domingo, 13 de maio de 2012

PROFUNDOS SERTÕES -II–QUANDO A PRIMEIRA ALMA PENADA CONTA A MORTE DO BOI MANSINHO.

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“Sangrem minha goela, mas não matem o Boi Mansinho”, gritou a beata conhecida no Juazeiro como Maria Tubiba” - “in” Neto, Lira – Padre Cícero –
No céu apenas uma nuvenzinha que em sua cor cinza anunciava que não tinha força total para fazer chuva; estava ali, a nuvenzinha cinza, mais para enfeitar – desenhando uma figura que lembrava um anjo de trombeta à boca - o céu azul daquele dia de outubro; nuvem fraca de pequena, sem forças para fazer chover e nem mesmo para fazer sombras aliviadoras do sol quente. A praça, que rodeava a igreja branca, estava o mais possível cheia de gentes – homens, mulheres carregando filhos, velhos de pitos na boca e velhas mascando fumo - quanto podia ter Juazeiro naqueles tempos de Padim Cícero vivo e santo; e, na praça, todos aqueles povos reunidos esperando o que não esperavam e não queriam, isso se as notícias fossem mesmo verdadeiras. “D’onde já se viu matar na praça o Boi Mansinho, que nada fez de mal a não ser milagres e bons milagres com a graça de Padim Cícero e de Deus Nosso Senhor? Qual é o mal em fazer enxergar quem está cego? Ou qual é o mal em fazer andar quem está inválido das pernas?” é o que, ali reunidos na praça, matutavam enquanto ouviam os berros chorosos da beata Maria Tubiba que ecoavam pela praça e iam rebater mais longe ainda, lá pros fins de Juazeiro. O ar cheio de tristezas!
E era eu, Quinquim do Caiaqui, que me apresento, quem levava, segurando pelo cabresto, o Boi Mansinho que como um cego guiado, sem saber de suas forças obedecia os caminhos que eu decidia e me seguia com seus passos lentos, seus olhos negros, doces, preguiçosos; adentramos praça a dentro: Boi Mansinho com os dois chifres enfeitados com guirlandas de flores que eu colhi e com cipó amarrei e construí; duas vistosas guirlandas, uma para cada chifre, feitas de vermelhas palmas de nossa senhora, de azuis flores de jacarandá mimoso e de rubras cristas de galo. E eu, naquela hora, enquanto conduzia o Boi Mansinho para a morte, pensava que se eu fosse o Mansinho me punha a correr, a chifrar, a bufar e a berrar forte: mostrar as forças de filho de Deus; mas eu não sou o Boi Mansinho, que segue quieto e sonolento para seu calvário de morte, e quem berra é a beata Tubiba; e sou eu que mostro e guio o caminho de sua morte, a sua via cruz e foi por ele, por Mansinho, que estou aqui agora em Juazeiro. Não sou daqui não! Sou de mais longe: eu que tinha e vivia a minha vida de vaqueiro nos confins dos sertões, longe daqui. Vou contar das mudanças! Uma manhã patrão chamou e ordenou: “Quinquim preciso de seus serviços de vaqueiro. Quero que me leve, são e salvo, este garrote até Juazeiro: é um presente meu para o Padim Cícero que anda precisando de boi bom para cobrir suas vaquinhas de pouco leite, sem raça qualquer.” E eu que ao ser chamado na sede pelo patrão pensava em ter que afiar o punhal para cumprir mortes, parti, montado em cavalo manso, puxando, com toda a paciência que Deus me deu, o garrote bonito, pelo lustroso, cupim querendo dar mostras de touro cobridor de vacas, a bolsa dos ovos grandes balançando, pedindo vacas: queria e queria fazer filhos. E eu vim! Vim com Boi Mansinho que entreguei com bilhete escrito pelo patrão diretamente ao Padim Cícero que me deu a benção e pra quem pedi que ajudasse a me