sábado, 1 de março de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–VI– FOI QUANDO ARCEBIDES ENTERROU O CORPO DO VALTI E INICIOU A FUGA CERRADO A FORA!

DSC05746

...O corpo do Valti ali, esticado, a boca deformada pela doença de lázaro aumentada pela bala que eu havia metido nela, a bala chegou fundo nos miolos, morte total; fechei os olhos do defunto e resolvi, por cristão respeito, que não podia deixar ao descoberto aquele corpo enorme, reto, duro; enquanto resolvia como fazer catei o chapéu de Valti que, com o tiro, havia caído de lado e cobri seu rosto tapando o buraco enorme, o sangue secando e deixava negras cascas no pescoço, eu zonzo, pelo muito por demais de tantos acontecimentos em tempo tão pouco; só mortes, duas: o defunto delegado, o defunto Valti, os corpos duros, sem vida, tenho que enterrar o Valti, não posso deixar um corpo assim ao céu. E estava assim, abobado de tantas coisas, quando escutei o barulho de passos correndo em direção à matinha do Baguaçu e pensei comigo mesmo: deus do céu o que mais vai acontecer?, será que vem mais mortes?, bem que pode ser o cabo Jaime que vem agora querendo vingar o delegado, me matar, e eu alisei o cabo do revólver do defunto delegado que tinha trazido junto de mim, cinco balas e me escondi agachado atrás do pé de ipê branco, revólver na mão direita e o rumor dos passos vindo, correndo, despreocupado em esconder o barulho: crash! crash! crash! dos pés descalços no cascalho do cerrado, e me lembrei que o cabo Jaime costumava andar de bota, o barulho da bota no cascalho é outro e foi aí que vi que quem chegava apressado, trotando, suado, olhos enormes abertos, era Marruco, carregando na mão direita um enxadão e na outra mão uma pá e nem bem chegou onde eu estava, sem tomar fôlego, desembestou a falar: foi o Valti que mandou eu trazer aqui assim que escuitasse o trovão de um tiro; vamos fazer a cova, Marruco; e foi ai que ele viu o corpo de Valti esticado, entendeu os acontecidos em sua cabeça fraca, e com seu corpo forte como um marruás iniciou a furação do buraco da cova no meio do mato do Baguaçu, eu ajudava com a pá e quando o buraco afundou uns quatro palmos, paramos, cansados, urubu não alcança aqui com seu bico curvado e os dois, eu segurando pela cabeça e costas e Marruco pelas pernas, colocamos o corpo do Valti no fundo da cova, esticado, e então eu com a pá e ele, Marruco, com as mãos, fomos cobrindo de terra o corpo, e quando não se via mais a sua cara, me lembrei do revólver do Valti, o que tinha metido um balaço no peito do delegado Zé Bobagem, e me salvado a vida, catei a arma, limpei e enfiei entre suas mãos, semelhante a um rosário, e querendo ganhar tempo, enquanto eu terminava de encobrir o corpo e alinhar a cova, mandei o Marruco que fosse buscar um toco de vela na capelinha e cortei dois galhos do pé de ipê branco, amarrei com embiras da folha de macaúba e fiz uma cruz, que enterrei na parte da cova no lado de onde estava a cabeça do Valti e acendemos a vela, não ventava e então com a cruz junto da cabeça e a vela nos pés da cova, tirei o chapéu e com ele no peito rezei ave maria cheia de graça o senhor é convosco...e o Marruco chorava, soluçava igual uma criança, arfava o peito: o Valti era dos poucos que conversava com eu, me dava comida sem a obrigação deu buscar água na cacimba, mas eu buscava água branquinha e enchia o pote para ele beber de noite, e a gente ficava os dois vendo o céu de noite, olhando a lua e as estrelas, e ele deixava eu pitar cigarro de palha com fumo goiano, e quando a lua se escondia e as estrelas cansavam de cair no céu, deixando um rabo de luzinhas e era quando o Valti e eu realizava pedidos e graças – saúde para nossa família – milagres – curar a doença de lázaro do Valti e a minha falta de juízo na cabeça – e, depois, cada um ia para seu cafua deitar no girau e dormir até o amanhecer outro dia.

