sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–V–FOI QUANDO ARCEBIDES E O DELEGADO ZÉ BOBAGEM SE ENFRENTARAM EM DUELO DE MORTE!

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“Quando abriu o segundo selo, ouvi o segundo Animal clamar: “Vem”! Partiu então outro cavalo, vermelho. Ao que montava foi dado tirar a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros: e foi-lhe dada uma grande espada.” Apocalipse, 6.3.

E, como te contava, estava eu lá, ensimesmado, sentado com a bunda na pedra, uns poucos metros da igrejinha de atrás do cemitério, o sol caia no poente, o céu com poucas nuvens, da capelinha vinha uma catinga de carniça que empesteava meu nariz, se enfiava dentro de mim - coração, pulmões, nos profundos do meu ser – era uma catinga danada, a bunda doía do áspero duro da pedra, e eu tinha que me ajeitar a bunda ora de um lado ora de outro, e o lado que se livrava do duro da pedra, formigava. E o senhor quer saber se eu não tive, naquelas horas de então, por medo da morte, vontade de fugir? ah! sim, teve instantes – longos, demorados - que eu me pegava pensando que o que melhor resolvia era eu fugir, me embrenhar mato a dentro, sumir, mas e daí nunca mais poderia – vergonha – voltar na vila, ia ser chamado de fujão, de cagão e eu pensava que quem sabe, talvez deus ajudasse e o delegado Zé Bobagem desistisse do duelo, e ai sim, seria o melhor, porque quem ia ser o cagão seria ele, mas na mesma hora vinha um claro na minha mente e eu vislumbrava que o que iria acontecer, no real e logo, seria a minha morte pela bala do revólver do Zé Bobagem, e isso era para logo, a bala - bum - no meio do peito me jogando dois passos para trás e tchau! babau!, tudo acabou, seu Nicolau , ia ser o escuro total, mas em antes do escuro total de breu eu tinha que descarregar minha cartucheira pros lados da cabeça dele, borrifar de chumbo sua cara, furar os olhos com chumbinhos pretos, delegado de merda; e era então, nestes instantes, que vinham momentos de não medo, todo mundo morre mesmo, só não se sabe a hora, e o diferente era que eu sabia a minha hora, o tempo que me restava era pouco e tinha que ser bom aquele resto de vida, alembrar de minha mãe, do meu pai, das putas da rua Aurora, do silêncio do Jequitinhonha, de caçar rolinha e pomba juriti com a espingarda de chumbo. Alisei o cabo da cartucheira e conversei baixinho, ninguém escutou: não pode negar fogo, minha amiga, é o que me resta, vê se obedece ao comando do meu dedo no gatilho e esparrame o chumbo bem concentrado, na cara do filho da puta do delegado, vai pretejar aquela cara branca de chumbinhos negros...

Vi que eu tinha acertado bem o ângulo de ficar sentado por detrás do muro do cemitério: da pedra onde eu estava vi que vinha vindo chegando o cavalo zanho do delegado Zé Bobagem: marchava calmo, troteava devagar, o corpo do delegado subindo e descendo obedecendo ao ritmo do trote, e eu retornei a pensar que tinha que dar tempo de eu descarregar a cartucheira, empestear a cara do delegado de chumbo; tudo silêncio, nem mesmo o piar dos anus pretos, só se escutava o pracatá! pracatá! pracatá do cavalo zanho que levantava, com suas patas, uma poeirinha do chão seco e Zé Bobagem chegou no fim do muro do cemitério, apeou, puxou devagar o cavalo uns três passos pelo cabresto até alcançar a sombra do umbuzeiro, amarrou e veio vindo devagar, andando muito senhor de si, pigarreou a garganta e cuspiu catarro no chão, vinha direto em minha direção, olhava firme - sem medo – para minha cara, e eu encarei a cara e os olhos dele, fingindo não ter medo, ainda há pouco, com eu ainda sentado na pedra, para testar meu medo, eu estiquei o braço direito em posição de tiro, mirei e vi que tremia só um pouco, tremor nos normais, senti não ia errar, sempre acertei tiros, no parque de diversões que tinha o nome de Parque Xangai, que ficava nos fundos do Parque Dom Pedro, tinha a barraca de apostar de atirar em patinhos de lata que movidos por eletricidade que giravam e giravam num sem parar, presos em uma régua de aço que dava voltas e que quando a volta vinha mais na frente tinha uma paisagem feita de madeira, com árvores, casinhas que encobriam os patinhos e quando chegava no morrinho tinha um túnel e eles passavam depressa no buraco do túnel e era ali, no buraco do túnel que a gente metia chumbo para derrubar o patinho amarelo de lata, tinha que ser rápido, e se comprava a ficha com direito a cinco tiros com uma espingarda de chumbo e eu ganhava sonho de valsa sempre, acertava – pum! – o patinho de lata e outro – pum! – e o outro patinho que deitava no buraco do túnel, tinha que acertar pelo menos três dos cinco tiros para ganhar e eu acertava sempre, matava três ou quatro patinhos, das vezes matava cinco, não errava um tiro só e eu ganhava o chocolate sonho de valsa, e os meus companheiros do alojamento riam de contentes e me davam dinheiro para eu comprar mais fichas para dar tiros e acertar os patinhos e ganhar sonhos de valsa para eles, era nos sábados de noite que a gente ia passear no Parque Xangai, que tinha uma roda gigante enorme que eu fui um dia e passei mal de medo, gostava mesmo era de dar tiros nos patinhos e andar no trem fantasma mas foi dai que o moço do parque desconfiou, reconhecia minha pontaria e me proibiu de dar mais que cinco tiros, dizia que eu dava prejuízo, tanto bombom sonho de valsa que eu ganhava; então hoje é a cara do Zé Bobagem, maior que o patinho, que eu ia encher de chumbo, tinha que dar tempo, o tiro do revólver mais rápido, dois passos para trás quando a bala chegava no peito, mas mesmo assim, meio desequilibrado com a força da bala no meu peito tinha que apertar o gatilho da cartucheira – buummm! – esparramar chumbo no ar para só depois de cumprida essa obrigação me deixar cair para morrer; mas como eu contava, o’stava ali, sentado na pedra, o delegado deixou seu cavalo zanho amarrado debaixo da sombra do pé de umbu e veio se encaminhado pro meu lado, em minha direção, os olhos odientos de raiva enfiados nos meus querendo adivinhar o que passava pela minha cabeça, ver se eu tinha medo e eu fui me levantando da pedra, me deu uma vontade de alisar a bunda para aliviar a dor, pedra dura, e foi aí que ficamos – cara a cara - uns cinco metros um do outro, nós dois de pé, ele com o revólver na cintura, eu com a cartucheira na mão direita, ele não era bom de galeio, meio lento, e tinha que dar tempo de eu descarregar a cartucheira.