livrar do vício da cachaça! E aqui fui ficando, ficando: o que fazia? Trabalhando nos cuidados com o Boi Mansinho e das vacas, arando terras para o plantio de aipim, obedecendo às ordens do Beato José Lourenço. E foi então que um dia chegou a polícia que prendeu o Beato e um soldado de longos bigodes e cara de mal ordenou que eu - “Eu?” perguntei e ele “Sim vosmicê, mesmo, é surdo, por acaso?” – guiasse, para a morte na praça, o Boi Mansinho. A morte foi na praça: Mansinho - parecendo formiga que leva para dentro do formigueiro as sementinhas que matam - chegou mudo de quieto na praça toda rodeada de gentes e cachorros. Tudo feito de silêncios naquela hora, fora os berros da beata Tubiba. Então escutou-se:Tum!!!: barulho da marretada na testa do Boi Mansinho - Tum!!! – tão mais forte que encobriu os berros da beata e de antes desse Tum!!! seco Boi Mansinho me olhou com seus olhos negros, me arguindo do que que estava acontecendo e, sem resposta minha, que chorava por dentro, se ajoelhou e deitou seu enorme corpo ao sabor dos chãos da praça. Morto! Na cadeia o Beato João Lourenço virou de costas para não ver os acontecidos e também chorou lágrimas de dor pelo Boi Mansinho. Deixei, morto na praça, o Boi Mansinho e com os trocados que tinha comprei cachaça e bebi. Bebi e bebi querendo respostas que não tinha para as perguntas das maldades que via. Na cadeia conheci Raimundo da Boca Torta e foi com ele, com Raimundo, que fui para Monte Santo, de Antônio Conselheiro: montados em dois cavalos e dois jegues carregando barris de cachaça. “Vamos vender e enricar: ferve de gente em Canudos” disse Raimundo e fomos. Aquilo tudo não me cheirava coisa de Deus, mas estava descrente demais: se mataram o Boi Mansinho que só sabia fazer cobrir vacas para gerar filhos, fazer as vacas encher as tetas e dividir os leites com os bezerrinhos e todos nós, então porque foi morto o Boi Mansinho? que fora isso, cobrir vacas e gerar filhos, só fazia outro bem: milagres e mais milagres bons para pessoas, nada de mal, nada do capeta, do demônio. Cachaça é coisa do capeta ensina Padim Cícero e eu com o Raimundo levando a bebida da desgraça para Monte Santo, do Antônio Conselheiro, para ganhar dinheiros se enricar e depois ir para onde eu não sei. Na praça de Monte Santos os barris de cachaça foram estraçalhados com foices e marretas e a catinga da cachaça derramada, que formava um corgozinho na praça seca, encheu os ares e se esparramou por todos os arredores: crianças e velhos tossiam causa do cheiro forte, mulheres rezavam dando glórias e os homens enchiam nossos corpos de palmatórias dolorosas, ardidas: “vão matar a gente” berrou Raimundo, “morram filhos do demônio, filhos do capeta” e chegou Antônio Beato, que a tudo espiava e ordenou o fim dos castigos. “Num quero voltar para Juazeiro, Beato Antônio: lá acabaram de matar o Boi Mansinho” e Beato Antônio olhou meus olhos pedindo verdades e eu respondi com olhos de verdade: “Quero ficar” e fiquei. Autorizado! E então, pelos meus conhecimentos das regiões e por minha braveza e coragem no uso do punhal e da espingarda legítima de Braga me tornei e me fiz guerreiro do Bem, guerreiro do Santo Conselheiro. De Deus!

Um comentário:

COMPANHIA DE TEATRO POPULAR NOITE DE REIS disse...

Bom dia.

Sou de Monte Santo. Também sou escritor, e gosto de escrever contos populares, causos, crônicas memorialistas.
Gostei muito do seu conto.
Visite meu face: IVAN SANTTANA

ABRAÇO.