quarta-feira, 25 de março de 2009

A BUSCA DO CORPO.



Esta é a história da Fia Mineira, rezadeira e benzedeira, e da morte de Jair Barba, fazendeiro e pescador.
Tudo o que se deu nesta história aconteceu por causa de uma pescaria no Rio Grande, em dia Santo de Guarda e, também – não posso deixar de contar, para não faltar com a verdade -, por causa das pingas tomadas naquele Santo Dia.
Tudo começou com minha mãe desconsolada quando pai disse que iria pescar naquele final de semana.
_ “Sexta-feira Santa, dia da morte do Senhor, quando nem varrer a casa varro e você, Juca, me dizendo que vai pescar? Não vai guardar dia tão glorioso? Deus me livre até de pensar tamanho sacrilégio. Endoideceu homem, é só o que posso pensar. Desconjuro”.
Mas, eram tempos de poucas consultas e busca de conselhos: os homens diziam, desdiziam, ordenavam e, normalmente, eram obedecidos.
Assim:
- “Daqui de casa, vou eu, mais o Tonho, o Dito e o Feu. De fora, vai o Jair Barba com seus filhos crescidos, vai o Neu e mais gente. Prepara um frango com farinha para a gente levar. Vamos sair amanhã de madrugadinha.”
Era uma manhã de quarta feira e logo logo o movimento já era grande lá em casa: Feu e Dito saíram, com seus estilingues, à caça de passarinhos para fazer isca para pescar peixes grandes, Tonho saiu a catar minhocas para iscar anzóis pequenos de pegar lambaris que seriam, depois de fisgados, usados como iscas para pescar dourados...Tinham ainda que buscar os cavalos no pasto e arrumar as tralhas para a pescaria. Pai foi até o Taquari, na venda, e só ia voltar quando o dia já estivesse escurecendo, bêbado, trazendo garrafões de pinga, sardinhas salgadas e carne de sol: tudo para a pescaria.
Minha mãe, triste e ensimesmada, pediu para ajudá-la a pegar uma galinha no quintal. Debulhei duas espigas de milho, fomos para o quintal e começamos a chamá-las: Priiii pipipi..pi...priiiii!
- “Não vai querer matar a Laurinha, não, né, mãe?”
- “Já te falei que é pecado por nome de gente em bicho. Pare com isso.”
- “Ta bom, mãe, tiro o nome, mas não vai matar a Lau...minha galinha preta vai?”
- “Não , pegue logo aquela carijó dali.”
Feliz, peguei a carijó que era do Feu: “Bem feito, vai pescar em dia Santo, então Deus castiga e a gente mata a sua galinha. Laurinha está salva”, pensei.
Tonho, depois de catar um montão de minhocas, foi socar, no pilão, carne de sol com farinha de mandioca para fazer paçoca salgada. Mais bronca de mãe:
- “Ainda vai querer comer carne vermelha nestes dias santos...seu pai endoidou e vocês o acompanham nesta doidura? E o respeito a Deus Nosso Senhor, em seu dia mais Santo?”
Quinta-feira de madrugada, acordamos com berros na porta: era a turma do Jair Barba que chegava.
- “Oi de casa...Tem café margoso prôs amigos, comadre Maria? Julieta manda um abraço pra senhora.”
- “Entre, compadre.”
- “Cadê compadre Juca e os meninos, comadre?”
- “Foram prô pasto buscá os cavalos. Chegam já. Sirva de café, que está quente no bule.”
- “Comadre tá triste e aborrecida, tá não, comadre?”
Disse isso e sentou–se: enorme, barriga branca e peluda saindo fora da camisa, bigodes longos já com pelos brancos da idade, cigarro de palha seguro entre os dentes, no canto da boca; a cadeira sentiu o peso e rangeu forte, ameaçando desmontar-se toda.
- “Sei não...pescar nestes dias Santos de Guarda, não me parece coisa de cristão, compadre. Desculpe, mas é assim que penso”, foi o que mãe disse antes, também, de procurar uma cadeira para sentar-se.
O barulho do tropel dos cavalos chegando ao curral, os berros e nomes feios do Feu para o cavalo, que teimava em não obedecer, encerrou a palestra entre minha mãe e seu compadre, o Juca Barba.
Pai entrou:
- “B´dia, compadre!”
- “Bom dia, compadre. Dia bom para pesca.”
Chega Feu:
- “Benção, padrinho.”
- “Abençoe, meu filho. Beija a mão do padrinho.”
Logo todos se foram.
Ficamos em casa, minha mãe, eu e duas irmãs que iriam, ainda de manhã, para a casa do Tio Zé, na Fazendinha, passar a Semana Santa e dançar o baile que acontecia por lá todo Sábado da Aleluia.
Naquela tarde de quinta-feira santa, choveu forte, com raios, trovões, ventanias, e, com medo, pusemos para queimar Palmas Bentas nos quatro cantos da casa, mãe rezou um terço para Santa Bárbara, São Jerônimo e para a Virgem, para nos proteger dos relâmpagos que riscavam e alumiavam todo o céu e - para mim, o que era pior - eram seguidos pelo estrondo forte dos trovões que pareciam a tudo querer derrubar e matar. Minha mãe deixou eu dormir com ela aquela noite: medo demais e, agora penso, que não era só meu aquele medo todo. Dividimos o medo e o conforto da cama de palha e o sossego de, depois, ver as estrelas no céu, sinal de que a chuva havia, mesmo, passado, graças a Santa Bárbara.
Dormi feliz.
Sexta-feira Santa, à tarde, a todo galope, em seu cavalo tordilho, e aos berros chega Feu:
- “Padrim Jair Barba morreu, mãe”
- “Deus do céu, que que foi o acontecido?”
- “Caiu da canoa e se afogou. Rio tá cheio, correnteza brava. Morreu, mãe, e não achamos o corpo. Pai mandou buscar Fia Mineira.”
- “Santo Deus...comadre Julieta já...”
Não houve tempo de terminar:
- “Sabe não. Vou ao rancho da Fia Mineira e, de lá, vou até a casa da madrinha Julieta, avisar.”
E, como um raio que chegava, partiu a galope, esporeando o suado cavalo tordilho.
Mãe se pôs a rezar e a chorar.
Fia Mineira era uma mulher negra, com os cabelos pichainhos enrolados, no alto da cabeça, em dois cocurutos mal feitos; possuía dentes claros e fortes saindo da boca, em um sorriso meio permanente, tinha os olhos excessivamente claros, de uma cor cinza azulado, que contrastava com sua face morena, retinta. Todos nós, crianças, tínhamos medo dela, mas nosso medo não era considerado quando tínhamos febre, dor de dente ou de ouvido: querendo ou não, éramos levados até seu rancho para passar por suas rezas e seus benzimentos. Fia Mineira a tudo benzia e a tudo curava: febre, mal olhado, espinhela caída; também sabia rezar e colocar velas na cabaça apara achar corpos afogados e perdidos nas correntezas e profundezas dos rios. Essa sua capacidade era tanta que fez fama e era, muitas vezes, chamada para achar corpos até no distante Rio Pardo, lá longe, pelas bandas de Patrocínio.
Chega Feu, sempre a galope, sempre aos berros:
- “Mãe, a Madrinha chega logo e pediu para a senhora ir com ela. Tá chorando muito e desmaiou a hora que dei a notícia. Fia Mineira vem com ela.”
- “Deus do céu, me ajude! Dai-me forças”, rezava a mãe.
Feu foi para o pasto buscar cavalo para a mãe ir para o rio. Mãe chorava, rezava e excomungava todos os homens pela falta de juízo e respeito pelas coisas santas e sagradas: “só pode ter sido um castigo de Deus.”
Chegam, em dois cavalos, Dona Julieta, mulher do falecido, e Fia Mineira, segurando, em uma das mãos, um maço de velas.
O encontro das três mulheres foi dramático: todas chorando, se abraçando, murmúrios são exclamados em alto tom; rezam, se abraçam e se consolam...O silêncio que imperava quase absoluto naqueles ermos de furna é cortado pelos soluços pungentes, desconsolados, e pelos uivos e resmungos das três mulheres.
Antes da saída, Fia Mineira, prevendo as dificuldades possíveis a serem enfrentadas, ordenou:
- “Feu, vê se arranja logo umas três ou quatro cabaças e serra no meio. Choveu demais e as correntezas estão dominando o rio.”
Tudo arranjado, fomos; eu na garupa do tordilho do Feu, segurando em sua cinta e, medroso, agarrado em sua barriga.
Para perder o medo de cair do tordilho, me pus a pensar: “Melhor que chamar a Fia Mineira, seria rezar para São Longuinho. Toda coisa que perco, rezo e peço a ele e sempre acho; ontem, mesmo, perdi uns olhos de cabra e rezei a São Longuinho: “São Longuinho, São Longuinho, perdi meus olhos de cabra, ajuda eu achar que eu dou três pulinhos” e logo já achei os meus olhos de cabra e dei os três pulinhos pela graça alcançada....será que é pecado pedir para o São Longuinho achar o corpo do Jair? Não quero ver o corpo, tenho medo e sei que o pai vai ficar bravo se eu não quiser beijar a mão do defunto; acho vou chorar de tanto medo. Vou mudar de pensamento, melhor pensar noutra coisa: em Laurinha, nos lambaris...”
Devo ter soluçado:
- “Que foi?”
- “Tô com medo.”
- “Medo do que, seu cagão?”
- “Tenho medo de defunto.”
- “Cagão..., não é homem não? Medo de defunto, vê se pode.”
Chegamos às margens do Rio Grande. No local onde o pessoal estava pescando, apenas um rancho de pau a pique, coberto com folhas de coqueiro, uma pequena fogueira e uma tristeza imensa.
A chegada das mulheres cria um clima de hostilidade; o acontecido, para elas, era um castigo pelo desrespeito e abusos no dia Maior, dia da morte do Filho do Senhor.
Fia Mineira assume o comando da situação:
- “Onde foi que o corpo caiu?”
- “Da canoa, bem no meio do rio, perto daquelas pedras lá em cima” responde, pelos homens, meu irmão Dito.
- “Deus do céu...vai ser fácil, não! Vamos até o primeiro poço que se forma depois das correntezas das pedras. Vamos depressa, antes que escurece o dia. Prá beber pingas, vocês prestam, agora vamos ver se para rezar vocês também prestam, cambada de gambás.”
Assustava-me aquela coragem da Fia de enfrentar tantos homens, de ofendê-los e, mais ainda, vê-los todos obedientes e seguirem a negra.
Minha mãe pegou o maço de velas e Dito as cabaças.
E, já na saída para o local, em voz alta, Fia Mineira se pôs a rezar: “Salve rainha, mãe da misericórdia...” e todos nós, guiados por ela, acompanhávamos: “Salve Rainha, mãe da misericórdia...” Em um remanso do rio, logo abaixo das pedras, formava-se um grande e profundo poço, com águas calmas, barrentas das chuvas, sem correnteza, mas com fortes redemoinhos: “se cair e for puxado por um destes redemoinhos, é morte na certa”, disse, baixinho, para mim, o Tonho. Gelei de medo, saí de perto dele e procurei socorro nas saias de minha mãe, que, agora, era quem puxava o terço, em voz comovida e cheia de fé.
