quinta-feira, 24 de outubro de 2013

AS TRÊS MARIAS–VII–SERÁ QUE DEUS SE ESQUECEU DE MIM! MUDANÇAS E NORMA, A DEUSA NEGRA!

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Didinha anda cada dia mais triste, mais desolada, desacorçoada; em uma horinha de um pouco mais de ousadia por dentro decidiu criar coragem de pensar: será que deus, com tantas cidades e gentes grandes para olhar, se esqueceu da gente aqui nesta vila tão pequena, perdida no meio da serra, nos sem fim do cerrado e será que quando dispõe de um tempinho e dá uma olhadela de virada de olho aqui nesta vila tão pequena olha primeiro para os maiores, deixando seus filhos pequenos ao deus dará, sozinhos em sua solidão, em sua desesperança de viver; pecado pensar assim, deus ama todos seus filhos, ele é pai e você, Didinha, tem que amenizar sua condição de viúva, se vestir com roupas mais alegres, a cor de fora das roupas vai aquecer o de dentro, foi o que escutou de Frei João no confessionário, três pais nossos de penitência, o corpo do senhor engolido, comungado e sua alma a continuar desaquecida, fria, sem alegrias, deus do céu, isso é vida?
Pitoco com seus olhinhos negros, brilhantes enxergava o desacorçoo da dona e abanava o rabinho depressa, latia baixo, lambia os dedos do pé de Didinha, encontrou uma frieira boa de se lamber, e enquanto pensava que foram os cachorros que lamberam e curaram, com suas línguas, as chagas de são Lázaro e eu quero sarar Didinha, quero ouvir seu cantar baixinho, ver seus dentes no sorriso. Nego, na gaiola um pouco suja por descuido da dona reclama da água suja, sem trocar de dois dias e da falta que sentia do mingauzinhho de fubá na latinha...o jeito é cantar, trinar os bicos e as asas: sei não, a vida tem jeito?
Os bordados para o bispado: toalhas, batinas, casulas, túnicas, estolas, dalmáticas, toalhas frontais de altar: ponto cruz, recheado, ponto atrás, repolego, laçada dupla, ziguezague, ponto mosca e muito mais em cores sóbrias apesar do intenso uso do vermelho – cor do sangue de cristo -, calo no dedo indicador de tanto bordar, o tempo passa enquanto bordo, não tenho fome de comida e de outras que andam a mordiscar e por a ferver meu corpo, ainda bem que chegaram mais encomendas agora do bispado de Guaxupé, os bordados de Didinha ganhando fama.
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Maria de Fátima, naquela noite de quinta-feira, esperou pelo seu amor na sala, vestida e não como costumeiramente: deitada no quarto de dormir, cama de casal, lençóis brancos de algodão, peignoir de renda, seios à mostra. O que foi? estranhou Vicente, ávido por aquele corpo conhecido, amado, inesgotável de sonhos e surpresas nas noites de amor. O que foi? não se sente bem? está naqueles dias? Fátima sorriu: não, nada de mais, estou bem meu querido, mas tenho que conversar, falar, pressinto mudanças. Vicente abraçou a amante pelas costas, beijou sua nuca, acarinhou os cabelos negros e as mãos desceram pelos seios ainda firmes, redondos...Fale! ; assim não consigo, me arrepia! disse dengosamente sorrindo. Beijaram-se: mas um beijo menos fogoso, as línguas por demais respeitando os escuros da caverna alheia: melhor era sentar e falar.
Moacir está apaixonando, Vicente; nunca imaginaria isso, apaixonado por quem? sempre o vi como um anormal homem assexuado; por Cidona, a negra cantora, para ele uma princesa africana e devo te dizer que estou feliz com isso, muito feliz por imaginar Moacir com uma vida mais inteira, mais humana, menos cerebral; como descobriu, foi ele que te falou? sim: ele me disse que tudo começou nos ensaios para a apresentação da ópera no coreto, quando passou a sentir por Cidona uma irresistível atração, sentir o que nunca sentido por mulher nem homem nenhum, algo, segundo ele ancestral, animal, mas me parece feliz aos quarenta e tantos anos o amigo Moacir ao descobrir seu corpo reagindo a um corpo feminino de maneira animal; bem e daí? vão se casar? e nesse caso, em os dois se casando, ela vai morar aqui com vocês? ainda não falamos sobre isso, mas quero com todas as minhas forças contribuir para a felicidade de Moacir e caso seja necessário - se o futuro exigir – consentir com a anulação do nosso casamento, jamais consumado, uma vida de dois irmãos, mas isso ainda não foi conversado e o Moacir está por demais ansioso com o que acontece quando se vê a sós com Cidona nos ensaios para a apresentação da ópera Norma no coreto, agora em novembro, para ele tão importante como se fosse uma apresentação no Scalla de Milão!
