quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
A HISTÓRIA DA FACA DO DERALDO!
E usando de muita minha sinceridade, tenho de lhe dizer, com toda franqueza, que não esperava o senhor, posso te chamar de você? sim? melhor, tão moço ainda, com idade de ser filho meu, sacudido, bonito rapaz; mas como ia dizendo não esperava mesmo mais encontrar esta minha faca, que tanto trabalho te deu, até custos de dinheiro deve ter tido, obrigado, bondade por demais a sua, muito agradecido, e rogo, com fé, para que o manto da virgem cubra e proteja seu corpo dos frios, das doenças, dos maus olhados. Obrigado, por demais, e me dá vontade ate de abraçar você; posso? sente tome forte meu abraço, não estranhe a aspereza das mãos, são calejadas de carpir com enxada e de firmar rédeas e cabo da carpideira, burros e mulas ajudando na aração da terra, sulcada e amaciada para o plantio do feijão das’águas, milhos também, arroz pouco aqui a terra para arroz não é das melhores. Frutas sim, tem muitas frutas muitas aqui neste meu chãozinho, coisa de pouco mais que alqueire mineiro, que é o dobro do alqueire paulista: jaqueiras, tem duas: um pé de jaca mole e outro, o maior, de jaca dura, doces jacas, bagos amarelos, se fala que é boa para a saúde, tem vitaminas que ajuda a evitar o reumatismo que vem com a idade, você não já deve ter escutado moça bonita, nova, dizer que quem gosta de velho é reumatismo, é de se rir, mas é uma dura verdade e tem também uns pés de goiaba: da vermelha e da branca que usa ter mais bicho, mais doce, tem o umbuzeiro e este pé grande, sombra boa, parecida com sombra da mangueira, o umbuzeiro não foi plantado por homem nenhum, é mesmo nativo daqui e não carece de aguar a não ser com as águas das chuvas, que são poucas aqui neste infinito vale do rio Jequitinhonha, e o senhor , erro, melhor você, então você já tinha antes visitado aqui o Jequitinhonha? não? a primeira vez? espero que goste: o Jequitinhonha tem a solidão da quietude, se escuta o cri cri cri do grilo, o sopro do vento na folha do buriti, o estalar do guizo da cascavel, e tem os passarinhos: sabiá – cantador - , galo da campina e sua cabecinha vermelha, canário da terra – amarelo, de lindo canto, tem pintassilgo, mais difícil de se deixar ver com sua cabecinha preta, bom para gaiola, e tem o assumpreto, muitos, as siriemas que comem cobra, mas chega, não vou ficar perturbando com o rol de nome de pássaros, bobagem deve pensar um homem da cidade.
Mas, então, como te contei no avião, não sei se se lembra, mais foi a primeira vez que andei naquela máquina tão grande, voadora, barulho só lá fora dela, sacolejando pouco demais e a moça oferecendo guaraná com gelo; isso mesmo: nunca antes tinha andado, fui para São Paulo de ônibus, ver meu filho que lá mora, e foi ele que embirrou de me mandar de volta no avião e disse: olha meu pai, agora que o senhor já conhece a capital, prédios enormes, ruas cheias de carros buzinando, quero que volte para casa de avião, aceite um presente meu, e eu não tinha vontade daquilo, tinha gostado da viagem de ônibus, na ida para São Paulo, ônibus grandão, parando nos postos das estradas, boas comidas e tinha uma moça bonita sentada na cadeira do meu lado, mais de trinta horas – dia e noite – ali ao meu lado e cheguei a pensar besteira quando ela dormiu e encostou sua perna grossa em minha perna, mas foi só pensamento, passou rápido, estou velho para estas artes, não pratico mais, me lembro do perfume alfazemado da moça, do seu respirar quando dormia ronronando feito um gato, tanta beleza, mas a viagem do avião foi boa, sem medo, o ruim foi o episódio da faca: de onde já se viu, tão logo que passei pela máquina de raio x , aquilo não para de apitar, piscar uma luz vermelha e vem a guarda de uniforme preto dizer que era a minha faca e que ela tinha que ser jogada na urna de vidro, junto com canivetes, tesouras, que era proibido carregar faca no avião, e eu disse que era já por demais velho e que aquela faca tinha mais de cinquenta anos na minha cintura, que meu corpo estava acostumado com ela, que era com ela que eu cortava o fumo para meu cigarro, alisava a palha, descascava a laranja e fazia até a certa higiene de minhas unhas do pé, tirava o luto preto sujo; mas nada de acordo e ela: não pode levar a faca, por favor, e eu: então eu volto, não viajeio de avião; voltar daqui não pode, meu senhor, o senhor compra outra faca mais nova para picar o fumo; eu quero é minha faca velha, gastada na lâmina, o cabo de chifre de vaca com marcas de mortes cometidas.
