“Na ressurreição, os homens não terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como os anjos de Deus no céu.” Mateus, 22.30
Assim que fui empurrado cela adentro Militão, se apresentou: – meu nome é Militão, e o seu? – não me deu tempo de responder, foi logo me dando boas vindas à nova morada que por suas contas “vamos dividir por um bom tempo, e, sendo sincero é que eu espero, porque este cigano ai do lado fica calado o tempo todo, é a mesma coisa que não ter companhia, sempre emburrado, coisa mais que horrível, nem parece gente; qual é o seu nome, me esqueci? Arcebides é bonito nome, e sabe de uma coisa: eu careço de falar e de escutar vozes, falas, ideias” foi falando – sem interrupção, ou como dizia minha professora do quarto ano: sem colocar nem ponto nem vírgula - a voz um pouco flauteada, vez ou outra revirava os olhos azuis e quando sorria mostrava os dentes brancos, e sorria um sorriso meio desconfiado com um canto da boca caído e o outro para cima.
Na outra cama – sentado - o cigano olhava quieto, sem contar na sua cara se estava gostando ou não da conversa. Mudo, olhos e cabelos negros, uma cicatriz enorme - parecendo um mandarová - atravessando a cara toda, com certeza foi corte de navalha em briga, bravo, sem vontades de conversar, de dar boas vindas ou bons dias.
Por demais de pequena a cela; sobrou para mim – fui o último a chegar - a cama de cima da desarrumada cama do Militão, a minha com o estrado de madeira à mostra, sem colchão. Logo na cabeceira do cigano, no canto da cela, um cano d’água que era onde se tomava banho e uma lata de óleo de vinte litros que era o local para a realização das necessidades e já posso ir adiantando que além do medo do incerto que é o de estar preso o que tem de mais pior na prisão é a ausência de um momento - um segundo que seja - para se sentir só, isolado do mundo; tudo, tudo mesmo, até as necessidades feitas em público e o Militão era o que ficava mais a vontade, pouco se importando com a catinga de suas fezes e com os barulhos que seu organismo fazia, horrível aquilo, o homem de cócoras em cima da lata de vinte litros, defecando, o rosto vermelho das forças que fazia, a gente ali perto, tudo vendo, e adianto que de tanta vergonha fiquei os quatro primeiros dias presos com meu organismo se recusando a executar suas necessidades mais primárias e depois eu escolhia as madrugadas para, no silêncio e no escuro da noite, cumprir com estas minhas obrigações.
A cada dia um de nós era escalado pelo soldado gordo para levar a lata, atirar fora as fezes e urinas, lavar a lata de trazer de volta a cela: tudo isso com o gordo soldado, revólver engatilhado à mão, olhando e tapando o nariz para não sentir o cheiro da catinga de nossas merdas.
E foi em uma manhã, depois do café - ralo, parecendo chá - que Militão começou a falar a história de sua vida:
“Minha mãe morreu, quando eu tinha uns sete ou oito anos, desencarnou no trabalho de parto de minha irmã Luzinete, um parto que demorou mais de um dia, choros e gemidos de dor invadindo a casa, a parteira ajudando, meu pai nervoso, a parteira mandou chamar o médico, a bebê Luzinete teimava em não nascer, o doutor teve que usar fórceps e então Luzinete nasceu berrando, a cabeça marcada pelos ferros usados pelo médico e minha mãe morreu ao ouvir o choro da vida de sua filha. Desse modo foi que quem criou Luzinete foi meu pai e eu ajudava muito nisso: dava banho, fervia o leite e misturava com farinha de mandioca ou com maizena para engrossar e dava na boca da irmã, que ia crescendo forte, moreninha, alegre...Pai nunca se conformou com a morte de minha mãe: não procurou outra mulher, sua vida a cuidar de mim e de Luzinete, trabalhava pesado durante a semana e aos domingos nos arrumava com roupinhas domingueiras para assistir a missa das seis na igreja; me matriculou no curso de primeira comunhão, não permitia que eu faltasse nas aulas da escola e me ajudava – até o segundo ano – nas lições de casa, e depois – quando eu fui para o terceiro e quarto ano - ficava ao meu lado e era, então minha vez, de enquanto eu fazia a lição e ensinar ao meu velho pai que assim aprendeu frações, quilômetros, metros e centímetros, contas de dividir com números grandes e fazer contas com vírgulas nos números... Todo final do dia – o sol se escondendo atrás do morro do Alto Porã - pai ligava o rádio e a gente ouvia a Ave Maria na voz de Júlio Louzada e depois da reza era que ele nos levava para a cama, nos cobria, e eu e Luzinete pedia Bênção, pai; e ele Deus abençoe, durma com os anjinhos.
Luzinete cresceu, foi para o grupo e chegou a idade de ir ficando moça – bonita - peitinhos salientes, pernas redondas, cabelos negros, dentes brancos e meu pai foi ficando doente de diabetes e eu - já rapaz – trabalhava como ajudante na barbearia do senhor Joaquim e a cidade toda comentava da minha voz flauteada, de meu desinteresse pelas meninas, por já ter trabalhado como doméstico em uma casa de família, lavando pratos, roupas, arrumando camas e nas esquinas e nos bares, quando eu passava, dava para escutar os altos cochichos: mulherzinha, viado.
Como estava contando, Luzinete cresceu e foi desde então que Otavinho, filho de um fazendeiro da cidade, ficava passeando pela calçada de onde ficava nossa casa, Luzinete na posição de namoradeira na janela do quarto, e ele falava que ela era linda, que queria casar com ela e aquilo deixou meu pai preocupado: este homem não presta minha filha, já desonrou mais de uma moça; não se preocupe meu pai. Na cidade, nos bares, no jardim e na barbearia onde eu trabalhava de ajudante, o que mais se falava era que Otavinho e minha irmã Luzinete se encontravam, os dois, no matinho de atrás do campo de jogar bola...Meu pai continuava a dizer: cuidado minha filha, este homem não presta, vai te desonrar; ele vai casar comigo pai, vamos, no ano que vem, morar na fazenda Toca da Onça, os dois...; te rogo e, de joelhos, te peço, filha, para seguir o exemplo de sua mãe que em antes de casar sempre se fez respeitar.
Foi então, em um certo dia, durante a semana, que Ângelo chegou na barbearia, sentou-se na cadeira, a barba loira por fazer, os olhos verdes, grande, roupas modernas, relógio de ouro Eska no pulso, voz de barítono: quero fazer a barba, a navalha está afiada? sim....e preparei a espuma com o sabão, afiei mais ainda a navalha, passei espuma no rosto de Ângelo e iniciei o barbear, caprichoso cuidei de passar a navalha – afiadíssima – obedecendo o sentido dos fios, não queria escanhoar a pele macia, branca, e os olhos verdes de Ângelo – vez ou outra – buscavam o espelho para ver se o barbear estava a como ele havia pedido: quero o rosto liso, hoje a noite o Circo Veneza faz sua estreia na cidade...
Ângelo era o dono do Grande Circo Veneza, que, há uma semana, havia chegado na cidade: circo grande com dois elefantes, lona nova, sem furos, a porta de entrada do circo era uma enorme boca de palhaço, duas onças, um leão, trapezistas, globo da morte e muitas outras atrações, inclusive um cantor estrangeiro. Terminei de fazer a barba do Ângelo, trouxe o espelho para perto do seu rosto e perguntei se estava bom o serviço e ele se alisou o rosto com suas mãos enormes, brancas, unhas perfeitas, dedos longos de pianista: sim, está bom o seu serviço, passe mais água velva; e eu peguei o vidro de água velva, entornei na mão emborcada uma porção da água e espalhei cuidadosamente no rosto branco de Ângelo que segurou minha mão junto a seu rosto liso, de barba feita, acariciou e beijou minha mão com seus lábios vermelhos e me deu uma tremura em todo o corpo, meu coração batia forte, queria sair pela boca afora, e Ângelo tirou o dinheiro do bolso para pagar o serviço, quanto é? e eu parado, trêmulo, e Ângelo olhou a placa com o preço do barbear e deu o dinheiro: a gorjeta é sua pelo seu serviço; obrigado; te espero no circo hoje, aqui uma entrada de cortesia para a primeira fila, me aguarde lá depois que o espetáculo terminar; e saiu com seu passo normal, só eu tremendo todo, o dinheiro ainda na mão, a gaveta não abria e olhei que Ângelo ia saindo e quando chegou na porta da barbearia tornou a olhar em meus olhos e repetiu: te espero no circo hoje a noite.
A noite, depois da ave-maria na voz de Júlio Louzada, saí de casa em direção ao circo e em vi que Otávio vinha caminhando em direção contrária a minha e tive a certeza, naquela hora, para onde ele e Luzinete iriam e que nada havia a fazer.
As duas motos roncavam seus motores cruzando o globo da morte, um barulho enorme, a bicicleta no meio das duas motos, fumaça e cheiro de óleo, o povo aplaudindo e o espetáculo terminou. Ângelo foi para o centro do palco, microfone à mão, agradeceu a presença de tão distinta plateia convidando a todos para o espetáculo da noite seguinte.
As luzes se apagaram e fui levado, tomado por sua mão firme, até o seu camarim, montado em um trailer que ficava ao lado da jaula dos leões.
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