Fia Mineira se aproxima da beira do poço que se forma à margem do rio, olha para o céu, fecha os olhos acinzentados, cerra os dentes enormes dentro da boca, e, com seus braços fortes a tremer, segura uma cabaça cortada ao meio, e recitando palavras que só ela entendia, acende uma vela e vira a ponta acesa para dentro daquela canoinha de cabaça, fazendo um montinho mole de cera, onde, cuidadosamente, a coloca. Sempre rezando, com os olhos cerrados, espera secar e, com a vela agora firme e presa no fundo da meia cabaça, pede silêncio e ordena que todos orem pela procura do corpo.
Silêncio mortal. Nem o barulho das bravas correntezas ao encontro das pedras se ouvia. O mundo se calou. Fia Mineira continuou com suas preces e, num dado momento, soltou como que um murmúrio alto, saído do fundo de seu corpo:
- “Vai lá, Oh Divino! Ajuda a achar o corpo santo do defunto Jair” e soltou nas margens a cabaça com a vela. Sempre rezando preces indecifráveis, continuou a exigir silêncio:
- “Quietos, pra não atrapalhar a busca.”
A cabacinha, como uma canoa com uma a vela acesa ao meio, saiu da margem e guiada por alguma força do infinito, devagar e de modo incerto, indo e voltando, chegou ao centro do poço, encontrou o redemoinho e se pôs a girar sobre si mesma, no início, com uma certa calma, e, logo depois, furiosamente.
- “Tá lá. Alguém dos homens sabe nadar?”
Silêncio.
Á beira da margem, com os pés na água, apenas a negra Fia Mineira.
A negra gira seu corpo contra as margens do Rio Grande e se vê, primeiro, bem pertinho, rodeada pelas mulheres e, mais ao longe, por um outro arco formado pelos homens. Berra:
- “Tão surdos? Perguntei e tratem de responder: alguém de vocês sabe nadar?”
Feu movimentou os lábios para responder que sim, que sabia, mas foi agarrado pelo Tonho, que sussurrou: “Ta louco, sô. É morte na certa. Poço com redemoinhos, cheio de galhos de árvores. Quer morrer, também?”
Fia Mineira lança novamente o desafio:
- “Nadar ninguém sabe, agora? Só beber e desrespeitar os dias Santos, é o que sabem, seu bando de gambás fedorentos, catingudos de pinga. Entro eu e busco o corpo.” E, imediatamente, começou a tirar seu vestido roto.
Feu berrou:
- “Preta de merda, aqui tem homem. Reza, que é o que você sabe fazer, que buscar o corpo do padrinho busco eu. Sou muito homem para isso.” E, imediatamente, tirou a camisa, mostrando o peitos largo e os braços fortes. Tirou as botinas, as calças ficando apenas com um largo calção azul, que usava como cueca.
Mãe se pôs a chorar baixinho: “Deus do céu, acuda e salve meu filho. Perdoe as besteiras que fizeram, por favor; Virgem Maria que é mãe sabe a dor da perda de um filho.”
Dona Julieta se colocou no meio do caminho, tentando impedir que Feu entrasse n´água em busca do corpo:
- “Entra não, meu filho...chega a dor da morte do Jair.”
- “Madrinha, tenho que entrar e buscar Padrinho.”
Dirigiu-se até à margem, fez o sinal da cruz e principiou a entrada no poço. Seu corpo foi sumindo nas águas barrentas e, agora, só se via suas costas largas e brancas. Dito se aproximou das margens e também começou a tirar a roupa: “tenho tanto fôlego quanto o Feu. Vou prender a respiração e, se perder o meu fôlego e ele não voltar de debaixo d´água, entro e busco os dois.”
Mãe rezava baixinho, com dona Julieta. Fia Mineira cerrou outra vez os olhos e os dentes e continuava a cochichar suas rezas incompreensíveis.
Pai e os outros homens foram se aproximando da margem, ficando, agora, mais perto das mulheres. Neu voltava do rancho, com uma rédea e um cabresto amarrados entre si, formando uma corda longa e forte.
Agora só se via, no meio do poço, a cabeça do Feu; deu para ver que ele fez outro sinal da cruz e mergulhou. Todos seguraram a respiração, mergulhando junto com ele, na busca do corpo, e, ao mesmo tempo, com os olhos fixos n´água, para vê-lo surgir. Segundos que pareciam horas, horas que pareciam dias...
Acabou o fôlego do Dito, que iniciou a entrada no poço. Quando colocou seus pés na água, surgiu o Feu, no meio dos redemoinhos, e nadou, com braçadas fortes, até a margem. Estava exausto:
- “Ta lá embaixo, engarranchado no meio dos paus, o meu padrinho.”
Neu, agora, dava as ordens:
- “É assim: vamos amarrar o Feu nesta corda...”
Interrompido pelo Dito:
- “Não. Eu é que vou, desta vez. Feu descansa um pouco.”
Foi amarrado pela cintura, com a corda improvisada, e todos, mais uma vez, mergulharam com ele, segurando a respiração. As mulheres rezavam, em voz baixa. A dor da perda calava um pouco, pela ansiedade da busca, pela cabaça que continuava a girar, com a vela acesa, em volta do redemoinho...
Dito volta:
- “Sim, tá lá embaixo, preso nos galhos. Tá bem fundo.”
Foi a vez do Feu mergulhar.
Parece que medindo o tempo, a vela na cabaça, já havia queimado em mais da metade. Demora muito prô Feu voltar. Dito, que media o tempo do fôlego do irmão com o seu, berrou para Neu:
- “Puxa ele, puxa” e, imediatamente, encostou-se ao Neu, tomou-lhe a corda e puxou com força. A corda esticou-se toda e a força que Dito fazia parecia descomunal. Vez do pai berrar: “Tonho, ajuda o Dito”. Tonho, Dito e Neu, agarrados à corda, puxavam com todas as suas forças; a corda se esticava toda, afinava-se em alguns pontos, mas os nós dados pelo Neu resistiam.
- “Vai rebentar esta corda”, disse Dito;
- “Vai não, força;”
- “Vamos lá, um, dois, três e já, força” respondeu Neu. Todos obedeceram e as três forças se tornaram uma só, que, forte e poderosa, trouxe, para a tona, Feu, agarrado ao corpo de seu Padrinho Juca Barba. Feu estava branco, quase desfalecendo pelo esforço.
A cabaça com a vela adernou-se com a força dos galhos que vieram junto ao corpo do morto; virou e a vela apagou: missão cumprida.
Pai se juntou aos homens somando sua força à dos outros e arrastam Feu e o corpo do Jair até a margem. Dona Julieta se joga n´água, aos prantos, sobre o corpo do marido.
Mãe reza e chora, enquanto Fia Mineira se ajoelha no chão, cerra, mais uma vez, os dentes grandes dentro da boca, fecha os olhos e agradece:
- “Graças, Senhor, Pai dos aflitos, pela graça do achado do corpo do defunto Jair. Salve Rainha, mãe da misericórdia, bendito é o fruto de ...”
- “Amém”, responde minha mãe.
Dona Julieta continuava agarrada ao corpo gordo, forte e úmido do marido morto.
Corri para junto do Neu, que tinha voltado para o ranchinho com suas cordas:
- “Neu, quero ver corpo de defunto, não, tenho medo.”
-“Tem medo não, menino! Morrer todo mundo morre, um dia”.
Foi meu primeiro encontro com a morte.
Mairiporã,fevereiro/2009

sexta-feira, 13 de março de 2009

Surpresas!!! Pedregulho em São Paulo!




Fomos ontem, eu e a minha mulher, ver “Aspirinas, Cinema e Urubus”, na Sala LL.
Uma tarde de surpresas... boas surpresas.
A sala fica em um espaço que está mais para decadente do que para os charmosos espaços Unibanco, Belas Artes e outros que tais. No atendimento da bilheteria, nada de rapazes e moças de posse de microfones, informando, automaticamente, os horários e os preços. Estava lá um típico nordestino, com a falta de uns dois ou três dentes, que, muito simpático e feliz, nos deu o preço, o troco e, sem a menor cerimônia, simplesmente nos informa que era para esperar uma meia hora, tempo da sessão em andamento terminar.
Conclusão de que não havia sala de espera e a água e o café tinham que ser tomados em alguma lanchonete da galeria. O bom foi, nesse passeio pela galeria, descobrir uma loja de excelentes CDs de música popular. Lá se encontra bons selos, com artistas que vão do Elomar e Helena Meireles a Iamandu Costa, sem esquecer dos velhos e sempre presentes Chico, Elza Soares e muitos outros. Muito boa a loja.
Passada a meia hora, fomos ao que interessava: à Sala LL...
Minha mulher aproveita para comentários: gostava muito das interpretações da LL...que era uma atriz belíssima...que sua filha também é uma atriz competente, não tão bonita como a mãe, mas casada com um dos atores mais bonitos da televisão.
Voltando à sala: feia...muito feia. As paredes cobertas com horríveis carpetes pretos...as cadeiras e o teto vermelhos. Tela pequena. Na sala, apenas eu e a Eva, minha mulher.
Na sala de projeções, vista através de vidros, o nosso bilheteiro nordestino, agora como Alfredo, do “Cinema Paradiso”. Chega uma outra senhora, senta-se à nossa frente e...pasmem...nos cumprimenta:
- “Olá, boa tarde. Estava me esquecendo de cumprimentar os colegas”.
Pouco depois, chega uma outra moça, que não cumprimenta os colegas presentes. Abre lá sua garrafinha de suco e, me pareceu, seguindo todo um ritual, se põe a tomá-lo.
Na porta da sala, aparece um casal, acompanhado de um senhor de terno e gravata. O senhor engravatado informa o número de lugares da sala – 93 lugares – e fala que há uma afluência maior de público em finais de semana e nas sessões noturnas. Pelo papo, percebe-se que o negócio era a venda de espaços publicitários a serem colocados antes dos “trailers” e filmes. O escritório da sala é a sala.
A penúltima surpresa estava para chegar. Preconceituoso que sou e mal acostumado com a OSESP, que anuncia o início dos concertos ao som de trompetes interpretando parte da Alvorada de Lo Schiavo, de Carlos Gomes, tenho ficado muito implicado como o som das campainhas antigas, anunciando o início de espetáculos ou concertos. Detesto aquele “nhéeeeeeemmmmmmm” rouco e fanhoso. Nessa tarde, nada disso: nem os trompetes da Alvorada nem a rouca campainha. Uma mocinha segura as vermelhas cortinas que fecham a sala e, em alto tom, fala com o nosso Alfredo nordestino, agora todo Paradiso:
- “Tá na hora!”
Depois de uns dois ou três “Tá na hora”, as cortinas se fecham, as luzes se apagam e vamos ao que interessa: uma sessão de cinema. O som é bom e, logo, logo, esqueço de tudo, mergulhado no Aspirinas...
Um bom filme e mais surpresas. Eis que, na saída, somos abordados pelo senhor de terno e gravata. Direto e reto, sem mais nem menos, muito simpático, nosso amigo gerente desfila uma série de elogios à “fita” e aos, segundo ele, “desconhecidos atores”.
Fora a “fita”, que me fez muito bem, me senti em Pedregulho, no velho cinema do Salim, assistindo aos velhos bang-bangs do Durango Kid e Roy Rogers. Muito bom!
PS: Escrevi esta pequena história já há uns quatro anos; a indecisão em postá-la, ou torná-la pública, diz respeito ao receio de que a mesma pudesse apresentar, aos leitores, ironia e desrespeito em relação à sala, o que não foi, de modo algum, minha intenção. Respeito muito o projeto da sala e, sempre que posso, volto lá para ver bons filmes e, claro, me lembrar do Cine Central, ou o cinema do Salim, lá na longínqua - tempo e espaço - Pedregulho.