“Valente não teme a luta,
Enchente não teme o rio,
Machado não teme o pau,
Touro não teme o novio...
Violão não teme a prima,
Poeta não teme a rima,
Nem eu temo desafio.”
“In” Vaqueiros e cantadores, Luís da Câmara Cascudo.
E chegou então uma manhã em que nasceu o dia 31 de agosto e foi naquela manhã que, às sete horas, eu estava na fila, frente ao escritório, para receber o envelope com os dinheiros do ordenado do mês; nos dias de pagamento aquele moço do escritório o que tinha as mãos brancas e a voz suave providenciava uma escala com horas certas para se ir receber e assim, dizia ele, evitava tumultos, filas compridas e também não se perdia horas de trabalho, tudo tinha que ser depressa, ligeiro: receber, conferir os dinheiros e os descontos, assinar os recebimentos, guardar o envelope no bolso traseiro do uniforme e voltar para o canteiro de obras; mas naquele dia, 31 de agosto, dia de São Raimundo, grudado no envelope veio a carta do aviso de férias, autorizando que eu gozasse as minhas no mês de outubro, e garanto que feliz por demais voltei para a obra assobiando, peguei a picareta e cavei fundos buracos, o trabalho rendeu, me esqueci do frio que fazia e passei o dia todo cantarolando baixinho, só para eu mesmo escutar e me deliciar de tanto contentamento: “quando o verde dos teus oios, se espalhar na plantação...eu te asseguro, não chores não, viu, eu voltarei, viu, prô meu sertão”; trabalhei sem nenhum cansaço e no fim do dia, logo depois do banho, engoli depressa a janta no refeitório dos peões e não quis saber de jogar truco nem escopa de quinze: fui para a rodoviária ver horários de ônibus, anotar preços, gozar – com antecedência - minha alegria da vontade de voltar para a vila, ver os parentes, os amigos, e testemunhar para mim mesmo se minha vida era no Parque Dom Pedro ou se era lá nos fundões do Jequitinhonha: vida vivida nos silêncios ou nos barulhos? no brilhar das estrelas e da lua ou nas luzes nos postes? de onde se é que regia a minha vida real, urgia saber.
Conto depressa para o senhor: não vi o mês de setembro passar; chegou o dia trinta, não trabalhei, acordado com o moço de mãos brancas do escritório, logo de manhã fui receber o pagamento – fora os descontos recebi cento e cinquenta cruzeiros – , arrumei a sacola com minhas coisas, na hora do almoço fui na Caixa e tirei trezentos cruzeiros que tinha guardado na poupança, comprei um relógio com pulseira grossa, folheada de ouro, um par de óculos raiban escuro, e, enquanto esperava a hora do ônibus na rodoviária cortei meu cabelo.
Cheguei!
E umas pessoas diziam: bem vindo Arcebides!; e umas outras: nossa ‘ce’tá bonito, homem; e eu agradecia e voltei a gostar do silêncio, do paradão do ar no céu sem ventos do cerrado, de me esconder do sol e tomar sombra embaixo da mangabeira - onde eu namorava Dulcinéia – e não me bateu saudades dela, a mangabeira carregada de frutas amarelas, logo iam cair, forrar de dourado o chão de tantas frutas, e ai sim é que era a hora de catar e comer as mangabas, doces, catar o resto do chão, encher o embornal e levar para casa pra mãe fazer doce, e revi amigos, fiquei a par das novidades: sabia que o Quinzim morreu?; não me diga isso, de que morreu?; de morte morrida mesmo, ficou doente e morreu, antes ele do que eu; novo para morrer assim de morte morrida...
E foi na chiboca do Noraldino – que era onde se jogava dominó, bebia pinga e se contava das novidades, poucas - que fiquei sabendo: na tarde daquele dia, ia ter desfile na praça; desfile? do que? sete de setembro já se foi; e foi o Dermiro que relatou: o Marruco havia roubado galinha no quintal do seu Gino, que deu queixa na delegacia e o delegado mandou prender Marruco e naquela tarde o cabo Jaime ia realizar o desfile do Marruco na praça da vila, mandou escrever placa de cartolina para pendurar no peito: eu sou ladrão de galinha, e o desfile ia ter zabumba e fogos!
