quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O MORRO CABEÇA DE PADRE - III - O CURSO NOTURNO.

2009 Caminho da fé 101

Nem bem se passaram duas semanas da chegada da professora o seu Tó me chama: Março está nos seus inícios e Antônia vai formar uma turma de adultos para ensinar a ler e a escrever; vai ser curso noturno e já vou adiantando que os daqui da fazenda que não dominam a escrita, tem que ir, todos! Descansou um pouco a fala e coçou os bigodes, sinal de que naquele assunto não admitiria contestação, todo autoridade, e continuou: E você, Juvêncio: sabe ler? Sabe escrever? Sabe as contas de mais, de menos, de vezes? Não seu Tó: nem mesmo o “O” com o fundo de uma garrafa eu sei desenhar e contas só sei fazer as de mais e as de menos quando cabem nos dedos das mãos; não sei ler os números, mas sei contar, respondi. E ele: Melhor assim, aprende as leituras, a fazer as contas no papel e aproveita para levar Antônia para a vila de noite, porque mesmo de dia, quando ela vai ensinar os pequenos, vai na companhia da Zilda; perigos, sempre existem, todos os cuidados são poucos nos dias de hoje, mais ainda com moça bonita da cidade!

De antes daquela conversa eu não sabia se queria aprender a ler, nunca tinha tido este tipo de vontade ou necessidade, mas confesso que depois da palestra com o seu Tó fiquei entusiasmado, vislumbrando as possibilidades de poder decifrar as charadas e os reclames dos almanaques, escrever cartas, ler livros.

Vai ser bom saber ler, pensava, enquanto tocava firme o Brioso, conduzindo a charrete, que balançava macia e gostosamente pela estrada pedregosa em direção à vila, mais precisamente a rumo da casa paroquial que era onde ia se dar o aprendizado dos adultos iletrados, em um total de quinze ou dezesseis: homens casados, rapazes moços, moças bonitas, mulheres já mães. Obedientes ao horário todos vinham chegando e a dois ou em grupos maiores conversavam para quebrar o silêncio da vergonha de não conhecer os segredos das letras e dos números. Todos cordialmente recebidos na porta da casa paroquial pela professora de quem ganhavam um sorriso, uma Boa Noite e também uma capanga de algodão que tinha dentro um caderno brochura, um lápis, uma borracha e um apontador de lápis, e até hoje me lembro do meu: era azul, bonito.

E a gente entrava na sala carregando, desajeitadamente, as capangas nas mãos, se sentindo como que se fosse criança do Grupo Escolar, e obedecendo a uma ordem qualquer todos se sentando quietos por demais nas de cadeiras arrumadas na casa paroquial alumiada por um lampião de gás. E Antônia sorrindo um sorriso bonito, repetiu os Boas Noites, os Bem Vindos e começou a aula, falando - sei lá de onde tirou o começo da conversa – e perguntando do tatu; um aluno mais corajoso atendeu a pergunta: tatu é bom de comer; uma moça bonita, mais atrevida: acho bonitinho, e um outro, senhor pai de filhos, bigodes cobrindo os lábios: cacei dois ontem...e aquele bando de adultos iletrados foi se animando com o assunto, comentando das raças: tem o tatu-bola, o tatu-galinha, o tatupeba, credo este gosta de comer carniças de defuntos; e se passou a conversação sobre as moradas do tatu, de sua toca: buraco de tatu, fundo, cheio de curvas para evitar cobras e outros intrusos, o tatu só sai da toca de noite, medroso de morrer... E todos, penso agora que como eu, ansiosos para aprender: uns, certamente, querendo mais aprender para escrever cartas e bilhetes, outros já queriam ler livros, outros entender os escritos no Almanaque que o dono da Farmácia Santa Izildinha oferecia a todos os que sabiam decifrar as letras. E a conversação continuava: casa de tatu é sempre buraco, já as casas dos homens algumas são taperas, tem outras mais bem construídas de tijolo e cimento, umas de pau a pique, diferentes entre elas, as casas dos homens, dependendo das posses do construtor, mas todas - ainda as mais desiguais das casas - diferentes das locas ou buracos dos bichos tatus. E foi então que, ainda no meio da animada conversação, a lousa negra começou a ganhar desenhos com o giz branco, feitos pelas mãos pequenas e espertas de Antônia: desenhava as letras na lousa negra e nós, deslumbrados, decifrando e aprendendo a juntar o ta com o tu para virar tatu, te com o ta e virar teta, dois tu formando o tutu...bola, bota, lata, late, tela, bebe, tabela, bobo...Montão de palavras!

E então as noites, depois do dia de trabalho, se iniciavam com as aulas na casa paroquial. Enquanto um falava o outro ouvia, sempre! E o giz branco, letra bonita, continuava a desenhar: ma com to vira mato, com ta vira mata...labuta, luta, talo, lobo, loba. E por ser eu que levava de charrete a professora Antônia para ensinar me sentia mais dono que os outros e por conta me dei a tarefa de acender e apagar o lampião a gás, fechar as janelas da casa paroquial e, claro, orgulhoso, levar Antônia de volta para a fazenda. Deixava Antônia na casa da sede, do seu Tó, esperava ela entrar e só depois disso desarreava a charrete, soltava o Brioso no pasto e ia dormir pensando na professora: nos inícios pensava mais seus dedinhos segurando o giz branco enchendo a lousa preta de palavras, de encantos, de números, de sonhos; depois os pensamentos foram se aprofundando, se encorajando e pegaram a querer segurar suas mãos, a tocar seus cabelos ondulados, a sentir seus perfumes até chegar o sono e sonhar: sonhei que me casava com ela e já naquela manhã, depois da noite de tão sonhado sonho, criei coragem dentro de mim e resolvi: vou namorar e casar com a professora, tenho que.

Antônia mais esperta tudo já tinha adivinhado. Voltando uma noite da casa paroquial: Como soube de meu amor? Como? Oras bolas Juvêncio, vendo o volume no meio de suas pernas. O que? Seu bobo: ouvindo seu coração e vendo o volume subir no meio das suas pernas quando me vê, sou cega eu?, por acaso acha que sou?

Assustei-me em demasia: coragem por demais nos dizeres de Antônia.

Outra noite, a seguinte depois daquela primeira conversa, voltando da casa paroquial, depois da aula, assim que passou a casa do negro Tibim, Antônia assobiou forte “Pssiiu!” e o cavalo Brioso obedeceu suas ordens, a charrete parou e eu senti o calor de seus lábios: Me beije, mandou. Obedeci: beijei. Beijamos. Salivas e calores, ondas que fugiam de um corpo atravessando o outro, línguas se misturando, quentes, salivas, furiosas ondas, mãos buscando corpos: tudo escuro, silêncio imemorial: sinfonia de amores, ruídos de beijos e de roçares de corpos. Nem a lua a nos vigiar. Vamos descer da charrete, disse ela. Mas Antônia, não somos casados. Quantos anos você tem, eu tenho mais de vinte? Falei: eu tenho vinte e três. Ela: podemos, então, vamos. Não, vamos embora. Rápido me desembaracei de tantos desejos, de tantos invisíveis laços que nos amarravam, nos entrelaçavam, nos colavam com fúria, calor e resolvi depressa: toquei a charrete.

Dia seguinte procurei pelo negro benzedor. Carecia de falar, de contar de abrir o coração. Tibim é um preto de cabelos brancos de tanta velhice. Muitos dizem que o velho tem pauta com o diabo, que não morre de arma banca e que não deixa a febre amarela entrar no seu corpo magro, ombros largos, dentes perfeitos. Benze e lê as linhas das mãos, mais das moças que querem casar. Sabe ouvir e pode-se nele confiar, como se confia em um pai. Tem a voz aflautada, cheia de ais e de uis, um dente de ouro na boca e, pela solitária vida, muito de mal se diz do negro Tibim. Encontro o velho negro molhando as plantas de seu misturado jardim de flores: E o que é que foi minino Venâncio? Contei um pouco, meio pelas metades do que ocorrido na noite passada, ali mesmo perto de sua casa. Vergonha, tinha, disse. Mas do que essa vergonha minino? Vergonha é fracassar na hora, o pinto arregaçar mole de medo de tantas belezas. E eu: Medo da mulher querer e saber tanto, Tibim; acha isso certo? Não são excessos tanta fúria nos abraços, nos beijos e no falar, sem nenhum pudor, que enxerga o volume crescer no meio das minhas pernas? E por acaso ela contou mentira? Seu pinto não subiu com os beijos, com as vontades? Sorte sua minino : com a idade, e falo por mim, só a cabeça de cima funciona e a debaixo, a que ela vê subindo no meio das suas pernas, não obedece mais as ordens e as fantasias: deve ser coisa de Deus, que quer assim, senão o que se teria era uma imensidão de filhos pelo mundo, bocas demais para comer em um mundo de tão pouca comida: velhos já avô de netos crescidos fazendo filhos e mais filhos.

E eu não conseguia me entender: excesso de fortes desavenças dentro de mim: querer, por demais desejar junto com um sentimento de desconfiança, de medo da coragem dos atos e das palavras de Antônia. Nunca, até então, nem mesmo ouvira, nas rodas de rapazes, contar de mulher assim. Nem mesmos nas histórias que os homens mais velhos e com posses de dinheiro contam das folias que fazem na rua das putas eu ouvi coisas assim.

Na charrete noite seguinte, eu acabrunhado, e Antônia decidindo por mim, falou: Então o que você quer? Uma mulher fria, obediente, poedeira de filhos? Não sou. Te quero e muito, inteiro e não escondo o desejo que tenho por você, por seus beijos, por suas mãos em meu corpo e pelas minhas mão tocando todas as partes do seu corpo que a vontade der. E eu: mas isso é certo? E ela: Se é certo ou errado eu não sei, e nem quero saber: o que sei é que assim eu sou e de mim eu não fujo.

Naquela noite, voltando da casa paroquial, assim que Brioso passou a casa do Tibim, lua nova, noite escura, céu estrelado, forramos o chão da estrada com o colchinil que cobria o banco da charrete e todos os exageros que tínhamos dentro dos nossos dois corpos e de nossas duas almas foram sendo, calma e ferozmente satisfeitos.

Vamos juntar? Antônia disse logo que se acomodou no banco da charrete a caminho de casa. Eu corajoso: Antônia, meu amor, não me assuste em toda conversa e encontro: não quer casar comigo? E ela: quero sim casar, mas não quero esperar. Melhor a gente se juntar logo. E onde a gente vai morar? falei querendo ganhar tempo e por a cabeça em ordem. E ela: do lado do curral, a casa do retireiro está vazia, desocupada. No sábado, não tem aula: vamos tomar banho na cachoeira Mal Assombrada e quando a gente voltar eu falo com o seu Tó, disse ela.

Dia seguinte ao nosso amor na estrada, de manhã, quando Antônia foi dar aula na vila para os pequenos, vi que levava nas mãos uma rosa vermelha. Depois dos acontecidos sentia necessidade de falar com o negro Tibim, ouvir dele suas ideias, aclarar meus pensamentos. À beira da estrada, no amassado capim onde forramos o colchinil, nossa cama – uma rosa vermelha. Fui até o jardim da casa do Tibim e colhi no pé de crista de galo e cacho mais vermelho, quase vinho de tão brilhante e trouxe em minhas mãos para junto da rosa vermelha. Primeiro coloquei ao lado da rosa, olhei do alto e não gostei do meu arranjo; limpei um matinho, fiz como seus raminhos um colchão e coloquei a rosa em cima do cacho de crista de galo e aí gostei do arranjo de flores que parecia nós dois abraçados, vermelhos, brilhantes.

Estava ainda por lá com meus pensamentos e minhas flores quando chega Tibim: Acho mesmo que vocês deviam era plantar um pé de rosa e um pé de crista de galo aqui: eu molho e cuido para vocês, meu minino e minha mininha Antônia, quer?

Cachoeira Mal Assombrada tem um feio nome, de causar medo; da casa do Tibim até ela se gasta mais de hora e meia caminhando pela mata escura, em trilhas úmidas de folhas e úmidas. Antônia tudo decidindo: Vamos sair logo de manhã, comemos o almoço de farofa por lá e voltamos antes do sol cair atrás do morro do Chapéu.

Fomos.

Quando, naquele sábado de manhã, passamos em frente a casa de Tibim Antônia cantarolava baixinho uma melodia bonita. Tibim ouviu e pediu para que ela repetisse a melodia.

Voltamos da Cachoeira, como Antônia havia decidido, antes do sol se por. Tibim nos aguardava no jardim de sua tapera. Ofereceu café e trouxe de dentro sua flauta de bambu: Toco e você canta, vamos?

Faceira Antônia iniciou, baixinho, voz de soprano, a melodia. Tibim, esperto, acompanhou e aumentou o tom e se ouviu em todo o Morro do Chapéu de Padre:

“ Jovenzinhas que estais enamoradas,

não deixeis passar a idade!

Se no peito vos arde o coração,

aqui está o remédio! Ai!

Que prazer, que prazer será.”

Linda demais professora Antônia, sua voz e a melodia, disse Tibim emocionado. E ela: É o canto de Zerlina de uma ópera chamada Don Giovanni. Sabe que estudei canto enquanto fazia o curso de professora e se não gostasse tanto de ser professora eu ia ser cantora. Vamos embora Juvêncio?

Fomos e encontramos o seu Tó frente a casa: onde estavam? E ela: Passamos o dia na Cachoeira Mal Assombrada. E parece que eu ouvi música, cantos e flautas? E ela: Sim, ouviu! Era eu que cantava acompanhada pela doce flauta do Tibim. E, seu Tó, o que eu queria agora falar é sobre a casa desocupada do retireiro que está vazia. E ele: Pinte ela com cal Juvêncio antes de se mudar.

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