Foi em uma tarde que tio Olímpio, o que mais sabia contar histórias - me lembro como se fosse hoje - o sol se pondo, já quase todo escondido, e pelo vão da porta da sala dava para se ver, bem lá no fundão, o Morro do Chapéu parecendo um santo da igreja, um morro vestido com uma aura de vermelhidão, eu sentado sobre seu joelho direito, olhos fixos em seus olhos cinza, brilhantes, e ele me disse: Landim – pois então, já fui Landim um dia, tenho que contar isso para meus netos - o difícil de contar histórias é que as coisas acontecem em um montão de lugares, com um montão de gentes e de sentimentos, tudo ao mesmo tempo, e a gente só dá conta de falar uma coisa por vez, e aí destrincha a história, os acontecimentos, tudo dividido como logo você vai aprender, quando for para a escola, a difícil conta de dividir, pois a de somar e de multiplicar são mais fáceis, as continhas mais difíceis são, primeiro, a de dividir e depois a de diminuir...
Pois era o que acontecia no Teatro Municipal: um montão de coisas acontecendo ao mesmo tempo: músicos entrando no fosso da orquestra para o ensaio, Didinha e Natalino no subsolo, na sala onde ficavam os figurinos e cenários dos cantores de ópera, e Moacir com Cidona, nas frisas, para ela conhecer o lugar de onde, no sábado, assistiriam Cavalaria Rusticana, regida pelo italiano Túlio Serafin, que conhecia Natalino dos tempos em que o figurinista morava em Milão e trabalhava no Scala...E, em todo o ar, em todos os espaços do Municipal o som dos instrumentos sendo afinados, no palco os músicos conversando entre si: não te disse que o meu Corinthians seria o campeão do Centenário, falava alto, em bom tom, todo orgulhoso o trompetista; ganhou roubado, contrapunha Geraldo, oboísta dos bons e nisso chega o spalla e o silêncio se faz e se ouve, claramente, o Lá no oboé e todos os instrumentos correndo atrás dos 442 Hz...
No subsolo, sala dos figurinos e cenários , Natalino e Didinha sozinhos, cercados de vestidos bordados, roupas de camponeses, chapéus, batinas, perucas, e os olhos de Natalino fixos em Didinha – amo esta mulher, será minha – e Didinha sentindo ondas percorrer seu corpo redondo, seios fartos, quadris largos – camponesa – e Natalino tomou suas mãos, segurando-as entre as suas e ela feliz com as mãos macias de Natalino, sem calos de puxar enxada e machado, era outro o tipo de labuta exercia Natalino, magro, olhos azuis, cabelos cacheados, loiro, dentes brancos, rosto quadrado, e os olhares foram se descobrindo, se vendo por dentro e Didinha resolveu deixar-se levar por aquela onda que foi formando uma névoa que escondia seus desejos do olhar dos anjos e do espírito santo e Natalino aproximou seu corpo, pediu – ou ordenou, não se sabe o que foi – um beijo e os quatro olhos se fecharam, as duas bocas se uniram e Didinha – protegida pela névoa que impedia que o seu anjo da guarda enxergasse seu pecado, cerrou ainda mais os olhos e sentiu-se abraçada, forte e docemente abraçada e lembrou do medo que todos na vila tinham do abraço do tamanduá, forte, as garras nas costas, onde sentia as sedosas mãos de Natalino, e se viu protegida como no peito de um tamanduá bandeira, a língua de Natalino buscando formigas em sua boca e os corpos se apertando, ajeitando aqui e ali para maior conforto e melhores contatos, as mãos de Natalino – delicadamente nervosas - percorrendo suas costas, tudo alisando e suas mãos quiseram tatear os loiros cabelos ondulados ...dois corpos num só, a névoa protetora densa, deus do céu que é isso, meu amor. A porta da sala se abre e deixa entrar uma claridade, desfaz-se a névoa, interrompe o idílio, entra Maurício que fala em voz baixa: Natalino o maestro está chamando; porca la miséria, maestro de merda e Didinha sentiu-se livre do abraço de tamanduá, abriu os olhos, mas ainda cega, tudo escuro, e Didinha, obediente, sentiu-se guiada pelas mãos de Natalino até Moacir e Cidona.
Moacir e Cidona, acomodados em duas aveludadas cadeiras da frisa, a orquestra embaixo, os músicos afinando seus instrumentos, o spalla dá-se por satisfeito com a afinação senta-se e todos ficam a espera do maestro; Moacir toma as mãos de Cidona entre as suas, o contraste da enorme mão branca com a pequena e delicada mão negra, e os dois se olham, Moacir vai apresentando a Cidona os instrumentos da orquestra: olha o fagote - a tuba e o trompete estes ela já conhecia, já tinha visto na banda da vila, que tocava no coreto onde iriam cantar Norma - o baixo, as violas e os violinos, a suave clarineta, tudo tão lindo e entra o maestro, roupas coloridas, alegre, enérgico, batuta á mão direita, cumprimenta os músicos e os músicos, obedientes, atentos, iniciam o prólogo da Cavalaria e o coração de Cidona se enche de estranha emoção, ameaça subir goela acima, Moacir sente suas mãos trêmulas, lança um doce olhar procurando acalmá-la, tanta emoção, e foi a vez então do seu coração subir garganta acima, taquicardias amorosas, ele viu o sangue subir pescoço acima, avermelhar o rosto branco e dos olhos de Cidona – uma princesa negra – vertem lágrimas grossas, Moacir se apressa em pegar o lenço e o maestro pede que a partir daquele momento todos deveriam sair do teatro, teria que conversar com os músicos e Maurício, gerente da orquestra, abre a porta das frisas e saem: Cidona protegida pelas de mãos de Moacir dá a mão a Didinha até a saída, e lá fora do teatro, na rua, o sol ofusca as vistas, apaga-se os sons dos instrumentos e se ouve o roncar do motor de um carro que buzina pedindo passagem ao bonde, lerdo, que recolhe passageiros.
Caminham, os três, por uns cem metros até o carro; Moacir, cordial abre as portas e ajuda as mulheres a se acomodar e pega a manivela para dar partida: gira forte a manivela, ouve-se o tom, tom, rom, rom do motor ir se firmando até tornar-se um brrrrrrr contínuo que acorda as duas passageiras que se olham e pensam, que logo, logo poderiam, no quarto, contar uma para a outra o acontecido e provar, ter certeza, que não tinham sonhado, que tudo havia mesmo ocorrido: felicidade por demais de grande e o Ford 29 parte macio...
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