E então, naquela noite de quinta feira não se ouviram, no quarto, fortes gemidos, não se viram corpos nus roçando na cama, os lençóis amassados, não se estalaram lábios com longos beijos e os corpos não experimentaram a doce sensação de ficar docemente inerte, em coma, cansado do longo exercício do amor.
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Moacir canta, comovido:
“A tua fogueira, Norma, é a minha;
mais santo
começa nela o eterno amor!”
E Cidona:
“Pai, adeus!”
No alto falante da a vitrola a voz dos druidas, das sacerdotisas, dos guerreiros e dos bardos em coro:
“...e purifique o templo
Maldita sejas na hora da tua morte!”
Quero e preciso te beijar, Cidona, meu amor! e Moacir toma a sua deusa negra nos braços e beija-a, alucinado, sensual, jamais havia pensado em como um beijo transforma uma pessoa, sentiu em todo o corpo sensações nunca antes sequer sonhadas e a sua deusa negra oferecendo a boca, os grandes olhos cerrados, seu frágil e débil corpo entregue aos braços de Moacir ou do Pollione?; ambos sem saber, ela não se sabendo, naquela hora de amor se era Cidona ou Norma: mas sabia que morria, que estava a ir para a fogueira com o amante Pollione,  pai dos seus filhos e Moacir não se sabia se travestido de Pollione ou um novo Moacir que nascia nos fogos da fogueira sacrificial...
Outro longo beijo, os dois se sentindo despudoradamente adolescentes, encantados com o que ocorria em seus corpos, ele com o pênis ereto, firme, avolumando as calças de linho e ela sentindo úmida sua calcinha e seus seios pequenos sendo tomados por concêntricas elétricas ondas, surtos de vertigem, e os dois corpos – juntos, à beira da fogueira do sacrifício – em êxtase a exigir e a oferecer ternura, calor, vida!
Moacir interrompeu o abraço, tomou as mãos de Cidona carinhosamente e ajeitou-a em uma cadeira e se pôs a falar:
Estou fora de mim: quero gritar, me sinto doido, louco, preciso falar senão saio a gritar pelas ruas, berrando para a lua, para as estrelas, isso é felicidade; Cidona, minha deusa negra, urge te contar: semana que vem temos que ir para São Paulo, ver as nossas vestes para a apresentação, já tomei as providências necessárias, o figurinista do Teatro Municipal, Natalino, orientará nossas escolhas, e Fátima irá conosco...; Cidona, sentada na cadeira, silenciosa, ereta, costas coladas ao espaldar, sem saber se o que ocorria era sonho, interrompe: Moacir, pelo amor de Deus, não posso, o que irão falar de mim? viajar para São Paulo, com um homem casado? não, não posso!; Fátima e Didinha irão conosco: falei com Natalino por telefone e resolvemos que Didinha bordará nossas fantasias, nossas vestes para a apresentação; você falou com ela, Moacir?; não, mas Fátima me disse que poderá falar ou você, enfim o que achar melhor, iremos no domingo, te amo, te quero; te amo também Moacir, que loucura a nossa, deus do céu, vida virada aos avessos!
Mas foi mesmo Cidona que falou com Didinha. Vou sim, mas tenho que levar umas toalhas do bispo de Guaxupé para terminar o bordado; leve amiga, eu te ajudo!; nada disso Cidona: enquanto vocês ficam por lá, a passeios e nos bem-bons da cidade enorme, cheia de prédios e arranha-céus eu bordo as toalhas...minha vida tem que continuar! obrigada Didinha, você indo meus pais ficarão mais sossegados, a cidade vai falar menos...deus do céu, tanta coisa; e Didinha falou baixinho, comovida: agradece a deus e reza Cidona: vida é isso e não a que estamos acostumadas a levar.

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