Isso mesmo: eu ia começar a chorar, já imaginou um velho chorando pro causa da faca que não podia carregar no avião, não sei por que, mas não pode a moça dizia, e olha a fila atrás do senhor, por favor e foi então que você chegou, me lembro de seus olhos assustados e me perguntou para onde eu ia e eu disse que vou para Montes Claros e é de lá que eu pego o ônibus para Gameleiras e você disse também viajo para Montes Claros, e falou um palavreado difícil para a moça e tomou dela a faca e sumiu pelo corredor a dentro e de costas, olhando para trás e andando depressa, falou alto para mim: me espere aqui, eu já volto, estamos no mesmo voo, também vou para Montes Claros; e eu fiquei ali – parado - esperando, minha cintura sentindo falta do calor da minha faca, queria sentir o seu cutucão em minhas costelas, e estava assim quando você voltou pelo corredor, passou de novo pela máquina de raio x, ela apitou verde e você colocou as mãos em meus ombros, parecia um filho meu, me dirigiu e disse: vamos, o avião sai logo; e cadê a minha faca? você disse que tinha ela sido entregue, lá fora, para sua mulher e que ela ia mandar a faca pelo correio para o hotel onde você ia ficar de pousada em Montes Claros e eu passei meu endereço: fundão da fazenda Urucuia, propriedade do senhor Alcebíades, município de Gameleira, mais de quatro horas de ônibus de Montes Claros até lá por estrada de chão batido, margeada por campos ralos e caatingas e você falou: eu levo sua faca lá, mas eu não acreditei muito na hora, pensava que era mais para me consolar, que o moço não queria ver um velho chorar na frente dos outros, vergonha muita, o corredor cheio de gentes, todos apressados e o alto falante falando fanhoso – nhem! nhem! nhem! acho que usava palavras de outra língua, pouco entendível; você ri, acha graça no meu contar? é grande demais minha felicidade, e mal posso acreditar que você – de verdade - trouxe minha faca, de avião não viajo mais, prefiro ônibus, não bolem com as coisas da gente em viagem de ônibus; medo? de verdade não, não tive medo do avião no ar, aquelas alturas, perto do céu , as nuvenzinhas lá embaixo, branquinhas, bolas de algodão, a gente por cima dos urubus, nunca imaginei aquilo, o rio tão lá embaixo: pequeno, brilhante, um fiapinho d’água espelhoso, e a moça oferecendo, de graça, guaraná com gelo, bebi dois copos.
Sim, é aqui que moro: vivo sozinho aqui desde a que me enviuvei de Luizinete, mãe de meus filhos, com ela eu morava na vila onde tinha escola para os , filhos, ela morreu e para cá vim, graças a bondade do seu Alcebíades, mudei em um janeiro de chuvas e esta choça fui eu mesmo que levantei, paredes de barro misturado com bosta de vaca, o sapé cobrindo do sol e da chuva , se chove muito pouco aqui, o fogão e o girau onde durmo, tudo feito por estas mãos que você vê, e que agora acaricia a faca, saudade danada dessa faca, e tem o gancho para quando quero, quando o calor é demais, penduro a rede, e o homem da prefeitura vem aqui todo ano com veneno para matar barbeiro, o besouro da doença de chagas, que mata do coração, doença sem cura e o moço da prefeitura diz que eles vivem aqui no meio do barro da parede mas eu nunca vi e a choça fede muito quando ele borrifa veneno, um fedor que dura mais de uma semana, o vermelho do barro fica tingido de branco, e as muriçocas somem de medo do veneno e isso eu acho bom, não tenho que ficar, de tardezinha, queimando folha de alfavaca para espantar muriçoca; água? você quer? tem ali, perto do fogão: já te trago um copo, a água de beber eu carrego toda semana, dois galões, busco com o jegue na sede da fazenda, poço da casa do seu Alcebíades, é água não salobra, boa de se beber, fria, a água daquele poço ali de baixo não presta para beber, só mesmo os bichos bebem, mas acontece que os bichos têm estomago forte, o homem é mais fraco, e mais ainda com a idade, qualquer coisa é motivo para desarranjo no estômago, não se sai detrás da moita, uma cagação fedida, me desculpe ficar falando estas coisas nestas horas, tenho que pensar na comida, o senhor, errei de novo, você, mas é por respeito e agradecimento quando, sem querer, te chamo de senhor, não arrepare, sei de minha idade muito superior a sua, mas você é servido de comer comigo o almoço? sim? muito me orgulha o seu aceitar, come carne de galinha? então posso matar uma, tem quiabo e fubá, será que você vai gostar? me envaidece sua positiva resposta.
Pruuuu...ti...ti...ti! Vinagre, cachorro da peste, deixe de preguiça e me ajude a pegar uma galinha, a mais nova e gorda, para servir ao moço da cidade, que trouxe até aqui minha faca, que eu já pensava perdida, aquela ali, vinagre, ‘tenção cachorro da peste: isso mesmo, a amarela gorda, vinagre, cuidado, não morde o pescoço, quero tirar o sangue , pega vinagre, sem machucar, isso, cachorro bom, vou te dar o osso, segura ela presa ai!
Pronto: agora é segurar suas asas presas meio das pernas, é assim que se usa matar galinha aqui neste vale! Viu? presa a galinha embaixo das pernas, estico e depeno o pescoço, e passo a faca – tchum! – colho o sangue no pires, ponho limão para coalhar, e agora me conte, moço, como eu podia ficar sem esta faca? de que jeito ia matar galinha, picar fumo, cascar uma boa jaca, viver sem sentir seu cutucão nas costelas, muito obrigado mesmo senhor moço e em nome do pai, do filho, e do espírito santo oro para que o manto da virgem proteja seu corpo de todos os males da terra.
Amém!
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário