segunda-feira, 25 de junho de 2012
O VISITANTE–II–AS TRÊS CRUZINHAS!
O visitante continua pensando sua história:
Em se vindo da vila para o sítio do Rebita Unha ou do Tira Prosa, quando se vê, ou melhor, quando se chega nas três cruzinhas, sabe que é hora de largar a estradinha de chão toda esburacada, machucada pelas pesadas e agudas rodas das carroças e dos carros de boi que nela trafegavam, marcada aqui e acolá por amontoados de bosta de vaca e de cavalo se assemelha, de longe, a flores negras enfeitando o rosado pedregosos da estrada, e pegar, às esquerdas, o estreito e tortuoso trilho que leva aos sítios dos acontecidos que estou aqui a rememorar.
O que se conta das três cruzinhas? Vi, com estes olhos que a terra vai comer, as cruzinhas que sob o sol escaldante, se achavam enfeitadas de flores, colhidas por contritos cristãos e levadas até os seus pés na busca de alcançar graças ou de agradecer milagres. Galhos com flores azuis de jacarandá mimoso quebrando a monotonia, fazendo companhia para as solitárias cruzinhas. Era assim. Quem? Ora, sabe-se lá, muitos: alguns em louvor de uma graça alcançada na cura da dolorosa espinhela caída, que impedia o trabalho com enxada ou de montar cavalo; outros, estes quase sempre os mais de perto, das vizinhanças redondezas, que levavam garrafas verdes cheias d´água e buquês de flores colhidas nos quintais de suas casas: vermelhas crista de galo, azuis hortênsias, brancas margarida, onze horas, e outras mais que eram ali colocadas, parede meia das verdes garrafas cheias d´água e ali deixadas ali depois de rezas e cantos clamando por chuvas que vez ou outra faltava e quando isso acontecia vinha junto a miséria, a fome, a morte...Voltando ao assunto: se sabe que as três cruzinhas foram feitas em boa e forte madeira de aroeira, e ali enfiadas, naquele deserto do serrado do chapadão dos Biasoli, para marcar e cerimoniar a morte de três pessoas: um casal – Gerônimo e Bárbara – e sua filha Maria, a Virgem, mortos, juntos, na mesma hora e instante, por um raio, em uma tarde de um dia 19 de março, dia das enchentes de São José. Os três corpos, fulminados e queimados pelo raio, molhados e encharcados pelas fortes chuvas que todo ano acontece no dia 19 de março, foram encontrados por Salim, um mascate turco, que por ali passava pelo motivo de sua função de viajar em seu trabalho de mascatear. Salim montava, naquela manhã do dia vinte de março, sua mula negra, selada com arreio cutiano e carregava duas malas de couro, parecendo arcas, cheias de mercadorias nas costas de um jumento orelhudo, de olhar triste. E o que se conta foi que o mascate Salim, compadecido com os corpos ao relento, urubus sobrevoando famintos, esperando o fedor para atacar as carniças, deixou o jumento ali vigiando os corpos e assustando os urubus e trotou, tão célere quanto pode trotar uma mula, para a vila trazendo junto dele o padre para benzer e encomendar os corpos e Barsanufo, coveiro de profissão, para fazer as covas e ajudar no enterramento da família de defuntos.
Conto mais das três cruzinhas depois.
Quero, agora, buscar nos fundos dos meus miolos o que se passava com José Antônio depois do susto de sua coragem em pensar Sebastiana como mulher. Enlouquecido? É o que parecia, ou melhor dizendo, assim se sentia. O homem, taciturno, remoía em sua cabeça o tanto de tempo – dias, semanas, meses, verões, invernos ou anos, quem sabe? – que levou para criar coragem em pensar Sebastiana como mulher, e concluiu, sozinho, que já que desgraça pouca é bobagem, não queria mais saber de ter Sebastiana em seus sonhos, ou em seus delírios em cima da carne, agora magra e sem perfume, da mulher Nair ou mesmo, vergonha de pensar, mas que ocorreu, sim, e mais de uma vez, quando sozinho no meio do mato ou escondido na beira do córrego, possuir, em Sebastiana em seus pensamentos: e naquelas horas, possuía com toda a força e sentires possíveis e imagináveis. Não: de agora em diante, nada mais de sonhos e delírios oníricos! Resolveu que, desde agora, o que queria era a verdade quente e macia de suas carnes, os bicos roxos de seus peitos, queria ouvir seus gemidos, saborear seus cheiros; e o que sentia era mais forte que tudo: incomparavelmente mais forte que amizades, apadrinhamentos, filhos, rezas e pecados. Queria Sebastiana sua: resolvido! E contava, em sua querência, com todos os riscos: brigas e mortes! Conhecia bem Chico de Barros, em sua quietude calada, e sabia que o afilhado, com certeza, não temeria a morte frente a vergonha da desonra e da dor da traição. E foram naqueles dias e dias de pensamento decisório, que José Antônio se enxergou por dentro com uma clareza nunca antes pensada: percebeu, em sua alma, o fim do mundo ordenado e previsível como a sucessão da noite depois do dia e a chegada de um vulcão de incertezas que brotava com toda a força nas profundezas do seu ser, derramando larvas em seu corpo, queimando sua pele, seus peitos, seu ventre, queimando, enfim, o seu ser, que a partir daquele agora, já era outro ser. Mas, tudo resolvido: seja o que Deus quiser.
Estava assim a matutar quando, numa manhã, avistou Sebastiana que chegava em sua casa a procura de Nair e aquela visão bastou: não havia outro rumo possível a não ser o que havia traçado. Mas o que queria, ainda tão cedo da manhã, ali em sua casa, Sebastiana? Será que tinha vindo pedir açúcar ou pó de café emprestado? Sebastiana passou por ele, pediu benção e enfiou-se casa a dentro a procura de Nair. Coisas de mulher? Assuntos de receitas? Sabe-se lá. O que sei, o que se conta, é que José Antônio, que se preparava, enxada às costas, para ir capinar o cafezal do Tira Prosa, curioso pelos motivos da visita e com o coração exigindo ter por perto o corpo de Sebastiana, tirou do ombro a enxada e voltou para dentro de casa, na cozinha e foi ao fogão tomar mais café do bule: e bebeu café com os ouvidos atentos como para ouvir o voo da coruja, na tentação de escutar as confabulações que, em sussurros, se ouvia no quarto.
Foi para a roça capinar, cumprir seu dever e do alto do pequeno monte, beira da matinha, viu sair de sua casa Sebastiana e sua mulher Nair. Sebastiana de mãos vazias, ajeitava ora sim ora as tranças nos cabelos e Nair com as mãos ocupadas: uma com o grande rosário de contas cor de maravilha e a outra carregava a cestinha de bambu que tinha dentro os cordões bentos usados para cura de males com benzeção e rezas, o livro com capa vermelha de São Cipriano e as agulhas de costurar sacos de linhagem que Nair gostava de usar muito mais para confirmar as anunciações adivinhadas pelo Santo. E caminharam, as duas, rumo das três cruzinhas! Foi lá, junto as três cruzinhas, que as benzeções tiveram seus inícios e seus acontecidos: rezas, pedidos e a chave presa dentro do livro de São Cipriano teimando em virar para o lado errado, querendo dizer não, quando a pergunta é se Sebastiana teria filhos. Não: não teria, afirmava o Santo fazendo a chave se virar para as esquerdas, que é assim que responde o São Cipriano: se rodasse para as direitas a resposta seria positiva. “Mas, São Cipriano, que está presente, ela , sua filha Sebastiana, não vai ter filhos este ano ou nos nunca mais?” “Nunca”, responde o Santo. Sebastiana e Nair se põem, ambas as duas a chorar. Nair insiste agora com a sorte com as agulhas: esperança! E as agulhas, para que lado iam pender? Para o mesmo lado das negativas do Santo: confirmado então que, seguindo os conformes, Sebastiana não teria os filhos tão desejados. Pobre menina mulher Sebastiana. E os males eram seus? “Vamos consultar? Quer?”. “Sim, quero de tudo saber.” E Nair, contrita, invoca a presença do Santo: “São Cipriano está presente?”. Silêncio. “Responde pelo amor da Virgem: São Cipriano está presente?”. E a chave dentro do livro de capa vermelha do São Cipriano gira afirmativamente. Sim o Santo está ali junto as duas mulheres e as almas dos três mortos pelo raio. E Nair: “É o corpo de Sebastiana que não pode ter filhos, São Cipriano?” E a chave gira para as esquerdas. “Não é o seu corpo Sebastiana. Você pode. Vamos confirmar com as agulhas”. Prende a agulha no cordão bento, ora com os olhos fechados, suas mãos tremem, emocionada: e a agulha gira para as esquerdas: “Não é o seu corpo, Sebastiana. Agora, minha filha, penso que devemos ajoelhar e rezar.” Ajoelharam as duas: Nair puxou o rosário e as vozes das duas mulheres ecoaram no silêncio do serrado: “ave-maria cheia de graça, o senhor é convosco, bendito é o fruto, de vosso ventre”: Sebastiana chorava e rezava. Rezava e orava: seus soluços se confundiam com os améns e com o Pai nosso que estais nos céus, “quero tanto um filho, o que será de mim?” Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte, Amém.
E Nair, condoída, achou melhor e por bem acompanhar Sebastiana, que tinha o corpo em tudo sarado para gerar e parir filhos e filhos, até sua casa, continuar em suas rezas e oferecer, ver se ela tomava, chá de erva cidreira,
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2 comentários:
cada vez melhor...e a edição?
Marília querida!
Hã algumas tratativas, iniciais, para a edição..vamos ver. Enquanto isso vamos de Blog..Obrigado pelo estímulo.
Abração,
Orlando.
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