sexta-feira, 21 de março de 2014
A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–VII–FOI QUANDO, DEPOIS DE UM MÊS FUGINDO PARA O LESTE, ARCEBIDES FOI PRESO NA BAHIA!
Pelas minhas contas andei fugido por coisa aí de um mês, mês e pouco; perdi a noção dos dias e das noites, caminhando para o leste: passei por arraiais, vilas, fazendas com brancas casas e janelas azuis , casebres marrons, cafuas cinzas, riachos e córregos com água escura cor de ferro, cerrados cor de palha de milho seco, morros negros, chapadões azuis, veredas cor de ouro; te digo que nestas andanças realizei poucos encontros - por razão minha: fugia de corpo e alma, sentia que me fugia todo, inteiro – evitava gentes, pessoas e até que, devo confessar, fui aprendendo a gostar daquela vida sem rumo, sem norte a não ser o leste, um leste que eu queria que nunca chegasse, um infindável leste que quando eu encontrasse o seu fim - não imaginava onde era – só aí eu ia saber se era bom ou ruim; mas no agora - daquele momento que fugia -, eu estava gostando: considerava, comigo mesmo, boa aquela vida de nada fazer: caçava juritis, pacas e preás com a cartucheira, comia araticum, goiaba, murici e umbu, mundo a fora, sem rumo, indo para o leste, sem saber onde ia dar, mas andava com cuidado, atento e toda manhã marcava bem o ponto de onde o sol nascia e era esse o rumo que eu seguia.
Mas acabei, sim, encontrando pessoas. Umas muito poucas, porque eu fugia, vivia meus momentos, mas me lembro bem de um dia que - depois de ter caminhado por úmidas veredas – passei a caminhar por um cerrado bravo, seco, e lá pelo meio do dia, sol a pino, foi que enxerguei bem longe, rente ao pé do chapadão – um azulado chapadão que servia de limite no horizonte- , vi com estes olhos que um dia a terra vai comer: vinha vindo um cavaleiro trotando devagar, passos lentos, sem nenhuma pressa, o corpo curvado em cima do cavalo, emborcado como um tatu, e era um branco cavalo, crinas compridas, e logo atrás dele e nele amarrado por um cabresto feito com couro de boi, vinha puxado, um jegue cinza carregando gordos alforjes que balançavam para lá e para cá obedientes ao ritmo do trote pesado do burrico. E era um dia em que o sol queimava as costas, se enfiava debaixo do chapéu e esquentava os miolos da cabeça, aumentava a sede d’água branca, as águas das cacimbas são águas escuras, salobras e eu padecia de uma forte dor de cabeça, os miolos parece que querendo se arrebentar, a testa latejava, acho que era sede, carência de molhar a garganta e encher a barriga com cristalinas águas. E no meio daquela secura do cerradão cor de palha de milho seco verdejava um pé de umbu: verde escuro, destoava da tristeza seca do cerrado o completamente verde umbuzeiro: sua copa ofuscava o sol e fazia emergir uma sombra que enegrecia o arenoso chão do cerrado, tecia uma nuvem protetora, fresca e decidi que ficaria ali, esperando - sem medo - o cavaleiro que vinha em seu cavalo branco e o jegue carregado de mercadorias, foi o que soube depois, palestrando embaixo da sombra do umbuzeiro com o turco Mansur, que andava por aqueles fundões de mundo mascateando mercadorias que comprava na capital para descarregar - vendendo devagar - , de casa em casa, de vila em vila, em cafuas e taperas, anotando os fiados - débitos e créditos, me disse Mansur – em uma caderneta amarelada, enfiada no bolso de dentro do paletó de brim caqui do turco Mansur, que conversava com uma fala grossa de trovão, grave, meio rouca vinda do fundo da garganta, pitava cigarros, daqueles de papel, comprado em maços na cidade, o bigode negro amarelado da fumaça que o turco assoprava para cima, em direção do nariz depois das tragadas fortes, sem tossir; o que é que o turco vendia? quais tipos de mercadorias?; quase de tudo o turco Mansur vendia: vendia por metro, que Mansur calculava medindo pelo palmo da mão – cada palmo um quarto de metro - panos coloridos para vestidos, chitas, terços de rezar, folhinhas daquelas com um bloco que conta a vida do santo de cada dia do ano, trezentos e sessenta e cinco vidas de santos no ano e ele também tinha para vender velas brancas das grandes e das coloridas e mais escondido no fundo do alforje tinha uma capanga de couro com braceletes, correntinhas com santos e brincos tudo em ouro de vinte e quatro quilates, e também vendia botinas e sapatos, véus para cobrir as cabeças – brancos e negros – para as rezas...era um mundão de coisas que enchia os alforjes e cansava o burrinho jegue que nunca descansava as costas porque Mansur vendia na ida e trazia na volta o que sobrava por não ser do agrado ou das posses dos seus fregueses e mais ainda: comprava ou barganhava, para vender na capital, galinhas com as pernas amarradas em cordas feitas de palha de milho, cacarejando e cagando preto, ovos de pata – melhor remédio para curar fraquezas e anemias -, filhotinhos de peru enfiados em uma cesta de bambu, um ou dois mico estrelas amarrados em fios trançados de folhas de macaúbas, filhotes de papagaios que mais tarde aprenderiam repetir palavras feias – bosta, merda, peido - na frente das visitas e os mais espertos chegavam a aprender a cantar obedecendo a melodia - ela só quer só pensa em namorar -, tatu bola vivo com os olhinhos negros desconfiados e carne de tatu bola já seca e salgada e tudo o mais que encontrava em sua vida de negociante mascate: só não vendo a mulher e os dois filhos, gosto demais deles, os dois estudam para ter outra vida, diferente para melhor que a minha; e clamou por saudades de Zarif – sua mulher –: me espera em casa, tem os olhos negros, longos cabelos lisos, fartos sorrisos e seios que amamentaram os filhos e continuam apetitosos, é a vida que levo; e eu percebi nos olhos do mascate Mansur que a saudade tocava sua vida tanto na ida como na volta, e achei que devia ser por demais de boa a vida de mascate: não carece de ajudante?; não: careço não, já é difícil cuidar de mim e dos fregueses agora imagine com mais alguém no meio, quero não; pois eu admirei a vida que o senhor leva; vou e volto: sempre!; acho que eu só vou; terminamos de comer farinha com rapadura – que Mansur ofereceu – tinha água na cabaça e ele me passou e dei um gole grande, refresquei a garganta, chacoalhei a água dentro da boca para engolir os restos de farinha e rapadura e tão logo Mansur se se viu satisfeito de barriga cheia, - barriga cheia, pé na areia – esticou o pescoço, olhou para o alto e enfiou dois dedos - o minguinho e indicador - na boca, enrolou a língua e assoprou forte soltando um assobiou alto, sonoro - fiuu! chamando o cavalo branco que escutou e, obediente, atendeu, deixou de pastar os poucos brotos verdes encontrados nas moitas de capim e a passos rápidos veio para junto de seu dono que o acariciou no pescoço, alisou suas crinas e enquanto montava falou: vamos embora que o caminho é longo, adeus; e o jumentinho ficou um pouco indeciso, sem saber se empacava – ancestral qualidade dos jegues - para desfrutar mais um pouco da sombra do umbuzeiro mas ai, com certeza, iria levar umas relhadas com o rabo de tatu que Mansur tinha na mão direita, e assim pensando, fechou os olhos, a sobrancelha enorme cobrindo os olhos negros e resolveu, por bem, que o melhor que tinha a fazer era imitar a bondade obediente do cavalo branco e foi deixando a sombra do umbuzeiro, o sol queimando suas orelhas, e ele trotou – um trote tristinho - , as enormes orelhas em pé, passos curtos, o rabo balançando – feito um ventilador - para tocar as mutucas marrons que famintas arrodeavam para ferroar o couro duro e sugar seu sangue.
Ah!, sim: vez ou outra dava paradas de descanso do fugir; isso acontecia mais era quando eu avistava uma vila, ou um arraial e me batia fortes saudades de gentes, de comida quente – aipim, galinha, jabá - e de novidades, e então eu resolvida parar um dia ou dois, dormir em um girau embaixo de um coberto de piaçaba, e nessas horas eu tomava muitas cuidadosas precauções: em antes de chegar no arraial que avistava dava um jeito de arrumar uma oca segura que era onde eu escondia a espingarda, o revólver e o cinturão com balas para só então, desarmado, a não ser da faca de picar fumo e do punhal enfiado – escondido - na cintura, na parte de trás das calças, eu chegar devagar na vila ou arraial, e foi daí que eu inventei uma maneira de puxar conversa e saber de onde é que eu estava que era mais ou menos assim, sempre igual, porque dava certo: tão logo via alguém que me causava certa confiança de bondade eu puxava assunto, sempre depois de clamar por um bom dia, o chapéu retirado da cabeça, junto ao peito - respeitoso: podia o senhor me dizer se é mesmo dessa vila a família do mano Zé do Biba, um que trabalhou junto comigo na capital?; daqui num é não, conheço ninguém com esse nome, não, a vila é pequena todo mundo se conhece, voismecê deve estar enganado; que mal lhe pergunto, sem querer incomodar, qual é então o nome dessa vila?; e uma se chamava Pacuí, outra vez em mais outra parada de descanso de fugir, outra vila, igrejinha pequena e uma fila de casas formando a rua, porcos e galinhas correndo dos moleques com seus estilingues, fui informado: pois aqui é Mamonas e chegou ainda uma outra vez em que escutei: aqui, onde o senhor está é Anagé; e aquele rio grande que beira aqui Anagé? ; é o rio Gavião seu moço...