Depois da reza de despedida do corpo eu falei calmo: pois então, agora Marruco, preciso de você, mano velho, preciso que você corra depressa - sem se entreter com nada - até minha casa, e nada de contar os acontecidos com ninguém, mudo de boca e de ouvidos, pega atrás da folhinha que está na sala um envelope e me traga de volta aqui depressa, correndo, sem cansar e se minha mãe ou meu pai estiver em casa em casa avise que estou vivo, e que mando notícias pelo correio assim que puder e peço aos dois a minha benção. Em passos ligeiros acompanhei Marruco até o cemitério e lá – enquanto esperava sua volta – naquele infinito tempo de espera, fiquei sentado em uma pedra arenosa e foi quando tive tempo de pensar em qual seria o melhor jeito de fugir, de sumir das vistas do cabo Jaime e dos outros macacos que ele ia chamar para me caçar; ao meu lado o corpo defunto do delegado Zé Bobagem, moscas das verdes e das varejeiras azuis zunido em volta da cara furada de chumbo, o sangue seco, borrões pretos, e da boca, um pouco aberta, escorria uma espuma amarela, mais que morto estava o delegado, duro, um olho aberto com jeito de assustado e deve ter sido susto do assombramento de quando ele viu o Valti dentro da capelinha, morreu assustado do imprevisto e tão logo o Marruco chegou com o envelope com meus dinheiros e eu ordenei que ele voltasse para seu cafua, deitasse quieto em seu girau e não saísse de casa naquele dia que já ia se tornando noite, o sol se escondendo vermelho atrás do morro do Taquari e a luazinha mirrada surgindo do outro lado pelas bandas da serra do Alto Porã e eu disse: agora vá s’embora Marruco, adeus! e o Marruco saiu em disparada rumo da vila e eu resolvi a minha direção: vou para o leste, para onde o sol nasce, o cabo Jaime vai imaginar que vou para o sul, de volta para São Paulo, para o Parque Dom Pedro, mas minha vida é por aqui no silêncio dos cerrados e em antes de iniciar a fuga fui até o cavalo zanho do delegado, desamarrei o cabresto do pé de umbu e falei alto, com um pouco de carinho na voz: bora pra casa zanho e dei um tapa forte nas ancas - plash - e o cavalo zanho tremeu todo o couro, ajeitou as orelhas e trotou - sem cavaleiro no vazio arreio cutiano - para o lado da vila e eu caminhei para o outro lado, para o leste, para desconhecidas terras, nunca vistas serras, vilas, veredas, gentes.

Resolvi também, naqueles poucos tempos que tive para pensar, que iria, naquela primeira semana, caminhar de noite, no escuro, escondido do sol, com os olhos e as orelhas atentos, o tempo de revólver fácil à mão, alisando o cabo de madrepérola e quando fosse dia, colocar o Schimdt embaixo de minha cabeça, de fácil alcance, escondido por debaixo do monte de capim que seria meu travesseiro, e era assim que eu iria dormir, descansar: um olho fechado e outro aberto, medo da morte.

Naquela primeira noite a lua era minguante e no céu azul ela se assemelhava uma canoinha redonda, tinha uma estrela bem em cima que se resolvesse cair ia parar bem no centro, repousar descansada no miolo macio algodão da lua, ajudando, com seu brilho, a lua a clarear mais a terra, fazer chover quando ela se tornasse lua nova, porque agora na minguante a lua era de poucas chuvas; minguante é uma lua boa para cortar o cabelo que demora mais para crescer, mas não é uma lua boa nem para plantios de mudas que demoram para vingar, nem para fazer negócios com gado, trás poucos dinheiros: cada lua domina mais um tipo especial de força.

Caminhei a noite toda! Pelas minhas contas, quando a barra do dia avermelhava atrás de uma serra azul, longe, nos horizontes, devia ter andado em direção ao leste por umas cinco léguas, o passo rendeu, caminhei seguindo uma trilha feita por bois e vacas, caminhada sem alcançar morro nenhum, tudo plaino, no céu a lua minguante, muitas estrelas, silêncio de se ouvir o farfalhar do vento fraco nas folhas de buritis, vez ou outra se escutava o pio da coruja, e os cri! cri! cri! cri! dos grilos que fugiam das moitas de medo de serem pisados; já na madrugada senti no ar cheiro de piriá - garantia ter algum brejo por perto - o dia foi clareando, deu para enxergar um pouco mais na frente um capão de mato: vai ser ali, naquele capão de mato, que vou me ajeitar, achar um lugar para dormir e quando acordar resolvo os depois, tão cansado que estava.