Marruco era o que se acostumava chamar de louco manso: forte como um touro, por isso a alcunha de marruco - que é boi inteiro, sacudo, sem ser capão – mas fraco de juízo, ideias fracas, nunca aprendeu o beabá, não escrevia nem o ó com o fundo da garrafa, contar só até dez e o que ele mais gostava era de ficar esperando o fim da aula na escola da vila para brincar de rodeio: ficava de quatro e os moleques montavam em suas costas e ele pulava, bufava, saracoteava no ar – fingindo ser cavalo ou touro bravo - exigia que o seu cavaleiro batesse forte em suas pernas, e com as pancadas em sua bunda o homem rodopiava no ar para derrubar o vaqueiro, e os moleques faziam fila para montar e se divertiam, o Marruco com as calças sempre furadas nas alturas dos joelhos de tanto fingir que era touro de rodeio pulando e saracoteando para derrubar os moleques: “mete o rei, vaqueiro, num é homi não?” e a molecada agarrada no pescoço do Marruco batia com o rebenque ou com um rabo de tatu, apostavam quem mais durava em cima das costas dele, e os que não estavam montando ficavam contando o tempo: um, dois, três... caiu!, só aguentou até três, agora é a minha vez; fora isso Marruco era chamado pelos mais velhos para buscar água na mina, carregar os latões cheios de água branca para uso de cozinha, a mina era longe e os velhos não conseguiam carregar tanto peso, e pelo favor da busca d’água davam de comer para o Marruco: “graças pela comida, que não faça falta aqui, que deus ajude” e era assim a vida do Marruco, maldade nenhuma, morava sozinho, sua tapera encostada na cafua do Valti capadô, e este - o Valti – era o que tinha pego nos últimos tempos o mal de lázaro, a lepra, e andava o tempo todo com um lenço escondendo a boca que tinha virado um enorme buraco, misturada com o nariz: doença dos infernos a lepra, deus me livre, tão bom que é o Valti, porque foi castigado assim, terrível doença: culpa de quem? de deus ou da coisa? ninguém sabe.
Frente da igrejinha da vila tinha uma praça. Explicando melhor uma praça sem bancos e sem árvores de sombra e nos anos da política a promessa de um coreto para a banda para tocar músicas nos sábados de noitinha, bancos de cimento, plantar mudas de mangueira pra sombrear; mas enquanto não tinha os bancos e coreto era ali na praça que o povo se reunia em antes da missa de domingo, quando vinha padre, e era na praça que se fazia a fogueira das festas de São João e foi na praça que naquele dia, uma terça feira, o povo se reuniu para assistir o desfile do Marruco, ladrão de galinha.
A zabumba batia em compasso ternário, pum...pum!pum!...pum!...pum!pum!, o cabo Jaime a pé regendo a zabumba, olhar nervoso de bravo e o Marruco, sem camisa, peito ao sol, a placa escrita - eu sou ladrão de galinha - pendurada no pescoço, escrita em lápis grosso, azul, na perna esquerda tinha amarrada com uma corda feita de embira uma galinha, daquelas do pescoço pelado, olhinhos negros, assustada e a cada passo do Marruco a galinha carijó do pescoço pelado se arrastava, batia as asas, cocoricava para logo depois já esquecida ciscar o chão procurando uma formiguinha ou uma minhoca para comer; na outra perna, também amarrado por uma corda feita de embira, um galo índio, vermelho, bico amarelo, espora enorme nos pés, bravo por causa de sua raça, olhava para o alto, e era arrastado pelo andar do Marruco, e o cabo Jaime berrava: dança Marruco, dança! e Marruco ouvia o som da zabumba e ensaiava – desajeitado - uns passos de chachado, e o povo ria, ladrão de galinha, e o delegado, por nome Zé Bobagem, acompanhava de perto, montado no cavalo zanho, bonito, revólver na cintura, esporeava vez ou outra o cavalo, olhando para o céu, mostrava autoridade, Marruco levantava poeira no chão da rua com o arrastado de seu chachado, o galo índio e a galinha de pescoço pelado amarrados em suas pernas, o papel ladrão de galinha pendurado cobrindo o peito largo, e num instante de minutos vi que ele olhou para dentro dos meus olhos e clamou por piedade, foi o que li nos olhos dele naquela hora e me deu uma dor grande no peito, isso não é coisa que se faça com filho nenhum de deus, ainda mais com um doido manso como Marruco e quando vi – tem horas, o senhor sabe e deve ter passado já por isso – que o corpo realiza atos sem ter dado o tempo devido para o pensar; como dizia minha mãe: conte até dez, e quando vi estava debaixo do cavalo do delegado, empurrei o cabo Jaime e com a faquinha de picar fumo para fazer cigarro, cortei as embiras que prendiam o galo e a galinha nas pernas de Marruco, e os dois – o galo e a galinha - meio abobalhados pelo ocorrido da surpresa, permaneceram por ali perto das pernas do Marruco e eu chutei forte: cho! desgraçados! e o galo índio e a galinha de pescoço pelado cacarejaram, bateram asas e correram apressados, e arranquei o papel escrito eu sou ladrão de galinha do pescoço do Marruco e rasguei em pedaços, joguei nos pés do cabo Jaime que veio em cima e eu tirei o punhal que tinha na cintura, cabo de madre pérola, ponta fina, boa de se enfiar até o fundo e disse: te mato seu puto, filho de uma égua, todo aquele fazer e xingar sem pensar e daí catei Marruco pelo braço e disse: vamos para casa, e andei em direção ao cafua onde ele dormia, o povo assustado, o cabo Jaime pedindo ordens e orientação para o delegado Zé Bobagem, que ficou de rosto vermelho, sangue subiu pela cabeça, odiento pelo sucedido, a mão desceu segurando e alisando o revólver: nunca fui desafiado assim, vai ter troco; e eu não olhei para trás, caminhei em direção ao cafua de Marruco, o povo parado na praça, regeu um silêncio de se ouvir o voo do urubu, que volteava a praça, olhando embaixo, prevendo mortes e carniças, bicho carniceiro, e cheguei em onde ficava a tapera do Marruco e disse: agora você entre e fique quieto por aqui hoje, não saia; e ele: mas os moleques vão querer montar em mim hora que acabar a escola; e eu: hoje não tem rodeio Marruco, se aquiete aqui.
