sábado, 15 de dezembro de 2012

O MORRO CABEÇA DO PADRE -II–AS MISSÕES!

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Quando se ia de charrete, do ponto de ônibus da agora comarca de Venda Nova até a fazenda do Tó Diniz, era coisa de vinte a trinta minutos, já a pé gastava uma hora: claro que a passos lentos, tudo se vendo, os descampados, os cafezais se formando, os morros de cupins nos pastos, escutando o quequezar alto e estridente das seriemas. Mas, como disse, fui de charrete buscar a professora Antônia. Cheguei rápido ao ponto de ônibus e lá estava ela, duas malas de couro ao seu lado, no chão, uma sombrinha cor de rosa aberta protegendo das quenturas do sol: me viu e já de cara me reconheceu, não sei como, talvez por graças de Deus e não do Tinhoso, pensei naquela hora. Tudo sabia de antes que a gente a professora! Na charrete ocupou só um cantinho do banco, durinha; fechou a sombrinha e fazia questão de não apoiar as costas no apoio do banco, ela acompanhava os balanços da charrete, toda firme, bonita – demais de bonita, eu via - a tudo olhando, observando, tudo vendo, e o narizinho se enrugando na busca de cheiros, de perfumes, que era mais assim que era como ela conhecia o mundo: vendo e cheirando.

Foi então que aconteceu o primeiro ocorrido. Logo depois da curva do ponteleão, pequeno túnel sobre o qual passava a linha de trem, existia uma capoeira de mato e, tão logo Brioso - cavalo garboso, tordilho – deixou para trás as sombras das aroeiras que desenhavam a capoeira ela ordenou: pare a charrete e não olhe para trás, vou desaguar. Assim, de repente e nos naturalmente, foi dizendo e ela mesmo, autoridade, soprou alto um “psiu” e as orelhas do Brioso escutaram quase não carecendo de ter que eu firmar as rédeas, fazendo o Brioso parar. Queria mostrar autoridades! Psiuuu, Brioso! Nem bem a charrete terminou de parar ela desceu lépida, saltou na estrada sem usar o apoio do estribo e repetiu: não olhe para trás, e eu obedeci - olhos e mente para o horizonte - e logo escutei um longo “chiiii” que era o barulho da pressão do seu desaguar e eu imaginava a poça d´água que estava se formando na beira da estrada e ela sentindo o cheiro do seu mijo misturado com a areia pedregosa, o seu narizinho enrugado. Desocupada do que tinha que fazer voltou ao banco da charrete e pôs-se a olhar e a cheirar o mundo.

E aquela cruz? Porque existe ali, meio daquele mundão de mato? assuntou curiosa e eu narrei que aquela cruz tinha sido colocada ali pelo fiéis, em respeitosa procissão, quando a última missão tinha vindo para Venda Nova, coisa assim de um ano mais ou menos atrás.

Missões? De jesuítas? Que isso? arguiu, curiosa, Antônia e eu tive que contar para ela que a cada três ou quatro anos, Frei Marcos, pároco de Venda Nova, que ela ia logo conhecer, homem bom, de caráter, escrevia ao bispado pedindo, encarecido, a vinda dos eloquentes padres missionários para esquentar as almas e os ânimos de suas ovelhas, como gostava de chamar os seus seguidores, insensíveis ou acomodados aos seus discursos e às suas preces, a igreja ficando mais vazia, apenas as beatas de sempre, homens fugindo do confessionário e das comunhões nas missas de domingo e dias santos. Bondoso frei Marcos, também ele um humano segundo as pecaminosas mentes, não sei se é verdade ou coisa de desocupadas mentes, que baixinho, ao pé do ouvido, segredamente cochichavam - voz baixa, olhando se não tinha ninguém escutando - de suas saídas diurnas e noturnas até a casa do Seu Bento, para encontros com Tarsila, solteirona sacudida, olhos claros dos italianos jogadores de bocha: na sexta-feira santa era ela, Tarsila, que cobria o rosto com os negros e longos cabelos, paramentava-se de roxo e cantava, na língua dos padres, como se fosse a Madalena, fazendo arrepiar de medo e de dor as almas dos vendanovenses, que era assim que se chamavam, então, os que lá moravam. O que de fato ocorria era que a fé dos filhos da Venda Nova ia esfriando só com a voz de contralto de Tarsila e as prédicas do Frei Marcos e urgia apelar para o clamor dos padres redentoristas, estes danados de bons para arrancar lágrimas dos olhos dos crentes arrependidos dos pecados cometidos e pelo fuga de, compenetrado, ficar de joelhos no confessionário e desfilar, olhos fechados, contrito, os mortais e veniais pecados. Missionários!

Eram mestres! Capazes por demais. Venda Nova rendia-se às suas vozes e preces: logo às quatro e trinta da manhã, tudo escuro e frio no mês de julho, as estrelas e lua enfeitando o escuro céu, do alto falante da torre da Igreja se ouvia “Bendito louvado seja” na voz do cantor de rádio famoso, o disco de trinta e três rotações girado na vitrola rodada a mão: e a bonita voz do cantor do “bendito louvado seja” era levada pelas ondas do vento e pelo silêncio a todos os cantos da cidade, acordando nas camas quentes os cristãos, clamando para a missa e rezas que iriam se iniciar logo às cinco horas da manhã. E mesmo com frio a igreja se abarrotava de gentes a rezar e a pedir perdão pelos pecados, a orar por graças, a pagar promessas: uma profusão de fé, lágrimas, soluços ao ouvir as prédicas dos redentoristas. Bendito louvado seja! e Venda Nova se travestia de Roma ou de Jerusalém: cidade de crentes e tementes a Deus, cuidadosos de suas almas, se esquecendo as agruras do dia a dia e buscando a eternidade junto d´Ele. Mas nem todos os vendanovenses, diga-se para não faltar com a verdade: o Doutor Odilon, médico formado no Rio de Janeiro, ateu, dizia ser tudo bobagem que quando morre é igual a um porco ou cavalo: a terra come. Mas e a alma, doutor? perguntavam os mais chegados no médico. Nada de alma, igual a um porco ou um cavalo, este negócio de alma é pura invenção da Igreja para ganhar dinheiro? E Deus? Bobagem...se existisse mesmo, de verdade, os padres, que de bobo não têm nada, já teriam provado sua existência, mais uma outra enganação da igreja, dos padres a contar das impossíveis besteiras de se ter filho sendo virgem, que isso? E eu fui me animando em minha preleção para a professora Antônia: e sabe que quem concordava com o doutor Odilon era o Seu Paulo, italiano comunista, celeiro e sapateiro com loja de sucesso em Venda Nova, fazedor de arreios e cutianos sob encomenda, bordados de estrelas prateadas, lindos e o Seu Gerônimo, que foi turco mascate e agora, meio enricado, era dono da Casa Radar, que vendia rádios, lâmpadas. Diziam, sem poder provar, conversas de bares e na quadra de bocha que foram eles, o Seu Paulo e o seu Gerônimo que aprontaram numa quinta feira de madrugada. O que fizeram? Foi assim: nos escuros da noite, por volta das duas horas da madrugada, tudo frio e escuro, saíram os dois pelas ruas de Venda Nova, carregando em cima de uma carriola, daquelas que os pedreiros usam para carregar cimento, só que ao invés de cimento ou pedras, que é para o que carriola foi inventada para transportar, carregava uma vitrola RCA, a bateria, da Casa Radar, com o mesmo disco usado pelos redentoristas...e a voz do cantor de rádio inundou a cidade.

“Bendito louvado seja” pelas ruas e as beatas, acordadas pela bela voz, levantando de suas camas e se dirigindo para a matriz ainda com tudo escuro, fora de hora: os redentoristas ainda dormiam esperando às quatro e meia da madrugada para iniciar seu trabalho. E o povo chegando na porta da igreja. E ainda contam que o Quito acordou e não viu ao seu lado a mulher de sempre, mãe de seus filhos: nervoso, correu para a casa de Dona Luiza, sua sogra, a procura da mulher imaginando coisas e mais coisas, dado que sua mulher, mesmo passado dos cinquenta continuava exigente nas delicias quenturas da cama e ele aos sessenta e pouco, muitas vezes não tinha vontades ou forças e dizia a ela que a cabeça doía, ou que o corpo estava cansado dos serviços de pedreiro, que as costas estavam quebradas da força que fazia de dia, “outra hora meu bem, amanhã a gente faz” e ao não encontrar sua mulher na casa da sogra, apressados e abobalhados saem os dois, ele e a sogra, pelas ruas, rezando e implorando a Deus Nosso Senhor para que trouxesse de volta sua esposa amada, e ele pensava e rezava: dali para frente passaria a cumprir mais com seus deveres de marido e de cristão e a sogra rezando baixo e prometendo deixar de implicar e ficar olhando pelo quebradinho da veneziana de sua janela a chegada do padre Frei Marcos na casa da Tarsila.

E a escadaria da igreja foi se enchendo de gente até que um mais esperto ou desconfiado da negritude da hora e da posição da lua, resolveu tirar bolso o patacão Ômega, corrente de ouro, e com o auxílio de uma binga iluminou os ponteiros e enxergou que as horas eram ainda três horas da madrugada. Frio e vento, urgia atitudes: voltar para casa, foi a decisão de muitos iludidos; outros crentes acharam um sacrifício e um desperdício ter que de novo esquentar as camas que deviam estar frias e resolveram que o mais adequado e sensato seria se acomodar na porta do salão paroquial, protegidos do vento e iniciar mais cedo o rezar, olhos fechados, o terço puxado pela Dona Luiza, sogra do Quito.

Mas o que deixou admirado foi que quando terminei de contar tão verdadeira história para Antônia, esperava que ela, professora formada, torcesse o nariz de indignação por tão mal feita arte que os ateus haviam aprontado com os crentes de Venda Nova, e nada: na verdade foi quando eu vi, pela primeira vez, seus dentes incrivelmente brancos: riu a não poder mais, ria com a boca, mostrando os dentes lindos e com a barriga que chocalhava e eu decepcionado com seu riso: Falta de educação e de respeito para com os crentes. E ela: Deve ter sido engraçado.

E eu fui conhecendo assim, aos poucos, Antônia: e tinha certeza que ela, em sua esperteza ladina, já me conhecia, desde sempre; tudo de mim: meus medos, minhas covardias, meus sonhares.

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