Porque a alcunha de capadô, do Valti? Mas eu não tinha em antes explicado? não, mesmo? me adesculpe, faia grave e já explico. Valti tinha, pela graça de deus, sem escola, a sabença de castrar animais e de enxertar plantas. Pois sim: pegava um brotinho novo – ele costumava chamar de olhinho - de um pé de laranja de umbigo, tirava com uma faquinha de corte com o maior cuidado e ia até um pé de limão china, e com a mesma faquinha abria um furo na casca, sempre muito cuidadoso, dedos espertos, enfiava ali o olhinho do pé de laranja umbigo, amarrava com cipó para firmar as beiradas do corte, fazia o sinal da cruz, se benzia, e dava por encerrado: meses depois voltava, cortava a ponta do galho logo acima de onde o olhinho começava a crescer e o pé de limão china, azedo, passava a produzir, na época certa, doces laranjas de umbigo, aquelas que não têm sementes e só nascem de enxertos como os feitos pelo Valti, laranjas grandonas, casca fina, doces feito mel de abelha. Mas sua sabença maior era mesmo na castração de animais a ponto de fazer dessa sua habilidade sua profissão; deixou a sua condição de colono na fazenda do Damasceno, mudou para a vila e vivia de capar porcos e porcas, mais essas, pela dificuldade dessa operação. Não sei se o senhor sabe mas capar o porco macho depende mais de coragem e de força: se amarra o bicho pelas pernas, um homem ajudando a segurar o animal pelas pernas, um berreiro infernal, os outros porcos fugindo do chiqueiro, arrebentando a cerca com os peitos, as galinhas voando para longe e o capadô, usando uma faca afiada, corta os dois culhões do porco, tira de lá de dentro os bagos brancos, joga fora para os cachorros e lambuza o ferimento com creolina para não deixar crescer bichos e solta o danado que sai a toda velocidade, chorando alto, e não se sabe se chora pela dor do corte ou por ter perdido sua condição de macho, agora virou um porco molengão, comilão, vai engordar e criar banha ao lado de uma porca fêmea sem nenhuma vontade de com ela reproduzir; agora a castração da porca fêmea é mais complicada: se abre um buraco na virilha, quanto menor melhor para a cura ser mais rápida, e se enfia dois dedos dentro até encontrar as trompas que são puxadas fora, cortadas, separadas e nunca mais a porca vai ter porquinhos na barriga, para nascer dezenas deles, rosadinhos, lindos, espertos. Sabe o senhor que o amor que ocorre com um casal de porcos é dos maiores? pois é sim, prazer por demais, um ato demorado diferente do touro que fica horas e horas cheirando e namorando a novilha para numa hora que só ele sabe qual, depressa e rápido, mode seu peso, sobe na novilha e os dois a correm, a pobre vaca afundada sob o peso enorme, o touro perdido no seu curto prazer e pronto! o que era bom já acabou, tudo muito depressa, o touro recolhe o pinto mole, estica a cara para cima, abre os beiços mostrando os dentes amarelos e cheira o ar na procura de outra vaca no cio; pois com o porco não: realizam um ato demorado, os dois – porco e porca – de olhos fechados desfrutam do prazer de fazer filhos, e os pais e mães de meninas e meninos evitam o mais que podem para que os filhos não vejam a sem-vergonhice, proíbem e ameaçam com castigos e surras com varas de marmelo se pegarem os filhos espiando nos chiqueiros o cruzamento dos porcos, eles, os pais e mães, acreditam que apreciar aquilo adianta as horas dos meninos e meninas se interessarem por besteiras, mas não sei se é mesmo real isso, o que sei é que Valti tinha, como ninguém, a sabença de capar porcos e porcas. Mas, resumindo, esse era o porquê do apelido de capado do agora defunto Valti.

E outra coisa que já adianto para o senhor: na vila, eu fiquei sabendo anos e anos depois, quando pude voltar até lá, a passeio, o que se contava era que tinha sido o delegado Zé Bobagem que tinha matado Valti capadô e que eu por vingança tinha enchido a cara de Zé bobagem de chumbo e matado o delegado, histórias que se contavam, a vila de poucas novidades e acontecimentos: quando se tinha mortes matadas os assuntos duravam semanas, meses até cair no esquecimento, no desuso de se contar, perdia a graça da novidade e se esperava outro assunto para poder se falar nas tardes e nas silenciosas manhãs: e a outra novidade contada era de um moço da vila que tinha roubado a filha de um fazendeiro e fugido com ela, a cavalo, para Montes Claros, ou das chuvas que fizeram o rio das Velhas subir metros e metros arrastando casas, corpos, árvore, bezerros e gentes, deixando a febre da maleita...Era assim que a vida corria vila adentro: e de minha parte a novidade que tive foi a que meu pai tinha morrido de doença – pegou malária na beira do rio das Velhas – e que minha mãe continuava a esperar por mim, com saúde, rezando todos os dias pelas almas dos mortos e pela saúde dos vivos.

Nenhum comentário: