segunda-feira, 14 de abril de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–IX–FOI QUANDO O CIGANO IGOR ORIENTOU NOSSA FUGA DA CADEIA!

2009 Caminho da fé 104

Como eu conto – respondeu Sancho – é que eu sempre ouvi contar os contos na minha terra; de outro modo não sei, nem vossa Mercê me deves pedir que arme agora novos usos.” Dom Quixote de La Mancha, Miguel de Cervantes.

Depois de uns quinze dias depois que fui preso o delegado mandou o soldado gordo me levar até sua sala, uma sala apertada, ele sentado atrás de uma mesa de madeira grossa, um fedor de cigarro espalhado no ar, o delegado balançava – pra frente pra trás - o corpo em uma cadeira com encosto alto, olhava para o teto enquanto me fazia perguntas, o revólver ao alcance de sua mão: pois então, o que tenho para te dizer é que passei telegramas para as delegacias dos distritos das Gerais, de onde você disse que veio, citei seu nome e até o momento delegado nenhum respondeu meus telegramas ordenando que eu mantivesse você preso aqui na Bahia; então o senhor vai me soltar?; e para onde você vai se eu te soltar?; vou para o leste, para o mar, como disse ao senhor, é para onde quero ir; para as Alagoas?; não sei não: quero ir para o leste, ver o mar; mentiroso, querendo ser mais esperto que eu: você é da turma do Julião, das Ligas Camponesas seu filho da puta; sou não senhor, posso garantir isso ao senhor, juro por deus que não estou mentindo; e o delegado chamou aos berros o soldado e ordenou que me colocasse preso de novo na cela: prenda o homem, temos que esperar resposta das Alagoas.

Militão e o cigano Igor me esperavam curiosos de saber os acontecidos na sala do delegado: o delegado encafifou que sou da turma do Julião, das Ligas Camponesas; temos que fugir daqui, disse Igor; e um silêncio demorado, custoso do tempo passar, aconteceu depois do que disse o cigano, que continuou: cadeia é lugar para homem, não há nada de errado em ficar preso, mas não gosto e vamos, os três, sumir daqui o mais depressa possível. Igor falava devagar, palavra por palavra, pensando e calculando o valor da palavra seguinte, economizando nos dizeres, a voz grossa saindo dos fundos da garganta, e quando ele falava a gente se via na obrigação de quietar e escutar o que ele dizia com atenção.

Eu, cá estou preso, continuou Igor, por crime de morte: sou chefe de uma tribo e roubei duas moças de outra tribo para compor melhor minha barraca, alegrar minhas noites e madrugadas com sangue novo; as minhas mulheres gostaram da minha atitude, receberam bem as moças roubadas mas o chefe da outra tribo se enfezou, ficou atazanado de raiva, aprontou guerra com a gente, não se conformou com o roubo, tentei negociar, querendo evitar guerra e mortes ofereci duas mulheres de minha tribo em troca, ele poderia escolher, mas nada, o chefe cigano estava desgastado, disse que o que queria eram as moças roubadas de volta, eu disse que não e ele me ofendeu com nomes horrorosos, o sangue subiu e eu matei o desgraçado, furei com o punhal o seu peito, fundo o punhal chegou no coração, morreu na hora e a partir dali o recurso foi só fugir e fugir da polícia, que acabou me encontrado na serra do Mato da Onça, nas cabeceiras de onde nasce o rio Gavião.

Militão, com sua voz flauteada, tomou a dianteira em nossa reunião de conversa: todos nós aqui com morte nas costas: só eu, com minha navalha, posso contar cinco, até sei que é pecado, mas o certo é que passei a gostar de matar, gosto de ver o sangue pular da veia do pescoço, escorrer e ir descendo corpo abaixo, a cara ir ficando arroxeada, a respiração fraca, só um pinguinho de ar entrando pulmão adentro não dando conta de estufar o peito por completo, o sangue empedrando negramente nas roupas...a morte, capeta dos infernos!

Vamos fugir dentro de umas três noites, retornou a fala o cigano Igor, isso se cada um concordar comigo...; eu quero, não gosto dessa vida de assum preto na gaiola não, logo vão querer furar nosso olhos para, como diz a canção, a gente cantar melhor aqui preso, cagando nesta lata fedida, melhor fugir; e como pensa em a gente fugir, perguntei; tenho tudo na cabeça, vai dar certo se cada um ajudar a cumprir com sua parte; e qual será minha parte, perguntou Militão? e o cigano: de noite, a gente combina, de dia as paredes tem ouvido.

O sino da igrejinha bateu doze vezes: meia noite! Igor se levantou da cama, foi até a lata de necessidades, mijou, olhou bem para a porta e para o corredor, nada viu e disse: vamos combinar em como escapulir daqui.

