto que cada um sentiu o cheiro do outro; uma pontada forte e vi minha barrriga abrir, meus buchos saltar fora do corpo, barriga abaixo, se arrastando e fedendo tudo de bosta: foi a força do corte do facão “jacaré” de Quinquim; Viva Bom Jesus! E então, eu, com os buchos de fora procurrei todas as forças que tinha e enquanto as merdas se esparramavam pelo corpo, sujando as calças azuis do Exército da República do Brasil, atravessei seu peito com a baioneta: Viva a República! Viva Bom Jesus! Viva a República...Viva Bom Jesus! Viva...E naquele dia não risquei meu bacamarte com mais aquela última morte. Morri! Morremos! Foi assim, não foi? Ainda se lembra, Quinquim?

domingo, 13 de maio de 2012

PROFUNDOS SERTÕES -II–QUANDO A PRIMEIRA ALMA PENADA CONTA A MORTE DO BOI MANSINHO.

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“Sangrem minha goela, mas não matem o Boi Mansinho”, gritou a beata conhecida no Juazeiro como Maria Tubiba” - “in” Neto, Lira – Padre Cícero –
No céu apenas uma nuvenzinha que em sua cor cinza anunciava que não tinha força total para fazer chuva; estava ali, a nuvenzinha cinza, mais para enfeitar – desenhando uma figura que lembrava um anjo de trombeta à boca - o céu azul daquele dia de outubro; nuvem fraca de pequena, sem forças para fazer chover e nem mesmo para fazer sombras aliviadoras do sol quente. A praça, que rodeava a igreja branca, estava o mais possível cheia de gentes – homens, mulheres carregando filhos, velhos de pitos na boca e velhas mascando fumo - quanto podia ter Juazeiro naqueles tempos de Padim Cícero vivo e santo; e, na praça, todos aqueles povos reunidos esperando o que não esperavam e não queriam, isso se as notícias fossem mesmo verdadeiras. “D’onde já se viu matar na praça o Boi Mansinho, que nada fez de mal a não ser milagres e bons milagres com a graça de Padim Cícero e de Deus Nosso Senhor? Qual é o mal em fazer enxergar quem está cego? Ou qual é o mal em fazer andar quem está inválido das pernas?” é o que, ali reunidos na praça, matutavam enquanto ouviam os berros chorosos da beata Maria Tubiba que ecoavam pela praça e iam rebater mais longe ainda, lá pros fins de Juazeiro. O ar cheio de tristezas!
E era eu, Quinquim do Caiaqui, que me apresento, quem levava, segurando pelo cabresto, o Boi Mansinho que como um cego guiado, sem saber de suas forças obedecia os caminhos que eu decidia e me seguia com seus passos lentos, seus olhos negros, doces, preguiçosos; adentramos praça a dentro: Boi Mansinho com os dois chifres enfeitados com guirlandas de flores que eu colhi e com cipó amarrei e construí; duas vistosas guirlandas, uma para cada chifre, feitas de vermelhas palmas de nossa senhora, de azuis flores de jacarandá mimoso e de rubras cristas de galo. E eu, naquela hora, enquanto conduzia o Boi Mansinho para a morte, pensava que se eu fosse o Mansinho me punha a correr, a chifrar, a bufar e a berrar forte: mostrar as forças de filho de Deus; mas eu não sou o Boi Mansinho, que segue quieto e sonolento para seu calvário de morte, e quem berra é a beata Tubiba; e sou eu que mostro e guio o caminho de sua morte, a sua via cruz e foi por ele, por Mansinho, que estou aqui agora em Juazeiro. Não sou daqui não! Sou de mais longe: eu que tinha e vivia a minha vida de vaqueiro nos confins dos sertões, longe daqui. Vou contar das mudanças! Uma manhã patrão chamou e ordenou: “Quinquim preciso de seus serviços de vaqueiro. Quero que me leve, são e salvo, este garrote até Juazeiro: é um presente meu para o Padim Cícero que anda precisando de boi bom para cobrir suas vaquinhas de pouco leite, sem raça qualquer.” E eu que ao ser chamado na sede pelo patrão pensava em ter que afiar o punhal para cumprir mortes, parti, montado em cavalo manso, puxando, com toda a paciência que Deus me deu, o garrote bonito, pelo lustroso, cupim querendo dar mostras de touro cobridor de vacas, a bolsa dos ovos grandes balançando, pedindo vacas: queria e queria fazer filhos. E eu vim! Vim com Boi Mansinho que entreguei com bilhete escrito pelo patrão diretamente ao Padim Cícero que me deu a benção e pra quem pedi que ajudasse a me livrar do vício da cachaça! E aqui fui ficando, ficando: o que fazia? Trabalhando nos cuidados com o Boi Mansinho e das vacas, arando terras para o plantio de aipim, obedecendo às ordens do Beato José Lourenço. E foi então que um dia chegou a polícia que prendeu o Beato e um soldado de longos bigodes e cara de mal ordenou que eu - “Eu?” perguntei e ele “Sim vosmicê, mesmo, é surdo, por acaso?” – guiasse, para a morte na praça, o Boi Mansinho. A morte foi na praça: Mansinho - parecendo formiga que leva para dentro do formigueiro as sementinhas que matam - chegou mudo de quieto na praça toda rodeada de gentes e cachorros. Tudo feito de silêncios naquela hora, fora os berros da beata Tubiba. Então escutou-se:Tum!!!: barulho da marretada na testa do Boi Mansinho - Tum!!! – tão mais forte que encobriu os berros da beata e de antes desse Tum!!! seco Boi Mansinho me olhou com seus olhos negros, me arguindo do que que estava acontecendo e, sem resposta minha, que chorava por dentro, se ajoelhou e deitou seu enorme corpo ao sabor dos chãos da praça. Morto! Na cadeia o Beato João Lourenço virou de costas para não ver os acontecidos e também chorou lágrimas de dor pelo Boi Mansinho. Deixei, morto na praça, o Boi Mansinho e com os trocados que tinha comprei cachaça e bebi. Bebi e bebi querendo respostas que não tinha para as perguntas das maldades que via. Na cadeia conheci Raimundo da Boca Torta e foi com ele, com Raimundo, que fui para Monte Santo, de Antônio Conselheiro: montados em dois cavalos e dois jegues carregando barris de cachaça. “Vamos vender e enricar: ferve de gente em Canudos” disse Raimundo e fomos. Aquilo tudo não me cheirava coisa de Deus, mas estava descrente demais: se mataram o Boi Mansinho que só sabia fazer cobrir vacas para gerar filhos, fazer as vacas encher as tetas e dividir os leites com os bezerrinhos e todos nós, então porque foi morto o Boi Mansinho? que fora isso, cobrir vacas e gerar filhos, só fazia outro bem: milagres e mais milagres bons para pessoas, nada de mal, nada do capeta, do demônio. Cachaça é coisa do capeta ensina Padim Cícero e eu com o Raimundo levando a bebida da desgraça para Monte Santo, do Antônio Conselheiro, para ganhar dinheiros se enricar e depois ir para onde eu não sei. Na praça de Monte Santos os barris de cachaça foram estraçalhados com foices e marretas e a catinga da cachaça derramada, que formava um corgozinho na praça seca, encheu os ares e se esparramou por todos os arredores: crianças e velhos tossiam causa do cheiro forte, mulheres rezavam dando glórias e os homens enchiam nossos corpos de palmatórias dolorosas, ardidas: “vão matar a gente” berrou Raimundo, “morram filhos do demônio, filhos do capeta” e chegou Antônio Beato, que a tudo espiava e ordenou o fim dos castigos. “Num quero voltar para Juazeiro, Beato Antônio: lá acabaram de matar o Boi Mansinho” e Beato Antônio olhou meus olhos pedindo verdades e eu respondi com olhos de verdade: “Quero ficar” e fiquei. Autorizado! E então, pelos meus conhecimentos das regiões e por minha braveza e coragem no uso do punhal e da espingarda legítima de Braga me tornei e me fiz guerreiro do Bem, guerreiro do Santo Conselheiro. De Deus!

quarta-feira, 2 de maio de 2012

PROFUNDOS SERTÕES - I - DUAS ALMAS PENADAS.

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“- Cemitérios gerais
que não toleram restos.
- Nem mesmo um pouco que se possa
encomendar ao céu ou ao inferno.
- Eles, todos os restos
da mesma forma tratam.
- Talvez porque os mortos que têm
não tenham tal resíduo, a alma.”
“in” Antologia Poética, “Congresso no Polígono das Secas (Ritmo Senador; sotaque sulista)”, João Cabral de Melo Neto, pag. 88.
Secura quente: impiedosa com os homens, com tudo: com os matos, com os bois e suas fêmeas vacas, com o bode de costelas pontudas à mostra, cozinhando ao sol, querendo escapulir pelo couro afora; impiedosa com a cabrita de tetas vazias e os cabritinhos filhos, famintos de leite, berrando méeee! méee! desafinados, agudos! e ao mesmo tempo socam, com a cabeça pequena, sem dó nem piedade, no limite de suas forças fracas, a teta murcha da mãe cabrita - teta mais parecida com um jenipapo maduro de tão enrugada, mole, oca por dentro, sem leite: seca, seca. Os olhos dos bois, das vacas, do bode, da cabrita e dos cabritinhos vigiam o córrego seco, poeirento, sem água: tudo seco e seco e quente, muito quente. E foi às margens do córrego seco que se amontou aquele bando de ossos, puro ossos, nada de carnes, ossos parecendo espadas enfiadas dentro de peles opacas, sem brilho – tanta sede – : cada bicho, filho de Deus, se assemelhando a um fantasma mal desenhados de torto; andam e olham devagar, economizando energias e buscam, passos lentos, solidários em sua miséria, a sombra da quixabeira. E cadê Deus? Deus não é sertão? Ali perto, encostado mesmo na quixabeira, só que na outra margem do córrego, solitários postes de cimento, quentes, enfiados no chão da terra há anos para cercar a casa da bomba que ia chupar águas ali daquele córrego para jogar longe, para quem dela necessitasse – homens, terras, vacas, cabritos e jegues, lavouras de milho e de aipim - : “tudo aguar e acabar, de vez, com as securas quentes do sertão”: palavras do engenheiro do governo, apressado de voltar logo, tanta quentura e silêncio: veio e voltou em um jipe preto da policia, vestido com calça azul, bonita, sapatos de tênis e uma camisa cor de rosa onde se via bordado um jacarezinho verde, boquinha aberta, pouco acima dos peitos do engenheiro.
Urubus! Se equilibrando nas pontas dos sete postes de cimento, enfiados ali sabe Deus há quanto tempo, naquele mundo de sol quente e de tristes mandacarus, para cercar com arames farpados a casa da bomba, agora, tão vazia quanto o córrego seco, sete urubus esperam comida, “que pode atrasar mas sempre chega”, assuntam eles entre eles mesmos dentro de suas roupas negras, cabeças encimando os pescoços cinzentos, enrugados, bicos curvos que nem do carcará. Quietos, pensativos, esperançosos de carniça comível, os sete urubus. E se fossem assustados, afugentados, tocados do alto daqueles postes de cimento colocados ali no meio do sertão pelo governo para cercar a casa de bombas, por alguma alma qualquer? Mas que diabo de alma é que poderia assustá-los ali naquele cerne ignoto do quente sertão de ninguém? Quem os assustaria? Oras, quem? tanto poderia ser um cabra ou um jagunço que por ali estivesse a passar, e cansado, enxergando a verde quixabeira sonhasse em desfrutar de sua sombra fresca ou então a cachorra Baleia, se ela tivesse resistido e não tivesse morrido de tiros de espingarda nas vidas tão secas do sertão. Delírios: e então o homem, Fabiano, e Baleia querendo descansar de suas retiranças na sombra da quixabeira, vendo os urubus negros iriam querer sumir com eles dali de perto de seu descanso: ele grita rouco “Choooo! Chooo urubus!” e a Baleia late fraco “Au! Au...” balança o rabo, mostra os dentes brancos na boca pequena e seca d´água. E os urubus, sem medo daquelas forças fracas do homem e da cadela, os dois – cachorro e homem - puro ossos, apenas por atávica obediência às ancestrais leis da natureza, deixam, contra suas vontades, o repouso equilibrado nas pontas dos setes postes de cimento e voam um voo quieto, calmo e silencioso, baixo, sem a força dos ventos que não sopram ali no sertão: tudo parado. E a Baleia, não fosse o cansaço e a fraqueza, latiria mais “Au! Ai! Au! Caimmm!” e, dentes à mostra, furiosa, correria querendo morder as sombras das aves que, projetadas pelo sol quente, dançam silenciosamente em cima do chão seco, assombreando e escurecendo ainda mais as bromélias rubras, os xique-xiques, as espinhudas cabeças de frade, os croás e as pedras arenosas daquele pedaço de sertão adusto. Mas, é bom que se diga: Baleia quer é descansar à sombra da quixabeira: e deita, enfiando a cabecinha pequena entre as patinhas e pensa: “careço de descanso para encompridar o fio da vida, esticado e fino”. Ela sabe e sente. E o homem? Fabiano assusta-se, e com razão, pois se a Baleia não estivesse economizando suas forças de viver e, se esquecendo de tudo, seguindo seu costume de sempre, se pusesse a correr, querendo caçar e morder as sombras dos sete urubus ele, homem crente em Deus, veria de perto – “com os olhos que Deus me deu e que Santa Luzia cuida e zela” - coisas do Demo, do capeta: “caduco, eu? a fome e a sede agora deram para tapear meus olhos, meus enxergares? Só pode ser coisa do capeta sete urubus voando no céu e aqui na terra quente de arder apenas cinco sombras? Ou será que contei errado?”; temeroso de estar caducando, esperançoso de ter se enganado, resolve testar se seus olhos  enxergavam com correção as sombras dos sete urubus afugentados e resolve tornar a contar, agora com a ajuda dos dedos das mãos; não quer errar aqueles números de urubus voando e suas sombras dançando no chão: números que não estão certos e, para não errar, vai contar não só com os olhos, logo ele sempre tão esperto e elogiado em contar cabritos e vacas, carecer agora da ajuda dos dedos das mãos para contar sombras de urubus. Então, viu uma sombra, marcou bem como sendo a primeira, encolheu o dedão grosso da mão esquerda e contou : UM; outra sombra agora em cima do xique-xique e o indicador encolheu-se junto do dedão e ele contou DOIS; e foi a vez do maior de todos os dedos se encolher fazendo cócegas na palma da mão e Fabiano contou TRÊS tão logo a outra sombra enegreceu a bromélia rubra, e depois foi a vez do "seu vizinho" perto do minhguinho e longe do indicador - que nunca se deve apontar para as estrelas porque nasce verrugas no rosto - se encolher e ele contou QUATRO e até que chegou o minguinho, pequeno, com a unha comprida boa de limpar o nariz de suas porcarias e uma sombra de urubu cobriu o croá e ele contou CINCO. Não mais sombras: Cinco. Só e apenasmente cinco sombras de sete urubus que sobrevoavam a quixabeira e a casa de bombas ao lado do córrego seco. Como pode? Não, não pode. De novo, agora tenso, medroso de sua caduquice – “não tenho assim tanta idade para caducar, só pode ser a fome” – recontou: CINCO sombras no chão e sete urubus voando e voando. Baleia dormia à sombra e o homem temeroso do que acontecia aquietou-se e os sete urubus com suas cinco sombras voltaram a se equilibrar nas pontas dos sete postes de cimento. Reequilibram-se nas pontas dos postes e se põem a cutucar, com os bicos curvos, as penas das asas, se asseando das poeiras e de outras sujeiras.
Baleia dormia e sonhava e, foi então meio sonhando e meio dormindo que ela espreguiçou-se toda, se esticou para tudo quanto é lado, falou: “num tá maluco não: contou direito com a cabeça e com os dedos da mão. O que tem é que neste bando de sete urubus, tem dois que comeram carniça humana, melhor dizendo, comeram os corpos magros de carnes de dois cabras mortos meio do no sertão, e de tão esfomeados que estavam de tanta ausência de comer, não perdoaram e comeram tudo, cada qual, até os corações do homens que fornecia as carniças e junto do corações engoliram, junto, suas almas. Corações e almas! E então, é por isso, só por isso, que estas duas almas penadas estão presas dentro daqueles dois urubus dali da beirada, os dois mais daquela ponta, também os mais quietos. E as duas almas penadas estão ali desde então que não se sabe quando, dentro deles: quietas, calminhas, escondidas, bem dentro do coração dos dois urubus, que desde aquele então de momento, são possuidores de duas almas: a sua própria, a alma que Deus deu a eles quando nasceram - horrorosamente feios: pelados de penas, olhos enormes querendo sair da cabeça - , de dentro de ovinhos brancos que passou a ter junto dela as almas dos cabras mortos.” Fabiano, para se distrair do medo, passou de novo a fazer contas: dois urubus, quatro almas, então os sete urubus somam nove almas: e usou , naquela nova conta, quase todos os dedos das duas mãos, faltando apenas um dedo para chegar nas dez almas. “E tem mais:” continuou Baleia, agora toda prosa de seus conhecimentos, “estes dois urubus, eu acho que pelo peso de carregar mais de uma alma em seu corpo, sofreram transmutações em seus corpos. Como assim? Um momento, calma, explico: o sol e seus raios quentes atravessa os seus corpos adentro, se enfiam por lá e não voltam para fazer sombra; fica igual a gente – cachorros, homens, árvores, montanhas - quando acontece o meio dia: o sol vem e se enfia pela nossa cabeça a dentro se esconde em nossos profundos, junto de nos nossos corações e de nossas almas e fica por lá esquentando e aproveitando do calor de nossos corações se esquece de voltar para gerar a sombra; e é por isso que o sol do meio dia é mais quente , quente de sol sem sombra, iguais destes urubus aqui de perto de nós, com uma diferença: é que neles, nestes dois urubus , o sol sem a sombra se esconde a qualquer hora do dia e os corpos dos urubus de duas almas, dos que não têm sombra, estão dia e noite a guardar todos os sóis dentro deles e toda a quentura do sol fica lá no meio das suas almas, esquentando as duas e guardando luz para, de noite, fazer brilhar, de dentro de seus olhos, uma lamparinazinha parecida com a dos vaga-lumes, que é assim que os urubus de duas almas orientam caminhos ou assustam os cristãos passantes. Carece ter medo não”.

domingo, 22 de abril de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA -VI–CABOCLA !

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Agostinho entrou em casa completamente esbaforido: “Escuta Emerenciana: padrinho Juca mandou recado pelo Seu Sebastião, dono do caminhão que busca leite lá no curral dele: convidou a gente para almoçar lá no domingo, dia do aniversário de madrinha Olívia. Vamos? Em a gente indo, quando na volta, você querendo, já de lá da casa deles a gente aproveita e passa na casa de seu pai, pedir benção.”; Agostinho não encontrou na face e nos olhos da mulher o entusiasmo que tinha tomado conta dele. “Será que está arrependida de ter voltado? lamentando de levar aqui em casa, na vila, uma vida menos agitada e divertida da que tava levando como mulher da vida, na cidade grande?” pensava angustiado enquanto procurava resposta para suas dúvidas nos olhos transparentes da mulher. E enquanto aguardava a reposta: Medo, só medo: “Deus do céu: será que logo agora que eu achava que a minha vida tinha voltado para seu normal de felicidade? será que tudo vai acabar tão cedo?”
Emerenciana leu os pensamentos do companheiro, tocou sua face carinhosamente, mãos frias, molhadas d’ água do tanque onde lavava e esfregava as roupas sujas: “Não sei se vai ser bom, meu véio, tenho medo”; que agora Emerenciana deu de me chamar de meu véio, “mas medo do que? vamos de dia, logo cedo e antes do escurecer já estamos aqui de volta: tenha medo não, que não tem perigo nenhum”. E Emerenciana não sabia, naquela hora, se contava seus medos: “medo de ser chamada de puta, medo dos olhares de desprezo que via nos olhos das mulheres da vila: não tinha confiança em suas forças para saber se aguentava tanta dor de humilhações.”
Foram.
No almoço: torresmo, costelinha de porco frita, frango cozido com quiabo, arroz e macarrão vermelho de massa de tomate. Os homens, Agostinho e seu padrinho Juca, beberam um gole de pinga e conversaram animadamente: Agostinho queria comprar vacas leiteiras, um ou dois cavalos, carroça para carregar necessidades: enfim, repor o que havia vendido quando saiu da vila; encher de vida e de barulhos o seu sítio, seu trabalho.
Depois do almoço os homens foram para o curral ver as vacas; Emerenciana e Dona Olívia ficaram na cozinha para lavar os pratos, arear as panelas, passar café no coador e conversar.
Na cozinha:
“............................................................................................................................................................. e foi então, eu já com mais de cinco anos no serviço de mulher da vida, que dona Mercedes resolveu que eu iria ajudar na nova casa que havia instalado: queria eu em novos serviços e obrigações: queria eu agora assim cuidando das meninas para evitar brigas e bebedeiras entre elas, zelar pela apresentação das meninas, que ela queria com vestidos de seda e brocados, cabelos com laquê, colares e brincos, perfumes de farmácia, enfim meninas tal e qual em dia com o ambiente chique da nova casa; queria que fosse eu a primeira a receber e acomodar os homens na sala, ler em seus olhos que tipo de menina seria a melhor para ele, zelar pela limpeza do bar, da sala e dos quartinhos onde as meninas recebiam os homens, um monte de obrigações e tarefas: vez ou outra, só no caso de interesse demasiado, ir para o quartinho com algum cliente, sendo que nestes casos, o tempo do encontro urgia ser pouco e combinado de antes, para evitar brigas e discussões: muitas coisas a fazer. E Dona Mercedes chegou e disse: “Rosaura minha filha: vida de puta acaba logo: a gente se envelhece: então acho melhor você me ajudar a cuidar das meninas na nova casa e ganhar dinheiro de outro modo que não pela boceta”, e Dona Olívia corou seu rosto de vó ao ouvir boceta dito tão alto, falado ali em sua cozinha, pela boca da afilhada Emerenciana, que não teve nem mesmo teve o cuidado de por as mãos nos lábios para solerciar o som da palavra: disse abertamente, dentes a mostra. Mas escute madrinha: o pessoal todo vê e fala “das pingas que eu bebo, mas não sabe dos tombos que eu levo”, como diz o ditado: sofri demais e sofri mais ainda, penso, por saber o tanto que fazia sofrer o meu velho, meu pai, minha mãe: mas tudo foi mais forte que minhas vontades: destino será, madrinha? Castigo de Deus? E é certo os outros sofrerem quando Deus queria castigar a mim? Pode? Ou o castigo de Deus é tão cruel , madrinha, que Ele e Nossa Senhora da Aparecida castiga justamente assim: sofrer por mim, pelo que chorava minha alma e meu coração aumentado pelo sofrimento que causava aos corações dos outros que choravam por culpa dos meus pecados?”
