Na manhã de domingo, um dia depois que passamos - Antônia e eu - em banhos e amores na Cachoeira Mal Assombrada, resolvemos de ir até a tapera do Tibim à busca das mudas de rosa vermelha e de crista de galo para montar um jardim bem exatamente no local onde aconteceu o primeiro ato de amor entre nós, logo ali na beira da estrada, onde ficamos abraçados sobre o chenile arrancado do banco da charrete que aliviava nossos corpos nervosos dos ramos secos e ásperos de capim.
Na porta da tapera, Tibim nos recebeu e foi obrigando a gente a entrar: queria oferecer o café coado na hora e broas de milho enfeitadas com perfumadas sementinhas de erva-doce. E acomodados em um cepo, beira do fogão, ficamos a beber café, a comer broas e a conversar. A tapera ficou toda imersa no perfume do café quente que escorria coador abaixo e Tibim foi pegar a sua flauta de bambu no quartinho onde dormia, sinal que queria falar de música: pediu que Antônia assobiasse, ou cantasse em “boca chiusa”, canções que ela havia aprendido na escola de música. E o silêncio foi quebrado pela bonita boca de Antônia, de onde - parece que se transformando em um cantador canário da terra ou um pintassilgo - vazava assobios e lás lás lás em diferentes tonalidades, alturas e sensibilidades compondo uma sonora melodia, bonita e sensível que Tibim guardou em sua memória musical e, sozinho, repetiu emocionado, olhos fechados, dedos rápidos e ágeis na flauta de bambu.
E foi lindo por demais o som da flauta de bambu quebrando o silêncio daqueles cerrados. Aplaudimos e comovida Antônia não se fez por menos e cantou com sua doce voz, agora em duo, acompanhada pela flauta de Tibim:
“Oh, céus! Um precipício,
um escândalo, uma desordem
evitemos por caridade!
Oh, céus! Um precipício
por certo aqui nascerá.
Oh, céus! Um precipício
um escândalo,
Uma desordem evitemos,
por caridade!
Juizo! Juizo”.
E eu - mundo inexistente - céus e sonhos, a ouvir!
Ao término da canção, Antônia deu um pequeno passo para trás e maliciosamente, dengosa por demais, segurou a barra da saia como as pequenas e delicadas mãos e abaixou o dorso -que dava para eu ver seus seios pequenos que despontavam dentro da blusa - agradecendo as palmas que eu, não resistindo, continuava intuitiva e descontroladamente a bater, e logo depois, ainda sob meus loucos e emocionados aplausos, delicadamente, tomou as mãos de Tibim e orientou-o para que, junto com ela, repetisse o gesto de agradecimento. E eu aplaudindo e aplaudindo! Bela música, manhã de sol: a música humanizando mais nossos corações, nossas almas.
Despertos de tão doces sentires - embalados por uma diáfana aura de felicidade que nos fazia sentir com força o suficiente para tudo domar e submeter o mundo, a natureza e os humanos à alegria e à beleza da música - fomos para o jardim à busca das mudas; orientado pelo negro, Antônia escolheu uma muda de rosa vermelha, e Tibim orgulhoso e atento, orientou-me em como retirar pequenas mudas e tomou em suas mãos uma enorme flor de crista de galo e pediu que eu a levasse com todo o cuidado – estava cheia de pequenas sementes, me disse – e ele, por conta, com uma pequena enxada, recolheu batatas de dália amarela, e duas ou três mudas da verde losna. E com as mãos ocupadas com as mudas, uma lata cheia d’água e a pequena enxada fomos montar o jardim de nosso amor.
Cerimoniosamente Tibim iniciou a limpeza do terreno, arrancando os agrestes capins, e tão logo deu esta tarefa por terminada, transfigurou-se, tornou-se sublime, hierático, olhos fechados, em transe, e de dentro de seu peito, subindo e atravessando a garganta, emergiu uma ancestral voz :
Arrumbobô! Arrumbobô, Oxumaré!
E para que também louvássemos soletrou, sílaba por sílaba, orientando nossa saudação:
Arrumbobô! Arrumbobô, Oxumaré! , repetimos, respeitosamente, saudando acompanhando o negro que se assemelhava a um rei, tão nobre e compenetrado de sua fé estava Tibim.
E rezando preces fizemos nosso jardim: rosa vermelha, crista de galo vermelha, dália amarela e losna verde: são as cores de Oxumaré, orixá do arco-íris, protetor da cachoeira Mal Assombrada, disse Tibim que começou a nos contar:
“A queda d’água da” cachoeira Mal Assombrada, onde ontem vocês passaram o dia a fazer amor e a banhar-se, forma – desconfio que não tiveram tempo para observar, ocupados que estavam com as lidas do amor - todas as manhãs de sol um colorido e maravilhoso arco-íris, e foi por isso que saudamos Oxumaré, orixá do arco-íris. E tem mais: atrás da queda das águas que formam a enorme cachoeira há uma escura caverna que foi, isso já faz certo tempo, foi meu pai que me contou, esconderijo de negros feridos, alforriados alguns que fugiam dos chicotes e das espingardas dos brancos escravistas, seus áulicos feitores e policiais do Império. Chegavam com o lombo ferido pelas bacalhoadas, braga nos pés: não eram gentes, eram peças e a caverna escura, protegidos pelas barulhentas águas da cachoeira, transformava-se em um porto seguro de negros fugidios. Quilombo da Cachoeira de Oxumaré!
E aí é que entra meu pai na história. Meu pai, nego Isidoro, preto luzidio como um tição de fogo apagado, pai de mais de dez filhos, tinha o dom e a paciência de procurar e achar ovos em ninhos de pássaros. Assim, em nosso quintal, misturavam-se galinhas, galos e galinhas d’angola com seriemas, codornas, jacutingas, frangos d’água, nambus; o quintal se tornava uma verdadeira orgia de aves: muito barulho e brigas entre tantos diferentes que se tornavam mistura para o almoço nos domingos e dias santos de guarda. E então, pai achou, e trouxe para casa três ovos de um ninho de urubu que foram colocados no mesmo jacá onde chocava a uma galinha índia de penas arrepiadas pelo seu estado de choco e também pela raça: brava galinha. Os ovos de urubu, com outro tempo de choca, resolveram antecipar a ninhada em dois dias e três urubuzinhos nasceram antes dos irmãos pintinhos. Nestes dois dias, a galinha esperando o nascimento de seus outros filhos, meu que pai tornou-se a mãe dos urubuzinhos: para cuidar completamente deixou de trabalhar nestes dias, até que os pintinhos nasceram e ele pode deixar os filhotinhos de urubu, brancos e feios, aos cuidados e sobre a proteção da galinha índia e seus oito filhinhos amarelinhos: piu piu piu... có có có: arrodeada da ninhada ciscava com os pés matos e as pedras e indicava com o bico forte as comidinhas cabíveis nos pequenos bicos e cobria e acomodava - protetora - toda a ninhada de filhotes - brancos e amarelos, não importava, eram seus filhos - sob suas asas quando o gavião surgia, qué qué qué qué , ameaçador no céu, pouco acima da moita de bambus. Alvoroço no quintal! Alertado pelos graves gorjeios da galinha índia e pelo silêncio dos pintinhos, corria em socorro o galo que assustava o gavião com suas asas e suas esporas e também corria meu pai com a espingardinha de chumbo atirando e xingando: filho da puta , gavião desgraçado e ao mesmo tempo gritava chamava e estumava os cachorros: pega Remela, pega Vinagre, pega seus merdas, para que prestam vocês? só servem para comer? vamos pega! pega! E minha mãe da cozinha berrava: xô gavião xôoo! E o gavião se assustava com tanto barulho e, conformado, saia a buscar outras comidas em locais mais calados, menos protegidos e tão logo não mais se ouvia o qué qué qué do gavião a galinha, vendo-se livre do perigo, se punha novamente a ciscar e a chamar seus pintinhos e os urubuzinhos para comer: có có có có có! e tudo voltava aos normais dos cotidianos: brigas e barulhos no quintal mas sem perigo de morte.
Dois urubuzinhos morreram, ou a cobra comeu, mas um, o Dito, cresceu tendo como mãe a galinha índia e meu pai. Se assemelhava, o Dito, até a um cachorro de meu pai, contava minha mãe, eu era ainda bem pequeno e não me lembro direito: onde ia meu pai, até mesmo cumprir suas necessidades atrás da moita de bananeira, lá ia o Dito junto: ora nos ombros, ora correndo e voando atrás do meu velho. Negro os dois: meu pai já com os cabelos pichainhos embranquecendo com o tempo vivido e o negro Dito com aquela cara de urubu coberta de enrugada pele, parecendo com aqueles cavaleiros antigos dos tempos de Artur da Távola Redonda que se vê nos livros de história. Bico recurvado, olhos por demais de enxergantes, voo quase tão silencioso como o das corujas, aliás segundo meu pai o voo do Dito só perdia, em silêncio, para o voo das corujas, estes que de tão silenciosos são impossíveis de serem escutados até pelos ouvidos demais de espertos dos ratos d’água e dos preás do brejo: e estes, pobrezinhos, quando menos esperam já estão nas garras e no bico da coruja, servindo de almoço ou de janta, dependendo da hora, se é de manhã ou de tarde. Mas o voo do Dito para ouvidos humanos era como o voo da coruja para o ouvido dos ratos d’água e dos preás do brejo: inaudível.
E o Quilombo da Cachoeira de Oxumaré reunia, naqueles tempos, mais de trinta negros e a noticia do quilombo correu mundo: se contava, sendo falso ou verdadeiro, de feitiços e magias que realizavam nas noites de sexta-feira, de orgias com negras buscadas, com consentimento próprio, nas vilas e fazendas para servir aos apetites sexuais dos escravos, elas que já tinham muito servido, querendo ou não, aos apetites dos bancos patrões; e se falava, também, de que preparavam, os negros, uma revolução de libertação e a volta para suas origens, onde mesmo aqueles que não eram reis e rainhas eram gente, não peças como eram chamados aqui, mesmo os que tinham sido rei em suas tribos na África mãe. Meu pai visitava o quilombo, levava comida, milho verde e teve vez que levou um tacho com pamonhas feitas por minha mãe e duas vizinhas: era janeiro, dia de Santo Reis e houve festa no Quilombo: canções, rezas, bebedeiras.
Foi quando correu a notícia, o vento que trazia, de que o Império mandaria polícia para arrasar o quilombo. Verdade? Pai não sabia se sim ou se não. Melhor precaver-se. Meu pai pensou e pensou. Todo o quilombo temeroso do destino a pensar. Pai resolveu sair dos pensares para a ação de luta, de defesa. E assim resolveu meu Pai caçar, beira do brejo, centenas de vagalumes; saiu de noitinha, assim que o sol se escondeu atrás do Morro do Chapéu, para a beira do brejo com um tição que balançava no ar, fazendo faíscas e cantava : vagalum tém tém, vagalum tém tém, seu pai tá aqui, sua mãe também! Vagalum tem tem... e assim, caçou e encheu uma latinha vazia de vagalumes, mais de cem, contou com os dedos depois. Dia seguinte iniciou, meu pai, uma operação delicada: amarrava, um por um, dando espaço de meio palmo entre cada um dos vagalumes, em uma linha de costura de minha mãe: metros e mais metros de linha com os pequenos vagalumes amarrados com um nó entre a cabecinha e o tronco. E já naquela mesma noite amarrou a linha delicadamente - para não dificultar o voo - nas asas e nos pés do Dito e iniciou o treino de fazer o urubu voar de noite. Urubu voa de dia, quem gosta de voar de noite é coruja: assim é a natureza. E Dito todo alumiado, parece que bordado de vagalumes! Vamos Dito, vamos, por Oxumaré, vamos Dito! Dito resistia, no início, às duas novidades em sua vida: “de onde já se viu voar de noite e, ainda mais, fantasiado de luzinhas de vagalumes; será que Isidoro está me estranhando, malucou o preto velho?” pensava Dito, mas meu pai era bom no ofício de domar bichos e Dito aprendeu não só a voar nos escuros da noite, mas voar todo alumiado por vagalumes, se assemelhando a um altar iluminado de lampadazinhas.
E então foi que chegou a noite em que os soldados do Império e junto deles capangas de fazendeiros da região apareceram na região do Quilombo da Cachoeira de Oxumaré. Era noite de lua nova, escuro, breu, quando os soldados terminaram de montar o acampamento, se preparavam para descansar para o ataque do dia seguinte quando foram surpreendidos por uma luz no céu que voava em torno do acampamento, silenciosamente, enquanto da floresta ouviam sons de tambores – eram os negros que cantavam e dançavam - : OXUMARÉ, OXUMARÉ! Fogos de foguetes comprados para as festas de junho ecoaram no ar: BUM! TCHIBUM!, e suas luzes se misturavam com as luzes dos vagalumes carregados por Dito e mais ainda: pedras redondas, duras e cocos de macaúba despencavam no acampamento por estilingues e bodoques e Dito continuava seu voo agora dando rasantes na cabeça dos soldados que, temerosos, amedrontados, imaginando ser praga e feitiço, fugiam apavorados e desordenadamente, deixando as barracas de lona, um e outro, mais medrosos deixando até o fuzil. Até o chefe de todos, um Coronel fugiu: pernas para que se tem?
E a noite continuou cheia de festas e danças: no escuro da noite, beira da cachoeira, agora chamada Mal Assombrada, se escutava tambores e vozes:
ARRUMBOBÔ, OXUMARÉ!
LÔGUM, LÔGUM EDÉ!
Pai dançou, cantou e dançou. Mãe retirou, das asas do Dito, a linha com os vagalumes, desatou nozinho por nozinho e levou de volta as luzinhas para beira do brejo. No lago do brejo barulho de sapos e como num espelho as luzes dos vagalumes. Bonito de se ver.
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