Sentamos, os três, na cama do cigano que explanou o seu pensar:

Você, Militão, já deve ter percebido do interesse que o soldado gordo te em você; mas eu não tenho nenhum interesse nele; pois carece ao menos de fingir que tem para a gente poder fugir daqui; fale o que pensa, então; pois é assim: você deve demonstrar interesse em satisfazer as vontades dele, agradar com o olhar em suas partes, mostrar vontades em pegar com as mãos o pinto o soldado e bater, daqui de dentro da cela, uma punheta para ele; tá ficando louco seu cigano de merda? que pensa que eu sou? me acha com cara de puta de soldado, pegue você o pinto dele; o cigano continuou calmo: se você topar, Militão, na hora que ele estiver para gozar eu e Arcebides vamos fazer a nossa parte: enquanto eu agarro o pescoço e a cabeça dele e prendo entre as grades o Arcebides pega o revólver e as chaves na cintura ... e aí a gente abre a grade da cela, enfiamos aqui dentro o soldado gordo e caímos na rua, daqui a três dias é noite de lua plena, cheia, gorda, luminosa, de boas sortes, agora vamos voltar a dormir e amanhã, se ninguém der sinal ao contrário, começaremos a contar as noites que faltam para a lua ficar plena de cheia.

Já na manhã do dia seguinte Militão passou a encarar o soldado com um olhar lânguido, lascivo e foi daí que contou que quando estava no circo, depois de uns dois meses em companhia de Ângelo, sem nada o que fazer, se interessou em aprender a cantar e a imitar vozes com um artista – Geraldo - que nos espetáculos, se apresentava com seus cabelos loiros, olhos muito verdes, quadris arredondados, imitando os grandes cantores do rádio: Geraldo imitava tanto homens, como Gregório Barrios cantando História de Um Amor, Francisco Alves cantando Adeus mas também imitava – e aí dançando e requebrando – mulheres como Isaurinha Garcia, Marlene e Emilinha Borba, e continuou Militão: aprendi e fiquei bom naquilo, passei a imitar direitinho, até que uma noite, Geraldo com a garganta inflamada, chegou a minha vez e eu me vesti de negro e cantei e requebrei:

“Ya no estas a mi lado, corazon,

En el alma solo tengo soledad

Y si ya no puedo verte,

Porque dios me hizo quererte

Para hacerme sufrir mas...”

e público aplaudiu gostando, olhei no fundo do palco e vi o Ângelo batendo palmas, o rosto vermelho, alegre e então cantei com voz aguda, feminina, imitando Isaurinha Garcia:

“Quando o carteiro chegou,

E o meu nome gritou,

Com uma carta na mão...”

e quando fui terminando, agradeci e o público gritava Diana, Diana, Diana e eu me travesti de Paul Anka:

“ Oh-oh, oh-oh, oh-oh

Only you can take my heart

Only you can tear it apart

When you hold me in your loving arms

I can feel you giving all your charms

Hold me, darling, ho-ho hold me tight…”

e fui muito aplaudido e passei a gostar demais de ser cantor de circo, imitando cantores e cantoras, dançar e requebrar languidamente, ser aplaudido e ao final do espetáculo ir, feliz, para o camarim com o Ângelo!

As nove horas da noite o soldado gordo veio vistoriar a cela: se aproximou das grades e ao perceber o olhar de Militão em suas partes, desabotoou a braguilha, tirou para fora o sexo murcho, e Militão se aproximou da grade e foi acariciando o pinto do soldado que foi ficando duro, ereto, veias grossas aparecendo, o pinto vermelho arroxeado crescendo, os olhos do soldado se fechando de prazer e Militão chamando o gordo soldado de meu lindo, meu macho...e foi então que Igor, ágil como um macaco, saltou de sua cama alcançando o pescoço do soldado gordo e os olhos fechados de prazer se abriram de susto, de medo, percebendo que estava com o pescoço preso na grade pelos braços fortes do cigano e eu, conforme combinado, saltei da cama e apanhei o revólver e as chaves que estavam penduradas em sua cintura e Militão largou o pinto do soldado, que murchou de vez: goze, gordo de merda, goze agora seu filho da puta.

Encarceramos o assustado soldado gordo na cela e Igor disse: se eu ouvir um grito seu antes do relógio bater dez horas, volto aqui e te mato; saímos pelo corredor em direção a sala do delegado onde estavam nossas armas guardadas dentro de um armário de madeira: meu punhal, minha espingarda de chumbo, meu revólver, o revólver do cigano Igor – um Schmidt cabo de osso – e uma faca que se assemelhava às facas usadas por nós em Minas Gerais para cortar arroz, uma faca meio arredondada e a navalha do Militão.

A lua cheia clareava a rua da delegacia, dava para enxergar o seu vazio, imaginar as pessoas em suas casas recolhidas , dormindo, um cachorro ouviu , nossos passos, acordou e latiu alto – au! au! – mês de agosto é mês de cachorro louco, passamos por ele e o auauau foi diminuindo, diminuindo e quase não mais se ouvia do alto da serrinha, a cidade lá embaixo, silenciosa. Olhei para o céu negro, estrelado, para achar Vênus : vamos para o leste?; sim, para o leste, disse Igor e Militão olhando para o alto, com um jeitinho esperto, dengoso, atirou no mato as chaves da cela: tchau, tchau, berimbau! pra onde vocês for eu vou.

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