No fundo de nós dois a igrejinha enfeitava o descampado, nós dois encarados dentro dos olhos um do outro, a catinga forte que vinha de dentro da igrejinha, não se escutava nem o vento fraco sem força até para balançar as folhas do umbuzeiro, se escutava o zummm das moscas verdes, varejeiras, quando aquela imensidão de silêncio se quebrou e se escutou um farfalhar - igual ao barulho seco e oco das costas do boi quando coça berne na casca grossa da árvore – fruuu! – e vi que os olhos do delegado se desviam dos meus, buscaram ver um outro canto, o canto da igrejinha, atendendo de onde vinha o barulho farfalhento e eu levantei a cartucheira pro ombro, e num de repente – bum! – trovoou um barulho forte, o bummmm se espalhou pelo cerrado, logo ia fazer eco – bummmm - no morro do taquari, espantar as rolinhas, e eu pensei tenho que ser rápido, logo a bala chega no meu peito e me joga dois passos para trás, tenho que atirar, e apertei o gatilho – brummmm! – barulho e fumaça de pólvora no ar e o meu ombro direito doeu do coice da cartucheira, mas era assim mesmo, e eu não caia para trás, a bala demorava para chegar, será que eu estava com a o corpo fechado, com o capeta em dentro de mim como um escudo de ferro, e foi dai que escutei o berro do delegado, um urro forte, e o Zé Bobagem deu dois passos para trás, um braço aberto para o alto, largou o revólver no chão o outro braço segurando o peito, vi seu rosto polvilhado de chumbo e o peito sangrando vermelho, um buraco nas alturas do coração e o homem cai de costas, esbugalhado, levantando poeira do chão com a cabeça, a cara cheia de chumbo para cima, os olhos abertos, e eu desentendo aquilo tudo e resolvo olhar para trás, ver de onde veio o farfalhar que desviou o olho do delegado do meu olho e vi ajoelhado, dentro da igrejinha, revólver ainda esfumaçando na mão, grandão demais para a dimensão da capelinha, e enxerguei que era o Valti capadô, que foi se se levantando, saiu da igrejinha sem esconder com o lenço o buracão que era sua boca, a boca sem dentes, nenhum, misturada com o nariz, um buraco só: matei o homi e agora careço de um adjutório seu, falou com a voz cavernosa, o fedor de carniça se alastrando pelo cerrado e eu disse: fale Valti, o que pedir é ordem; e ele: vamos até o mato do Baguaçu, que é lá que eu faço meu pedido, te conto do que careço; mas em antes de começar o caminho para o mato do Baguaçu fui até o corpo do delegado, queria conferir sua morte, o sangue no peito escurecendo a camisa xadrez, a boca aberta, chumbos espalhados pela cara, e eu peguei o revólver que estava no chão, ao lado do corpo morto que eu suspendi, pesado o corpo morto, desatei o cinturão com balas, me vesti com ele, ajeitei o revólver que agora era meu e disse pro Valti: vamos! e caminhamos por uma meia hora, mais ou menos, os dois: ele -- enorme, passos largos – na frente e eu atrás, seguindo seu andar e imaginando o que ele ia querer de mim, e eu tinha certeza que ia cumprir, Valti salvou minha vida, pago o que ele pedir e tão logo chegamos no mato do Baguaçu, o Valti continuava sem o lenço para esconder o buraco da boca, me encarou de frente e disse: inhagora quero quimimate!; que isso mano? deixe de pensar besteira, em querendo te levo para um sanatório, você se cura da doença; tem cura não, sei e já vi sanatório que tem em Vitória: aquilo num é vida, melhor morrer; mas Valti...; ele interrompeu: só eu mesmo, por minha conta, não já resolvi por fim da minha vida, só eu mesmo não me dei um tiro, ou me enforquei com cabresto na cumeeira do meu rancho só de medo do pecado acabar com a vida, ir para o fogo do inferno, e eu quero o céu, vamos tem que ter pressa, logo os soldados estarão nos seus calcanhares, vamos acabar logo com isso; e eu mirei primeiro a cabeça do Valti depois a boca e, naquela tarde, mais um bummm! ecoou no cerrado, o cheiro de fumaça misturado com a catinga do corpo de Valti, que emborcou no chão e eu pensei não posso deixar este corpo aqui no tempo, no descoberto, logo chegam os urubus, tenho dar um jeito de enterrar, acender pelo menos uma vela em respeito ao corpo do finado e foi aquilo que dominava meu pensamento naquela hora e foi isso o que resolvi.

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