E foi quando o delegado Zé Bobagem chegou montado em seu cavalo zanho, os olhos meio azulados brilhantes de tanta raiva, o revólver na cintura, disse: desacatou autoridade Arcebides e assim não pode ficar; e eu quieto, vou contar até dez, nada disse – contava até dez - e ele aturdido pelo meu não falar, - vou contar até vinte - e resolvi nada dizer e ele não suportou o silêncio e disse: desafio para um duelo em hoje ainda, as cinco e meia da tarde, atrás do cemitério, me espere na capelinha; e eu resolvi falar: arma branca? e ele: não, arma de fogo, e o certo é que um de nós dois volta esticado de lá, morto!
Olhei meu relógio novo, pulseira de ouro, eram três e pouco da tarde, daqui a duas horas o duelo desafio, o desgraçado não quis arma branca, impôs arma de fogo, de certo por saber ele que a arma de fogo que possuo é a espingarda de chumbo, a cartucheira de um cano só, boa para se caçar passarinhos, matar preás no brejo, mas para duelo é lenta, só se eu arrumar um Schimdt emprestado, mas de quem? ninguém vai querer emprestar arma para desafio de morte, todos na vila tinham conhecimento do tanto que eu era rápido e certeiro no gatilho, bom de tiro, mas acostumado em atirar com a espingarda de chumbo, matar codornas, pombos, preás.
Muito tempo em que pensar.
Medo?
Quando deixei Marruco em seu cafua eu vi, na janela da tapera de frente, os olhos de Valti capadô: com a janela meio fechada, pela frestinha vi seus dois olhos negros, ele dentro do escuro da sua tapera, tinha tudo observado, escutado as palavras do delegado, e escutei sua voz que falou para mim: coragi homi qui deus está cum ocê.
Medo? De morrer, acho que sim, ou não, não sei, não soube distinguir naquela hora.
Fui para casa, não contei do desafio de morte nem ao pai nem pra mãe, catei a espingarda de chumbo que estava pendurada na parede, juntei dois cartuchos novos e o saquinho de couro com pólvora e chumbo e falei: vou sair por ai, matar umas rolinhas; cuidado meu fio; me cuido minha mãe, sua benção, eu te acompanho meu fio; carece não meu pai, quero ir só; deus de abençoe, meu fio!
Atrás do cemitério, tinha uma pequena capela - só cabia uma pessoa – que andava maltratada, faltava pintura, tinha um buraco no telhado, telha rachada por onde entrava a luz do sol, clareando o seu escuro, porta estreita; era lá que as pessoas, em dia de chuva, ou de vento forte, deixava as velas acesas em recomendação para almas, mortos, defuntos, novenas, preces: na pequena prateleira a imagem de Santa Izildinha e os tocos das velas se misturavam com as velas derretidas, montanhas e morrinhos da cera branca, as telhas negras de tanta fumaça das velas, picumãs negros parecendo morcegos; era essa a capela de trás do cemitério que se referiu o delegado Zé Bobagem, como ponto de encontro para o desafio de morte.
Fui! O céu azul, nuvem nenhuma bordando, um urubu aqui e outro ali em seus voos silenciosos, sem bater as asas, voo de descanso, os olhos buscando carniça para saciar sua fome e eu ali, sentado em uma pedra perto da capelinha, em um ângulo que eu sabia que enxergaria o chegar do delegado Zé Bobagem, que viria em seu cavalo zanho, resolver novo, carregado de balas e eu soquei forte o cartucho com chumbos e pólvora, tinha resolvido, comigo mesmo, que ia encher a cara do delegado de chumbo, deixar marcado o rosto branco com negros chumbos, enfeiar ainda mais a cara do safado que ia me matar, pum!, um tiro no peito, se fala que o tiro joga a gente até uns dois passos para trás, mas eu tinha que descarregar a espingarda de chumbo, pum! esparramar chumbo em direção da cabeça, furar os olhos azuis do delegado, ia dar tempo, deus vai me ajudar, morro mas deixo a marca em sua cara para sempre, delegado filho de uma égua, desgraçado.
Medo? Sim e não, a raiva esconde o medo.
Sentei em uma pedra, ao lado da capelinha, para esperar a hora e quando puxei o ar para dentro dos pulmões, senti que vinha de dentro dela uma catinga forte de carniça, prenúncio de morte, o corpo se desfazendo, os urubus de olho...o sol ainda forte, fazia calor e a catinga vindo de dentro da capelinha, e eu me lembrei que não gostava do cheiro de vela queimada misturado com o perfume de rosas, aquilo me lembrava defunto, e aquela catinga de carniça que vinha da capelinha.
Cinco horas, o sol querendo se esconder atrás do morro do Taquari, poucas nuvens na barra do por do sol, um vento pequeno começou a assoprar vindo do leste. Tem que aguardar a hora!
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