No curral:
“................................................................................................................................................e foi então, que um dia, enquanto eu lidava em meu trabalho na Refinaria, que o Tito chegou, Tito, eu explico para o senhor, era o encarregado de todos nós na refinaria, tipo de um fiscal aqui nas roças, mandão e bravo; e Tito me disse que o pessoal do escritório queria falar comigo e que eu me dirigisse no dia de amanhã no escritório em vez de comparecer na refinaria para o trabalho. E eu fui: o escritório era bonito, os telefones tocavam sempre, tinha a dona Zuleide, que era a secretária do Engenheiro Doutor Mancini, que me olhava com olhos de desejo, eu sei que me desejava, mas eu não sei se desejava ela ou não, acho que sim, mas nunca quis saber de intimidades: não queria saber de enrosco com mulher casada, fazer sofrer os outros: meus pecados eu mesmo pago, mas devo dizer, padrinho: era bonita a dona Zuleide, sabe daquelas mulheres de peitos grandes quase fugindo da blusa apertada, a saia justa, preta, dando forma na bunda grande e redonda; mas estou mudando de assunto: no escritório o Engenheiro Doutor Mancini me disse que queria que eu fosse para Belém operar uma moto niveladora nova, comprada agora do exterior, necessária para construir uma barragem. Aceitei: e eu ia viajar de avio, nas alturas até Belém. De noite, no dormitório dos peões eu contei com muito cuidado para Oberaldo que eu iria para Belém: contei com cuidado de pena: logo eu que não lia a Bíblia tinha sido escolhido para ir trabalhar em Belém e não ele, o Oberaldo, crente, que, com certeza trabalharia com mais gosto nas terras onde nasceu Cristo, ou morreu Cristo, não sei, mas Oberaldo sabe se Cristo nasceu em Belém o morreu em Belém, e não seria ele que ia poder ver o localzinho onde José fez o bercinho do Menino, forrou com capins, e a Virgem com os olhos meio tristes, ao lado, olhos no Filho: mãe nunca desvia os olhos dos filhos, eu sei disso, é assim que eu vi nos presépios em tempos de Natal, que é quando o Menino nasceu. “
Na cozinha:
“Ariar as panelas é um serviço que gosto: esfregar forte a bucha com bastante sabão e areia fina deixando as panelas e os caldeirões limpos, brilhantes, até fazer doer nos olhos o brilho deles quando bate o sol. Mas, Madrinha, tenho que falar, tenho que contar: uma felicidade grande enche todo meu corpo quando vejo seus olhos: parece que seus olhos não me enxergam como puta, é isso mesmo? “É, assim é: você é puta agora?”, “não: agora não sou puta”, “e então: meu olhos enxergam você no que você é: Emerenciana”. E aquelas palavras encheram todo o meu ser, o ser Emerenciana, de felicidade. Vi que podia então, novamente, ser enxergada como Emerenciana. Sabe madrinha eu até que me acostumei em me erguer dos tombos para levantar das caídas: e isso exige uma força muito grande que se tem que ter e que cansa tudo: corpo e coração, causa um cansaço muitas vezes maior que o cansaço de capinar café, mais cansaço até, posso dizer a senhora, que é minha madrinha, que o cansaço de tirar as roupas e, pelada, e abrir as pernas para os homens a troco de ganhar dinheiros. Mas, agora, neste momento exato, enquanto lavo aqui estas colheres e estes garfos, o que importa é que sinto agora, ao ser enxergada pelos seus olhos como Emerenciana: é uma felicidade muito grande, madrinha; o que estou sentindo, felicidade tanta, que enche meus olhos de lágrimas, aquelas lágrimas boas de se derramar, deixar rolar rosto abaixo até dar para recolher e beber: quentes lágrimas molhando as securas da alma.”
No curral:
“E quando contei, com todo cuidado, já disse, para Oberaldo de minha ida para Belém ele leu lá na Bíblia dele algumas coisas que contavam de Agar, concubina de Abraão, mãe de Ismael. Dia seguinte, obedecendo às ordens do Engenheiro Doutor Mancini , peguei dois ônibus e fui parar na Avenida Ana Costa, em Santos, para os exames que teria que fazer no Instituto de Saúde do Trabalhador: lá tiraram sangue do meu dedo e o médico gordo, rosto de criança, olhos azuis e fala mansa, depois dos exames realizados, me disse: “o exame de Machado Guerreiro deu positivo”, eu não sabia o que era Machado Guerreiro, e ele me perguntou onde eu havia nascido e eu respondi e ele perguntou se eu tinha morado em casa de pau a pique e eu falei que sim e ele me disse que o barbeiro havia me picado. “Doença de Chagas: o coração cresce, fica grande, enorme e preguiçoso de trabalhar o seu trabalho de esparramar sangue em todo o corpo”, e que não tem remédio para a doença de Chagas, causada pela picada do barbeiro. “Morre logo da doença?”e ele disse que não: que tinha medido meu coração, suas batidas, que eu estava bem, mas que tinha a doença e que ele não ia poder assinar o meu Atestado de Saúde, que o governo exigia da empreiteira para fazer os serviços da barragem de Belém, e que o governo faz isso pensando na saúde do trabalhador, para o bem do trabalhador e que o barbeiro havia me picado. No escritório, depois, dona Zuleide chorou: o médico do Instituto da Saúde do Trabalhador, aquele dos olhos azuis dentro de um rosto gordo, telefonou e contou dos resultados e ela recebeu ordens e orientações do Doutor Engenheiro Mancini: me despedir do emprego. Dona Zuleide chorava baixinho, me deu um pouco de raiva daquele choro, mas fiquei quieto e assinei um monte de papéis e recebi o envelope com os dinheiros da minha conta: o envelope pardo, com a marca da empresa, estava gordo, inchado de dinheiros: dinheiro do mês de agora, partes dos dinheiros do décimo terceiro salário, indenizações...muitas contas e dinheiros: tudo muito bem contabilizado nos escrito a máquina que Dona Zuleide sabia bater tão bem e rápido. Peguei minhas roupas no alojamento, meu radinho de pilha novo que havia comprado e fui para a Zona em Piassaguera: antes passei na obra e falei para o Oberaldo que por causa de uma picada do barbeiro eu não ia mais para Belém e que ele deveria falar logo com o Tito e se oferecer para ir em meu lugar e que lá em Belém ele ia poder ler a sua Bíblia nos lugares por onde Cristo tinha vivido. E fui para a Zona em Piassaguera. E foi lá na putaria de Piassaguera, na casa de dona Marta, que de noite veio cantar uma dupla e eu arrisquei de pedir: queria cantar Cabocla e o da viola aceitou e me perguntou o tom e eu disse que queria o mais diminuto dos tons e ele se assustou, e perguntou se era medo do alcance da voz e eu respondi que não: alcançar eu alcançava mesmo em Sol, mas eu queria melancolia! E cantei: “Cabocla , como é triste o meu viver, sem esquecer, um só momento seu amor, tu me deixaste por um outro da cidade e a maior infelicidade é o desprezo a quem quer bem”. Cantei e chorei! Passado o cantar de Cabocla vi as putas chorando de me ver chorar e Alfredo, que era o que tocava violão e era o dono da dupla, me ofereceu lugar de cantor.”
O café passava no coador: a água fervendo de quente soltava uma fumacinha de cheiro perfumoso e forte, amargo e doce, se pode ser assim amargo e doce ao mesmo tempo; e aquela fumacinha de cheiro inundou de perfume primeiro a cozinha, não se contentou e chegou no quintal e logo depois fugiu e chegou no curral atiçando as vontades de beber café em Agostinho e seu Juca. Da cozinha Dona Olívia gritou: “café passado, vem beber que senão acaba, vem logo”. E, todos, cada um segurando sua canequinha de alumínio, foram para a varanda e arrodearam a mesinha onde estava a bandeja, coberta com a toalhinha branca, bordada e o bule fumegante de café. Momento por demais hierático, pensou Emerenciana , que brincou de passar esse seu pensamento que estava no seu coração, pelo ar, e o ar carregou aquele santo pensamento que chegou nos corações de Agostinho e de Seu Juca e de Dona Olívia: e tudo se transformou em um momento sagrado de silêncio, de ventos quietos que balançavam tão devagarzinho, sem barulho, as folhagens do coqueiro de buriti e as folhas do pé de abacate, até o cachorro quieto, sem latir, tudo e todos a respeitar aquela cerimônia sem padre que acontecia tão musicalmente na varanda e parecia querer fugir dali e se esparramar por toda a fazenda, por todo o mundo e chegar em Belém.
Na varanda:
“Continuando: eu fiquei contente com o trabalho de cantor nas casas das putas; Alfredo queria viajar mais, conhecer lugares, cidades, novas ruas de putarias e só bastava eu cantar: comprei em uma banca de jornal em Santos um livrinho com os sucessos do Waldique Soriano e decorei todas aquelas letras e Alfredo me ensinava outras...minhas mãos foram perdendo os calos, ficando lisinhas, parecendo mão de mulher rica, mão de professor: agora eu era cantor” . “E eu seguia minha vida de cuidar das meninas, dar ordem na casa, em sua limpeza, não deixar brigas, escolher a melhor menina para cada homem que chegava a procura de serviços de amor. Luzia estudava e estudava bem: ia para o Ginásio: mocinha já, bonita; lia histórias para mim e dizia saber o porquê eu não podia ajudar ela nas lições de casa: matérias difíceis demais para mim: até francês ela estudava, imagine!” “E sabe padrinho, que Luzia riu e riu de mim quando disse que por modi da mordida do barbeiro que fazia meu oração crescer, eu tinha sido proibido de ir para Belém trabalhar e que por isso não tinha conhecido o lugar onde Cristo nasceu e ela disse: “Pai o mundo tem cinco continentes, eu aprendi em Geografia, e o Belém do Nosso Senhor Jesus Cristo não fica aqui no continente americano, mas no continente asiático” e eu não entendi bem nada daquilo, mas ela também me disse que contou para todas as amigas que no dia seguinte eu iria buscá-la na saída do Ginásio, ela não diz buscar ela que é errado, e que todas iriam poder comprovar o que sempre dizia: que o seu pai era o mais bonito de todos; e então e eu vesti meu terno de linho para ir buscar Luzia no ginásio e ela me abraçou e falava alto para as outras meninas, todas vestidas com saia azul e blusa branca, algumas com boina na cabeça, todas lindas como Luzia: “não falei que ele é bonito: parece artista de rádio de tão bonito, ele canta” e eu chorei lágrimas secas e pensava que era melhor mesmo foi o barbeiro ter me picado e o meu coração, ficar crescendo e crescendo, grandão de tamanho e que ia se encher de tanto amor.” “E, numa noite, eu estava me arrumando em meu quartinho quando ouvi uma voz que cantava no salão. Meu corpo adivinhou tudo e eu sai do quarto só de calcinha e soutien, sapato de salto alto e fui até a cortina de veludo que separava os quartinhos do salão e aquela voz, que eu conhecia, cantava, repletando o salão todo de música de amor. E eu abri na separação da cortina de veludo uma brechinha para meus olhos enxergarem o salão e então eu VI: era ELE. Me tonteei, caí e acordei no quarto, em cima da cama com as meninas que me vestindo e eu pedi um outro vestido, vermelho, com brocados e bordados, decote mostrando o rego dos peitos.” “Eu não via nada atrás da cortina vermelha de veludo, não via o buraquinho por onde ela me via, mas eu sabia que ELA estava ali e então cantei mais alto, o mais lindo o que podia: “Cabocla como é triste o meu viver”.
Atrás da montanha que juntava a fazenda ao Rio Grande e a vila do Baguaçu apareciam nuvens negras, daquelas totais de tão carregadas de chuva: Março, mês de São José, das grandes chuvas, enchentes, raios e trovões: “Vai chover e logo. Vamosimbora enquanto é tempo.”
E o silêncio religioso que tinha tomado conta da furna que envolve a fazenda do seu Juca foi quebrado: “Bênção Padrinho.” “Benção madrinha” “Deus abençoe Emerenciana” “Deus abençoe Agostinho” !
Os cavalos trotearam rumo da vila.