A noite chegou!
E era apreciada do alpendre da casa dos pais de Moacir! Todos confortavelmente sentados em poltronas de vime, formando uma roda e no meio da roda uma pequena mesa com licor de jabuticaba e um bule de café fumegante; uma brisa úmida balançava as folhas do buriti - folhas enormes, parecendo leques de abanar o rosto – que ressoavam nervosas, pedindo descanso, queriam dormir...Dona Amélia - com seus profundos olhos azuis e sedosos cabelos brancos - convidou Cidona e Didinha para entrar: vamos deixar os homens aqui fora, e ágil, silenciosa, foi mostrando o quarto onde cada uma dormiria: estes dois aqui são os melhores, pertos do banheiro, eu sei das necessidades noturnas das mulheres e é só atravessar a sala, vou deixar a luz no banheiro acesa; nos quartos Cidona se encantava com a “pera” na cabeceira da cama, podia apagar e acender a luz sem se levantar, coisa boa de conforto, pensava e Didinha ria baixinho ao ver os lençóis brancos, alvos e o colchão macio, imaginou seu corpo afundado ali, quentinho, queria dormir.
Na rua não mais barulho de carro, a brisa havia acalmado as folhas do buriti e só se ouvia - aqui e ali - o cri! cri! de um grilo, pensava que aqui em São Paulo não tinha grilo, que era coisa da roça, pensou Cidona e também deve ter pensado Didinha, as duas em quartos separados, gêmeos, vontade de ficar conversando só as duas, sem ninguém por perto, falar das novidades, mas sabiam que não era hora para isso, outras horas teriam para falar e desfalar de tantas novidades de São Paulo, as pessoas já recolhidas ao silêncio dos quartos, qualquer barulho incomodaria, e se der vontade de ir ao banheiro? tem que atravessar toda a sala, será que os pés não vão fazer ranger - crec crec - as tábuas do assoalho? se carecer de ir ao banheiro mijar vou descalça, abro a porta bem devagar para não fazer barulho...
Às dez horas, São Paulo, silenciosamente dormia.
Dia seguinte de muitas novidades!
As duas -- cada uma em seu quarto - prontas, vestidas, penteadas aguardando um barulho qualquer na sala anunciando que os hospedeiros estavam acordados, coisa mais feia e deseducada é acordar e chegar à mesa antes dos anfitriões, o estômago de Didinha roncava de fome, Cidona refletia o rosto negro no espelho e se achava bonita: dona Amélia estava sendo tão gentil, pensava, nem parece tão rica. E foi então que pisadas no assoalho quebraram o silêncio, rangidos no assoalho e os passos decididos estancam frente à mesa posta para o café da manhã: era o Moacir, banhado, perfumado, brilhantina segurando os cabelos loiros, terno de linho branco, gravata azul, alegre, o perfume do café e do pão de queijo misturando com o perfume que exalava de seu corpo banhado, limpo e ele se vê cheio de felicidade e canta:
“Bebamos nos alegres cálices
em que a beleza floresce,
e a fugitiva hora
embriagar-se-á com volúpia.
Bebamos com o doce frêmito
que o amor provoca,
pois que esses olhos ao coração
diretos vão”
E nem bem termina de cantarolar a ária de Alfredo Germont, em La Traviata, se põe a gritar: acordem, acordem todos: é uma ordem do faminto Alfredo! Obedientes dos quartos saem as duas - Didinha e Cidona – e do corredor se houve os passos firmes de Dona Amélia e seu marido e a sala se inundou com uma sinfonia de bons dias: Bom dia! Muito bom dia! Dormiu bem? Que o dia seja belo! Sim, será! Bom dia, um belo dia...
A mesa da sala coberta por uma toalha branca de linho, o café da manha servido por duas empregadas com roupas especiais e turbantes na cabeça, sorridentes, café com leite, pão de queijo e, estranho para Cidona e Didinha, frutas: laranjas, melancia e abacaxi, será que não vai fazer mal chupar fruta tão logo cedo, mas comeram por receio de fazer feio; Moacir falava e falava – eufórico – contou dos planos do dia: ainda naquela manha iriam ao Teatro Municipal recolher os ingressos para a ópera que iriam assistir e lá também se encontrariam com Natalino, cenógrafo e figurinista italiano, que havia deixado Milão para trabalhar em São Paulo; explicou: era ele – Natalino – o responsável por criar, desenhar os cenários e as roupas das cantoras e cantores para as encenações e Didinha estranhou: homem costureiro?
Na mesa Moacir sentou-se ao lado de Cidona e, vez ou outra, sob a toalha de linho branco, segurava sua mão, alisava, acariciava e Cidona , por ser negra não conseguia corar o rosto de vermelho, mas tinha os olhos aflitos, seu pai havia recomendado: nada de intimidades na casa dos outros, minha filha! e ela até querendo acatar a recomendação do pai e soltar a sua mão negra e fina da branca e grande mão de Moacir, mas estava tão bom e esperava – mãos unidas - um tempinho a mais só, e assim continuava a sentir o afeto que aquela grande branca mão lhe passava e as ondas que dela vinham e inundavam seu corpo; Dona Amélia cuidadosa: mais café? obrigado, para mim basta! respondeu Didinha, achando que “para mim basta” fosse a mais elegante das respostas; pão de queijo cheiroso, crocante, o miolo derretendo, fazendo ligas - como puxa - com o queijo misturado com polvilho.
Logo depois foram, no Ford de Moacir, para o Municipal e lá cada uma se encantava com as diferentes belezas do Teatro: os dourados nas frisas – será que é ouro mesmo, de verdade? cochichou Didinha; e Cidona colocou a mão frente à boca para responder baixinho: deve ser, viu só que todas as cadeiras são cobertas de veludo vermelho, coisa mesmo de rico, quanta beleza; aquela imensidão de novidades deixando-as estáticas, mudas, os olhos não acreditando no que via, doces taquicardias acelerando os corações: o sem fim de tanta beleza, as escadas em curva, de mármore, e Moacir – papel de guia - entusiasmado, cumprimentava de longe um com as mãos, dizia muito bom dia para outro e abraçou uma loira cantora e apresenta Cidona: essa é minha namorada, que quase desmaia, assustada com o “minha namorada”, deus do céu em que mundo eu estou a viver.
Para ir ao subsolo ver as roupas e encontrar Natalino desceram uma escada escura, passaram por uma porta até encontrar uma sala ampla, um pouco escura, cheirando falta de claridade, um pouco de mofo: como fantasmas a repleta de corredores com vestidos coloridos armados em cabides de madeira, roupas masculinas, perucas brancas com cabelos cacheados outras negras com longas tranças, prateleiras com espadas, corpetes, saias das mais diferentes cores, enfeitadas com belas pedras e Didinha se entusiasmando com a beleza dos bordados, com o capricho na confecção, com as cores – melhor e mais alegre bordar estas roupas coloridas – passeava pelos corredores, entre tantas roupas, querendo sentir se o perfume dos cantores e cantoras permanecia nas roupas e Cidona se vendo vestida com um vestido lindo, vermelho, bordado com linhas prateadas, formando flores...
Natalino, o italiano responsável pela criação de todas aquelas roupas, entrou mas o entusiasmo das duas e o encantamento de Moacir impediu que os mesmos percebessem sua presença silenciosa: vou tossir baixinho para não assustá-los...Não, melhor não, resolveu que o melhor era aproveitar o mágico momento - sua presença desapercebida – e fica a olhar os três, e quando seus olhos pousaram em Didinha assustou-se com tanta beleza e pensou esta mulher tem que ser minha, eu a quero e o amigo Moacir, que conheceu em Milão e ele considerava um dos responsáveis para sua vinda para o Brasil teria que perdoá-lo, pois ele lutaria com todas as suas forças para ter aquela mulher: lembra a Sofia Loren em sua beleza meio selvagem, seios grandes, ancas generosas, os olhos menores, mais oblíquos, lindos, pernas fortes sustentando longas e redondas coxas, deus do céu, que mulher; sempre sonhava com a beleza de Sofia Loren, achava a Gina Lolobrígida e sua cinturinha de pilão linda, maravilhosa, mas não despertava nele o afogueamento que sentia agora ao ver Didinha que lhe lembrava Sofia Loren. Didinha, talvez tocada pelas elétricas ondas que os olhos de Natalino emitiam, foi a primeira a perceber sua presença do italiano e o viu como um homem baixo, magro, loiros cabelos ondulados, o pequeno bigode enfeitando o rosto quadrado, um rosto claro com minúsculas veias azuis bordando as bochechas vermelhas, olhos verdes, mãos pequenas, braços e pernas curtas, o longo tronco magro, costelas à mostra mesmo debaixo da camisa de algodão: bom dia, sou o Natalino; e todos acordaram do encantamento em que estavam a viver e Moacir tomou as iniciativas: amigo Natalino, como vai o meu bom italiano? Essa é Cidona, minha namorada e aqui sua amiga Didinha, que bordará as nossas roupas para a apresentação de Norma no coreto da cidade e Natalino ao saber que Didinha não era a amada de seu amigo Moacir sorriu forte, gargalhou e ficou a misturar bons dias com bondiornos, os seus olhos verdes, teimosos, não via vestidos, se esqueceu do amigo Moacir e de sua negra namorada – ainda bem, seria muito ruim perder sua amizade, mas que fazer: amigos amigos, amor à parte, esta mulher será minha...
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