terça-feira, 29 de outubro de 2013

AS TRÊS MARIAS–VIII–A VIAGEM!

2009 Caminho da fé 102
Moacir, naquela manhã ensolarada de início de setembro, ajeitava que ajeitava, no bagageiro do Ford 38, as suas malas – dele e da Fátima - e as duas trouxas de roupas, uma da Didinha e a outra da Cidona – estas duas caprichosamente enroladas em lençóis de algodão, até encontrar um cantinho para o latão com gasolina extra; longa seria a viagem até São Paulo, mais de oito horas, muita poeira, estrada asfaltada apenas de Campinas a São Paulo, agora um pouco antes já com máquinas e gentes a forrar o chão de piche e pedregulhos, enegrecendo a Anhanguera, almoçar em um posto a beira da estrada, comer galeto no espeto, beber guaraná gelado e tempo por demais para pensar: sempre que guiava o Ford o pensamento voava longe, ritmado pelo barulho do motor, as árvores e as vacas passando depressa pelo vidro fechado do carro. Estava bem, sentia-se como um adolescente, o Moacir: na verdade não sabia se se sentia como um adolescente: nessa fase de sua vida era considerado uma exceção: todo correto, não fumava escondido, poucas espinhas no rosto e ao contrário do que seus amigos comentavam na escola, mesmo dormindo com as mãos no ventre, acordava com o pijama limpo, sem gosma...o que será? e foi então, que agora, velho, aos quarenta, qual um adolescente, andava a acordar com o pijama sujo: oníricos sonhos noturnos, beijos e mãos e corpos se tocando: Cidona, seu amor, sim, Cidona e não a sacerdotisa Norma: era com Cidona que sonhava: seus seios pequenos - ovais e perfumadas mexericas - suas longas pernas, sua pele negra, o ventre ossudo, os lábios grossos e grandes...era Cidona o seu amor, concluía nas noites insones, e deu de gostar de ficar insone, com tempo para pensar e sentir o que antes não havia sentido. Até então a música que tocava sua vida era uma música matemática, engenhosamente bonita, bachiana, sem o recheio emocional, humano de Brahms era o que lhe dizia o professor de filosofia e amigo desde São Paulo, amante de ópera como ele, seu confidente: “aproveite Bach; se Brahms não lhe toca: cultive a alma, o espírito” e ele cresceu e amadureceu cultivando a alma e o espírito com livros e mais livros, óperas, amigos, família e sem sentir o gosto da paixão, da deliciosa loucura que passava agora a viver.
O Ford deixava uma nuvem de poeira, sacolejando na estrada de chão: tudo ficando para trás: as montanhas, os pastos, brancas casas com currais, pequenas vilas e cidades...no banco da frente ele, Moacir cuidadoso com a direção do Ford e Fátima: de guarda-pó, óculos de sol, lenço na cabeça para proteger os cabelos da poeira, empertigada, as costas apenas tocando o encosto do banco; viajava feliz por ainda naquele dia, à noite, veria e abraçaria seu filho, falaria com ele, ouviria sua voz a dizer: virei anarquista, mãe! estudante de direito, o livro do código penal brasileiro sobre o sofá-cama: sou anarquista, mãe! Lindo o meu filho, a cara do pai: olhos puxados, cabelos negros, esguio, corpo atlético, lábios e olhos da mãe, um belo homem.
No banco de trás Didinha e Cidona: as duas excitadas com a novidade de ter, pela primeira vez na vida, atravessado o rio, a ponte enorme, de ferro, bonita; o rio lá embaixo, espumante na correnteza, pedras negras, e as duas caladas, timidamente envergonhadas se viam – pela primeira vez na vida – a transpor o rio, a enxergar o depois das montanhas que cercavam a pequena vila onde viviam, pouco se incomodando, as duas, com a poeira, com o vento que entrava pelo vidro aberto...novos ares, novas terras; chegariam a São Paulo dos arranha-céus, da Mesbla – uma loja onde se encontrava desde uma agulha até um navio, se fosse verdade o que ouviam no reclame da Rádio Nacional, antes da novela O Direito de Nascer, deve ser enorme essa loja, deus do céu, será que existe mesmo? - , iriam – promessa do Moacir – ver o relógio do Mosteiro de São Bento badalando as doze pancadas do meio dia, e poderiam, com sorte, encontrar com os moços da vila que para lá tinham partido, na busca de empregos e trabalhos nas indústrias; será que em São Paulo tem uma praça para se fazer o “footing” pois se tem será lá, com certeza, que vão encontrar o Milton, talvez o José Antônio, este um congregado mariano, que foi para a capital em busca de trabalho: descascava batatas na cozinha de uma fábrica, homem forte descascando batatas, trabalho de mulher; mas era assim agora: a vila se acostumando a perder seus homens para a cidade grande, será que voltariam? nas festas das quermesses de São João ou na missa do galo, no natal, vinham e diziam que voltariam para casar e que retornariam de vez, para sempre, depois de velhos e ai sim – aposentados, com tempo de sobra - pescariam dourados no rio, gambevas no córrego do Seu Geraldo, caçariam pacas nos brejos e levariam os netos para conhecer as furnas, as grutas. Era a terra de agora que não segurava mais seus homens, ou eram os homens que não se sentiam mais presos, enraizados em sua terra mãe? mudanças, muitas, deus do céu!