Entrei na principal rua de Anagé, rua cercada de casas dos dois lados, quadras demarcadas, rua com nome - XV de Novembro – caminhei por ela até uma igrejinha branca que ficava no centro de uma praça com bancos para se sentar, as crianças com fardas e capangas com livros penduradas nos ombros, gritando e correndo para a escola – Grupo Escolar de Anagé – e tinha um bar perto da praça, tomei café, comi broa de milho e cuscuz de tapioca, enchi a barriga e quando estava preparando para pagar o devido foi que se encostou do meu lado um soldado, armado, sem dizer bom dia pergunta por meu nome e eu digo Alcebíades; e você pode me dizer de onde vem vindo?; venho vindo das Minas Gerais; não vem do norte, das Alagoas?; não: venho vindo das Minas Gerais; e para onde vai indo?; para o leste; para o leste aonde?; para o mar, quero ver o oceano; então está indo para Alagoas?; sei não, estou indo para o leste. O soldado me deixou, foi saindo do bar com cara de que não gostou e pensei que o melhor seria eu fugir mais longe, me livrar de perguntas, não tinha respostas: para onde eu ia? eu sem saber para onde ia, meu destino era o leste; paguei o devido ao dono do bar, agradeci, e quando fui saindo vi um salão de barbeiro e resolvi que era uma boa hora de raspar do rosto a barba preta, tosar os cabelos para ficar com a cara que eu estou acostumado a me ver, limpa das barbas pretas, cabelos nos seus normais tamanhos.
Enquanto a navalha do barbeiro limpava minha cara e a tesoura cortava meus cabelos decidi: vou-me embora hoje mesmo, aqui não fico, tem coisa errada no ar. Paguei os serviços do barbeiro, me vi bem no espelho – sem barba e cabelos cortados – me achei nos meus normais e decidi de ir embora; caminhei na direção da entrada da cidade para pegar meu revólver, o cinturão com balas e a espingarda cartucheira, e de lá seguir o caminho para os lados do leste e foi então que percebi que atrás de mim vinha o soldado que antes, ficou especulando meu nome, de onde eu vinha e senti cheiro de enxofre no ar, a alma apertou dentro de mim, sinais de tristezas, de maus agouros; apresse o passo, andei mais ligeiro, olhei para trás e vejo o soldado a uns trinta passos atrás de mim, me seguindo, por quê?, retardo o passo, marcho devagar, olho para trás e lá está – trinta passos- atrás de mim e era como se estivesse amarrado por uma corda, puxado por mim, deus lá no céu determinando que eu fosse igual ao turco Mansur, a cavalo puxando o seu jumento, e foi quando pensei que o melhor era me por a correr, besteira, desisti da ideia e parei beirada de uma casinha de pau a pique e olhei firmemente para o soldado que primeiro parou, depois foi chegando, se aproximando, eu tremia por dentro, não sabendo se contava mais mentiras, se falava a história da morte do delegado, deve ser por isso que está atrás de mim o filho da puta do meganha. Gordo, moreno, cabelos negros, a farda de soldado corroída, o revólver preso na cintura, me olha e diz: vamos até a loca da onça ver o que escondeu lá; e eu: onde é isso?; você sabe, não me faça de bobo.
Fomos: peguei o revólver, o cinturão com balas e a espingarda e ele: tá preso, passe as armas, vamos para a vila e se pensa em correr, aconselho que saia correndo sem virar os olhos para trás, porque senão você vai a morte chegando: pum!!!, e começou a andar em direção à vila, ele na frente, com meu revólver, o cinturão com as balas e minha espingarda cartucheira e eu atrás.
Tão logo entramos na vila, ele dobrou à direita na primeira quadra, andamos uns cem metros e ele parou frente a um prédio antigo, de tijolos, caiado de azul, uma escada de degraus na frente, a bandeira brasileira hasteada. Cadeia Pública de Anagé.
E o delegado: então você vem vindo de Minas?; sim, é de lá que venho; e para onde vai, mesmo?; para o leste é para onde eu vou; não é para Alagoas que você vai e de onde você veio?; não, senhor, vim de Minas, das gerais; e você então não é da turma do Julião e seus barbudos?; num sou disso, não senhor; mentiroso; e berrou alto o nome do soldado, ordenando: Dimas, prenda esse porra de comunista das Ligas Camponesas até ele resolver contar direito o que ele veio fazer aqui em Anagé.
O soldado Dimas chegou e foi me catando forte, enfiou meus dois braços atrás de minhas costas, segurou com punhos de ferro e foi me empurrando até o final de um corredor de ladrilhos vermelhos, e lá, no final do corredor uma cela com porta de grades de ferro; antes de abrir a porta, soltou meus braços, tirou o revólver da cintura, e só então abriu a porta com uma enorme chave de ferro e me empurrou cela a dentro.
Era uma cela escura, pequena e lá já estavam, presos, Militão e o cigano Igor.
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