sábado, 1 de fevereiro de 2014

HISTÓRIAS DO ARCEBIDES -I– OS INÍCIOS!


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E respondendo a sua indagação de que lugar eu sou, das minhas origens de nascimento, digo: nasci longe daqui, estado de Minas, perto da Bahia, nos gerais, distante das veredas encharcadas que geram rios de águas cristalinas, e aproveito para contar - já que o assunto são as veredas - que a primeira vez que eu vi uma, de tão encantado fiquei com tanta verdura, não resisti tirei a botina e dei passos: pisei com os pés descalços nela – macia, grama verde - e meus pés sentiram a umidade da água, amassaram respeitosamente a grama, deixando meu rastro, mas isso quando eu já era moço feito e foi o Chico do seu Acácio quem me falou que apesar da grama verde, as veredas não são boas para pasto e explicou: quando a vaca ou o cavalo mordem – famintos - a verde grama e segura firme os ramos entre os dentes e depois levanta o pescoço para mastigar e comer, vem moita de capim arrancada em seu total, a grama verde junto com suas raízes esbranquiçadas, isso por causa da terra molhada e fofa, e os bichos - a vaca e o cavalo - não gostam muito da mistura da grama com suas raízes; aprendi , então, com o Chico do seu Acácio, que as bonitas e frescas veredas e seus buritis são boas para produzir os rios e riachos, para denunciar chuvas que vão cair, mas que para pasto mesmo de alimentação de gado não tem serventia, mas que também tem uso, quando seca o capim dourado, para se fazer cestas, colares parecendo feitas no ouro.
Mas estou fugindo do assunto, mania de sonhar acordado, fugir dos principais! E, então, como antes contava eu vivia lá pelos confins dos gerais de Minas, o Jequitinhonha com suas belezas e agruras: seca brava, roças de mandioca esturricadas, nada de raízes, tudo – cachorros, velhos, meninos - com as costelas pra fora, as mulheres com os peitos caídos, falta d’água, só farinha não dá conta de sustentar o corpo, sol de madrugada até o anoitecer e daí os cortantes ventos frios, a falta de coberta, um inferno! Mas, e as belezas? ah! as noites estreladas, poder olhar a estrela caindo e depressa – tem que ser enquanto ela cai – fechar as duas mãos em figa e – com os olhos fechados - fazer o pedido de tirar a sorte grande, bonito também ver a lua iluminando o cerrado, o pé de araticum fazendo sombra negra de noite, ouvir o cantar do pássaro preto, apreciar o canário da terra ciscar o chão procurando comida, e – no silêncio dos gerais – acompanhar o voo circular do urubu...bonitezas!
E tinha, então naqueles tempos deu ainda rapaz, a Dulcinéia, linda, mocinha de cabelos encrespados, olhos negros, lábios grossos, mãos e braços delicados, pernas roliças e os dois peitos pequenos parecendo maminha de cadela, cheirosos, o sorriso que mostrava os dentes brancos sem buracos de doenças, linda em sua voz baixa de falar e a gente namorava escondido, se beijava embaixo da sombra do pé de mangaba e com aquelas ondas que eletrificavam nossos corpos cada um se prometia para o outro, jurávamos eternas felicidades, sonhos, filhos, chuvas caindo molhando as roças, o mandiocal verde no fundo da casa; mas a seca brava não dava trégua, o sol quente secando o córrego do Urucuí, as pedras negras e quentes onde de antes corria água e se pescava gambevas, mandis e bagres, a triste música do silêncio do riacho seco, nem mais sapos nos brejos e o jeito era de ir para São Paulo, de ônibus, carteira de trabalho assinada, salário mínimo garantido, alojamento de graça – era assim o que prometia e garantia o moço loiro, delicado no falar, atencioso e explicador: e os perigos de São Paulo?; não há, desde que se tome alguns cuidados: na rua Aurora, a rua das putas, só ande pelo meio da rua, evite as calçadas porque os bandidos ficam nas portas e ao passar te puxam e te carregam pra dentro dos cafuas e lá tiram suas roupas, roubam seu dinheiro, seu relógio e podem te machucar de bater; mas eu não estou pensando em puta, o que mais quero é trabalhar, ganhar dinheiro para poder casar com Dulcinéia. E todos nós ali sentados nos bancos da igreja, o padre de testemunha, mostrando os documentos, perguntando, sendo respondido pelo moço loiro, educado: decidi, vou-m ‘embora!
A viagem do Jequitinhonha até parque Dom Pedro, em São Paulo, durou mais de dois dias. Ajeitei a trouxa com as mudas de roupas, o canivete, uma lanterna, e do dia que vim embora, do dia que despedi e parti, me lembro que na sala de casa tinha uma folhinha com o bloco dos dias, e era nosso costume de manhã se arrancar o dia de ontem, o dia que passou e ler o verso onde vinha escrito a vida do santo daquele dia; um costume: minha mãe, não conhecia as letras, pedia para eu ler e enquanto eu lia ela se ajoelhava e pedia para o santo olhar por nós, para cuidar de entupir o céu com nuvens negras de chuvas, molhar as plantas e fazer o renascer de águas o córrego do Urucuí, fazer o córrego encher até se escutar o barulhar das águas entre as pedras, e será que o Urucuí - cheio - vai ter, novamente, gambevas e mandis? e naquele dia, arranquei do bloco o dia vinte e nove de setembro, dia de São Gerônimo, e eu li que era o santo dos raios e dos trovões, e é por isso que quando arrelampeia no céu a gente faz o sinal da cruz, se benze, e pede proteção: São Gerônimo, santa Bárbara, a virgem, medo grande dos raios e trovões mas carecendo de chuvas, de águas. Então, eu viajei do Jequitinhonha um dia depois do dia de São Gerônimo e naquele dia minha mãe se ajoelhou e pediu ao santo que me guardasse dos perigos de São Paulo e que me ajudasse a voltar para os gerais o mais depressa, tão logo ganhasse dinheiro para comprar um pedaço de chão, plantar mandioca, arroz e ela chorou!
No início da viagem ocupei dois bancos do ônibus e acompanhava, pela janela, os gerais se indo, as árvores correndo, o céu azul sem nuvem, montanhas e chapadões que apareciam e sumiam, o ônibus corria estrada a fora, seriemas assustadas quequezando, o mundo passava na janela e quando chegou em Montes Claros, ou Diamantina, não me lembro direito agora, sentou ao meu lado um mineiro forte, quieto de falar, mas que sabia histórias de lobisomem, da mula sem cabeça e que recitava cantante, sem acompanhamento de rabeca, quadras de antigas histórias de reis, de rainhas e mesmo de santos daqui do Brasil, e não dava para saber se o Antônio da Chicuta, era esse o seu nome, inventava aquilo tudo de sua cabeça ou se tinha lido livrinhos de histórias porque o homem, sem ter frequentado escola, era letrado:
“Faz quarenta e tantos ano
que chegou no Juazeiro,
construiu uma Matriz,
botou na frente um cruzeiro ...
celebrou a Santa Missa,
deu bênção ao Mundo Inteiro...
É um pastor delicado,
é a nossa proteção,
é a salvação das alma,
o padre Cisso Romão,
é a justiça divina
da Santa Religião!”(1)

(1) "in" Vaqueiros e Cantadores, Luís da Câmara Cascudo.

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