No posto de gasolina, depois de Pirassununga, Moacir parou o carro: as mulheres foram para os banheiros cumprir suas necessidades, lavaram os rostos empoeirados, beberam água na torneira e Fátima puxou prosa: estão gostando da viagem?, sim, estamos, muito, responderam as duas ao mesmo tempo; muito pó; sim, o carro corre muito; estão com fome? não senhora, fome não; eu estou morrendo de fome, sou capaz de comer um boi sozinha; e todas riram. Foram para o restaurante do posto: mesas com toalhas xadrez, cheiro de churrasco atiçando a fome, moscas das negras zunindo na orelha e as duas pensativas, será que saberemos como portar na mesa, cortar a carne segurando a faca com a mão esquerda, assim que é o correto; estou sim com muita fome, pensava quieta, consigo mesma Didinha e Cidona se alegrou toda quando viu Moacir sorridente, educado, oferecendo o lugar, puxando as cadeiras para as mulheres se sentar, quanta gentileza, parece um anjo de tão belo, loiro, olhos azuis, deus do céu, que vida mais maneira de boa.
Comeram!
Mais estrada e a poeira dos caminhões e carros que vinham de São Paulo obrigavam a fechar o vidro do carro, ficava quente, passava a nuvem de poeira abriam de novo e ai dava para ver melhor os pequenos córregos, casas com currais na porta, gente morando ali, será quem são? Vez ou outra Didinha e Cidona, tomadas de coragem, se olhavam e riam felizes com a peraltice de ir conhecer a cidade grande e se esqueciam da poeira, da sede, do sol e o Ford sacolejava que sacolejava, se inclinava nas curvas, Moacir e Fátima falavam e não dava para escutar direito no banco de trás, será o que conversam? mas estão sorrindo e se estão sorrindo é porque está tudo bem, não estão emburrados, falam do que, os dois? Cidona fechou os olhos e sonolenta esqueceu de pensar: o corpo obedecendo o ritmo do Ford: o futuro a deus pertence e lembrou de seu pai a dizer: não tenha dor de barriga antes de experimentar a melancia, e sentiu saudades do pai, da mãe, só agora, com mais de trinta anos, seria a primeira vez que dormiria fora de casa, e ainda longe, mas nada de dor de barriga antes de experimentar a melancia; e Didinha pensava nos bordados que faria em São Paulo, acordada, olhos bem abertos, sem sono, curiosa, esperando chegar a cidade grande.
A cidade de São Paulo!
Todas as ruas asfaltadas, negras, calçadas e casas e lojas, tudo emendado, gentes andando, carros buzinando, quanto carro e nunca terminava a cidade, será que é tão grande como o mar, que não se enxerga do outro lado - tão grande – até que uma hora o carro foi parando, Moacir colocou a cabeça fora da janela, medindo a calçada, manobrando com cuidado . Parou o carro rente a guia: uma casa que era um palacete, nunca tinham visto igual, grades de ferro cercando o jardim, no portão uma senhora de cabelos brancos, olhos infinitamente azuis e bondosos, vestido rosa claro, sorriso de orelha a orelha: Moacir meu filho, fizeram boa viagem? estão cansados, com certeza! Fátima, filha querida, me abrace, saudades...e veio vindo da sala, atravessando o jardim florido, um elegante senhor, de terno, gravata, chapéu, alto que abraça o filho e junto com o senhor um jovem bonito, alto, cabelos negros que sem mais falar envolve Fátima em um apertado abraço, ergue-a do chão, forte, a mãe no ar a gritar, fingindo aflição, mas gostando por demais: pare filho de deus, me ponha no chão, está doido!
Uma festa na calçada!
Didinha e Cidona saem do carro, desconfiadas, tímidas: para fazer fugir a vergonha e a timidez – o que estavam a fazer ali, deus do céu – se puseram a ajudar Moacir no trabalho de retirar as malas, suas trouxas e são interrompidas por Dona Amélia: deixe isso de lado, vamos entrar, Moacir me diga o nome de nossas visitas e Moacir: esta é Didinha, bordadeira das melhores e amiga de Cidona, esta a cantora da qual lhe falei. Dona Amélia e seus olhos azuis, seus pequenos e gordos braços, mãozinhas pequenas, unhas feitas – vermelhas -, abraça carinhosamente Cidona e Didinha, toma-as pelas mãos, orientando-as casa a dentro: vamos para o quarto que ajeitei para vocês, espero que gostem...e Fátima gritava: até amanhã Dona Amélia: amanha almoço aqui com vocês, quero ver meus pais.
Até amanhã!
Até amanhã!

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