segunda-feira, 26 de novembro de 2012
O MORRO CABEÇA DO PADRE -I–OS INÍCIOS!
Juvêncio se põe a rememorar e a contar:
“Cabeça do Padre é o nome do redondo e volumoso morro que quando enxergado do alto - tal como é visto pelos urubus em seus mansos voos - se assemelha a um enorme meteoro esborrachado no meio das planuras das furnas do Rio Guamá. Agora o nome Cabeça do Padre é devido ao seu topo: tal e qual uma careca - formada por uma rocha que brilha ao sol depois das chuvas ou das garoas - cercada do verde das árvores, lembrando a tonsura exigida para diferenciar a cabeça dos padres dos normais homens de poucas letras da região.
E é nos baixios do morro da Cabeça do Padre vivem pessoas - famílias e mais famílias - e suas criações sendo estas algumas de pura estimação, mas a maioria de utilidade prática de matar para comer ou da justa serventia de puxar charretes, carroças e carros de boi: cavalos e éguas, jumentos, burros e mulas, vacas, cabritos, algumas poucas ovelhas, galinhas muitas, perus também poucos, um único e solitário pavão. Em Venda Nova, nome da vila esparramada em volta do morro, as pessoas viviam - não sei como estão as coisas agora, mas acho que a modernidade e seus barulhos já alcançaram aquele fundão das Gerais - com os ouvidos acostumados ao musical som do silêncio: se escutava o assovio dos ventos, o farfalhar das chuvas nas folhas das árvores; também se ouvia, quase sempre, de dia e de noite, latidos dos cachorros que esqueci de listar junto com os outros animais, mas são classificados como de estimação embora tenham sua utilidade: não é animal de se comer e não têm forças para puxar carroças ou charretes, mas além da amizade com seus donos são carinhosos, vivem a abanar o rabo de alegria, lambem as feridas e mesmo o chulé que forma entre os dedos dos homens que usam botinas, e têm ainda a utilidade de vigiar as casas de humanos duvidosos e de assombrações; além disso ajudam – por causa de seu faro e de seus dentes - nas caçadas de veado ou de tatu, estas sempre a noite, que é a hora escolhida pelos tatus para saírem dos buracos com seus os olhinhos negros, brilhantes a procura de alimentos: de dia ficam nos escuros de suas locas, inacessíveis até ao faro dos perdigueiros, estes sim, são cachorros de raça; tem também os cachorros menores, remelentos vira-latas - Vinagres, Ferrugens, Ximbicas, Futricas esses os nomes usados - que latem sempre ao menor ruído e muito úteis para pegar nos quintais o frango para o almoço dos domingos e dos dias santos de guarda, dias de receber visitas, ou as galinhas para engrossar e dar sabor e sustância ao caldo quente necessário quando do resguardo da mulheres paridas em seus quarenta dias de descanso, que passam deitadas, quietas de trabalho algum, só a amamentar o serzinho parido ali mesmo, em casa, com suas forças e ajuda da parteira Cotinha, aqui na terra e as graças da Nossa Senhora dos Bons Partos, lá no céu: teias de aranha e rezas para o umbigo cair, seco. No ar, quase sempre, o cheiro das vacas e cavalos se sobrepõem ao delicado perfume das laranjeiras e das flores dos cafezais quando se chega a época de florada, e isso é lá por março ou abril.
E de onde começou a Venda Nova?
Tudo tem seus começos, seus inícios e eu vou contar o que eu sei de ouvir falar, nada de escritos ou registrado em anais, porque aprendi a ler, já moço, de barba e tudo: redigo o que escutava nos fins de tarde, quando em frente da casa, o avô, cigarro de palha fumacento, catingudo, narrava o que seus bisavós garantiam que o nascimento da vila se deu com os finais das riquezas das pedras do rio Guamá, que junto com as grupiaras perderam os brilhos, secaram - ouros, diamantes - se definharam, sumiram de vez e os aventureiros homens de então com as cacundas doloridas – estranhando o tanto de tempo em que eram obrigadas a ficar curvadas, os olhos dos seus donos, desacorçoados, desesperançados nos fundos das bateias carregadas de pedras molhadas, sem nenhum brilho reluzente, aluviões - e as dores e os esforços não respondendo a contento com a esperança de enricar dos homens que labutavam no Guamá à cata de brilhantes. Era o jeito, a sina e então eles foram voltando de sonhos desfeitos, uns, podendo, comprando fazendas, outros, mais carentes, pequenas chácaras, uns construindo casas de pedras e alvenaria, outros choupanas; chegaram e foram metendo fogo no mato para fazer roças, laçaram e domesticaram bugres para cuidar das lavouras, já que agora que não precisam mais deles para guiar pelos rios e cachoeiras das Gerais. Só depois, mais tarde, é que chegaram os negros, comprados no Rio, que vinham com suas mulheres, negras, belas e com elas, nas tardes quentes, ou nas frias madrugadas, se faziam filhos e os pias nascendo, povoando, misturando cores e almas. Já mais depois: italianos barulhentos, carcamanos para as roças de café, colonos e os turcos, estes mais para mascatear e negociar: lojas de tecidos, armarinhos: mas isso, bem depois, Igreja já construída, missas de natal e de corpo presente já rezadas.
Muitos!
“Mas está contando os de agora, Juvêncio?”
“Que nada! O que conto é dos meus tempos de moço, rapaz sacudido, os ouvidos acostumados ao cri! cri! cri! dos grilos, e o nariz capaz de sentir cheiros de onça e de moça. Embora não tenha mais tantas certezas: nos dias de agora, as cãs brancas, o miolo mole a tudo confunde: nunca sei se é de agora ou de ontem, perdi força sobre meu tempo. Mas o que é certo que é de agora, dos então deste momento que estamos a palestrar aqui tão quietos, tempos em que os sinos estão mudos, não sei se por ser fora de moda, ou se os seus sons prateados estão abafados pelo barulho carvoento e oleoso dos carros e caminhões que, dia e noite, não desistem e nem se cansam de passar frente a cobertura de telhas Eternit – minha casa - e do banco de cimento – minha cama - mandado fazer pelo prefeito que era para o povo ali esperar sentados, protegido do sol ou da chuva, os ônibus ou as topiques: mas os ônibus, as topiques e os passageiros, agora respeitando meu senhorio sobre o ponto – minha, nossa casa - se ajuntam acomodados um pouco mais a frente, sob o sol ou sob a chuva e ali, onde o prefeito construiu o ponto agora é a casa do “Juvêncio, o louco que mora no ponto de ônibus”, dizem, ou pensam; mas o que acontece é que daqui me apossei e é onde vivo. Mas, voltando ao de ontem, aos passados guardados dentro de mim, digo que nasci ali na Venda Nova, protegida nas manhãs do sol pela sombra escura do morro da Cabeça do Padre; outra coisa é que eu só vi outro mundo diferente da Venda Nova já homem casado, pai de filhos, fugindo dos medos da revolução.
Quando moço novo, cheguei a vaqueiro principal na fazenda dos Diniz, responsável por zelar e pelo retiro de mais de cinquenta vacas leiteiras: daquelas chifrudas, de úberes pequenos de pouco leite, as tetas duras exigindo força na munheca para encher os baldes de leite, coiceiras, as danadas. Uma manhã, leite tirado e gado apartado Seu Tó Diniz, dono da Fazenda Toca da Onça, chega e me diz: Juvêncio, pegue a charrete e vai no ponto de ônibus pegar a professora que vem para Venda Nova ensinar as crianças. Esta meninada carece de aprender a leitura e a escrita, carecem de aprender a fazer as contas de mais, de menos, de dividir e de multiplicar, principalmente este bando de meninos e meninas bronzeados: puris, bugrezinhos, cafuzos, cafuás porque os alvacentos têm professores que ensinam em suas casas, mas estes outros demais não. Foi ele que disse e ordenou.
Vale contar do seu Tó Diniz: homem de baixa estatura, magro, corpo todo coberto de negros, com a chegada da idade, mais no fim prateados, pelos subindo do pescoço e se misturando com a barba, quase sempre feita a navalha, dia sim, dia não. Gostava e apreciava os ócios e os luxos do bem viver, cuidadoso do jardim que cercava sua casa com hortênsias encanteiradas, floridas de azul nos invernos, orientando o caminho de quem chegava na caiada branca casa, alpendrada em toda face que dava para o Morro; casa de muitas azuis janelas, com a porta grande da entrada almofadada, feita de jacarandá e dentro dela, os cômodos todos com assoalho feito com largas e grossas tábuas de angico amarelo, de jacarandá ou de ipê - madeiras de lei – e, na sala de receber visitas, até piano com rabo tinha, fora a banheira que mandou buscar, diziam, nas europas. Um brinco de casa, cuidada com esmero e capricho por Dona Ester, sua esposa, que veio dos lados de Diamantina, acostumada às finuras e luxos da Corte, neta de nobres homens, pares de deputados da Assembleia Constituinte do Império, importantes pessoas. E ela, Dona Ester, que nas horas vagas, e eram muitas, tocava piano, misturando as melodias das notas das brancas e negras teclas aos sons dos sabiás, dos pintassilgos e até das agudas seriemas. Beleza: e era bela a Dona Ester: branca, clara, olhos negros, sacudida de forte, opulenta nas dianteiras e nos traseiros: bons peitos e boa bunda, sacolejando toda, na fartura, quando andava, boníssima alma de voz calma e doce sorriso.
Mas como ia te contando, obedeci às ordens, arrumei o cavalo na charrete e fui. Me lembro direitinho, vi Antônia descer da jardineira: uma mulher pequena, bronzeada na cor da face, cabelos negros, cacheados, lábios finos, narizinho bem feito – tremia na busca de cheiros e perfumes – dava a impressão de querer conhecer o mundo pelo nariz delicado, olhos escuros, brilhantes. Vou contar do corpo: pequena mulher, tudo nos diminutivos: peitos, bunda, pernas; mas tudo recheado, com carnes e não ossos à mostra, firmes carnes, com certeza, perfumadas. Me viu e disse: me ajude com esta mala, mais pesada, a outra eu carrego como que querendo mostrar desde o primeiro momento ser decidida, dona de seu nariz, brava em sua beleza!
Como adivinhou que eu estava ali para levá-la, de charrete, para a fazenda do Tó Diniz? demorou para me contar.
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