terça-feira, 8 de outubro de 2013

AS TRÊS MARIAS - VI - A CIGANA LÊ A MÃO DE DIDINHA, O CANTO DE DULCAMARA E A ÓPERA NO CORETO!

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Em um dia qualquer, de um setembro de poucas chuvas, vindo de onde ninguém sabe, do nada, talvez, uma tribo de ciganos que foi logo montando acampamento no pasto logo abaixo do muro do cemitério: sem a ninguém pedir ordem ou autorização ergueram uma enorme barraca de lona velha, parecendo circo, de onde entravam e saiam as mulheres com saias coloridas, braços repletos de braceletes de lata, pesados brincos nas orelhas, saias de cores fortes: verdes, vermelhas, blusas brancas, cabelos negros repartidos ao meio e algumas com lenços coloridos encobrindo a cabeça e os longos cabelos caindo nas costas, abaixo do lenço, e também saiam e entravam na enorme barraca de lona homens em roupas quase normais, e nas ruas da cidade ficavam oferecendo pequenos e grandes tachos de cobre para fazer doce de cidra ou de leite ou de goiaba; na cidade o que se dizia era que eles eram ladrões de cavalos e de mulas, e que também roubavam crianças e também entravam e saiam da enorme barraca de lona desbotada, surrada, as crianças ciganas: olhos negros ou verdes, enormes, cabelos lisos, caca escorrendo pelo nariz abaixo e a língua vermelha, esperta lambendo a caca e enfiando boca a dentro, pelados, fazendo as necessidades onde tinham vontade e os cachorros comendo as porcarias, limpando o chão, parecendo urubus na carniça.

E a cidade – carente de novidade -: as mães brigavam e ameaçavam os filhos com castigos e varadas de marmelo se teimassem em desobedecer e fossem ver o acampamento: não vai não, já disse e repito: perigosos, roubam crianças; e os homens, quase todos, falavam da esperteza dos ciganos em pegar uma mula velha e manca e, magicamente, transformá-la em uma mula nova de pelos sedosos e marcha picada sem mancar e que semana depois de vendida, por preço que o comprador imaginava ser um achado, retornava ao desajeito mancar com a pata dianteira, a trotear e não mais andar na marcha picada e, pior dos piores, voltava ao maldito costume de empacar, pouco se ligando pela urgência do cavaleiro em chegar logo na venda, ainda antes do escuro do anoitecer, medo de assombrações que apareciam na matinha e da mula sem cabeça que soltava fogo pela boca, que vivia a rondar por perto da serra do baguaçu.

Novidade na cidade, os ciganos!

Didinha bordava e bordava as encomendas do bispo: ponto cruz, ponto cheio, ponto atrás: o bastidor de bambu, que esticava o tecido para facilitar o fino trabalho, já brilhava pelo uso, o suor das mãos marcando suas bordas e o dedo indicador da mão direita com um calo da agulha... e o bom é que Didinha de tudo se esquecia nos bordados, não pensava em pecados com o corpo, e até recebeu uns dinheiros do bispo – adiantado – e com ele deu para acertar as compras da caderneta do empório do seu José, e o velho, lápis grosso pendurado na orelha, contente com as notas de dinheiro, mostrou a caixa de bacalhau e Didinha comprou uma peça: dourado, o sal parecendo estrelinhas brilhantes, o rabo escuro: extravagância pura, deus do céu, mas a vontade sobrepujou a razão e Didinha também comprou batata e uma réstia de cebola e um litro do azeite verde de azeitona vendido a granel e foi para casa contente: vou convidar Cidona para almoçar comigo no domingo e ela vem para cá tão logo acabe a missa das nove, depois de cantar no coro da missa dos ricos e eu vou confessar e comungar na missa das seis: preciso de contar para o padre os pecados dos meus maus pensamentos, dos banhos mais demorados e as mãos me desobedecendo, roçando levemente partes intocadas e os arrepios e ondas a tomar conta do corpo, as urgências de sair logo do banho, enfiar rápido as roupas negras, fugir do pecado, das tentações: é assim a vida de viúva, deus do céu, que vida!

Pitoco avançou latindo grave e alto, dentes à mostra e o cotó de rabo fixo, sem tremer feito ventilador, sinal de que estava mesmo bravo e que ia morder as canelas e os calcanhares descalços da ciganinha que ele via do outro lado do portão: cabelos negros, pele morena, lábios vermelhos de batom, sobrancelhas cerradas, grossas, margeando os olhos negros, brilhantes, dentes brancos com uma cárie negra parecendo uma pinta no dentão da frente, sorriso aberto, peitinhos duros querendo sair da blusa de renda amarela, a saia de cima com a mesma cor dos tachos de bronze, e de que cor seriam as saias que usava por baixo daquela, porque o que as mulheres da cidade diziam era que as ciganas usavam um monte de saias, três ou quatro, uma em cima da outra e que tinham o costume de não usar calcinha e quando tinham necessidades simplesmente se abaixavam, protegidas pelo rodado das saias e faziam xixi à vista de todos, mas ninguém via nada a não ser a pocinha d’água que ali ficava depois que erguiam o corpo e ajeitavam as saias, alisando o tecido na bunda, puxando as pontas na frente, e continuavam seu caminho; as mulheres da cidade se enciumavam muito, medo dos maridos se enrabicharem com elas, cheias de doenças nas partes; e a ciganinha , sem medo do pitoco, batia palma com as mãozinhas tão pequenas, e Didinha largou o bordado e os pensamentos: pra dentro pitoco, sai! chutou pitoco que esganiçou caimmmmm! caimmmmm! e fugiu para seu caixote, pensando com ele mesmo que na próxima vez que chegasse inimigos na casa que iria deixar entrar e pronto, que andava a apanhar atoa, feito escravo negro e o nego - pássaro preto - que não tinha sido castigado com chute nem com ameaça, calou seu bico quieto na gaiola: melhor calar, pensou e fechou os olhinhos e dormiu.

Fala menina, o que quer? e a ciganinha com voz de soprano: leio a mão, adivinho o futuro nas linhas; quero não, sou católica; não é pecado, não: só leio as verdades do futuro, a senhora oferece o que quiser, não cobro nada; e Didinha sentiu o coração amolecer: os olhinhos espertos da ciganinha, o desvendar o futuro que não conhecia, será que não é mesmo pecado? entre, disse e a cigana – Armenita - ajeitou os cabelos e com passinhos firmes entrou e tomou a mão direita de Didinha, olhou, reolhou e com uma voz doce leu o que via: a linha da vida é longa, saúde muita, a senhora vai viver muito; e Didinha pensava se aquilo seria bom ou ruim, pois se aquilo que vivia era a vida não concluía se queria viver muito ou pouco; e a cigana Armenita leu que a linha do dinheiro estava a fechar, faltaria talvez, mas sobrava um fiozinho de linha, perto da linha do amor, o suficiente para as compras e para uma ou outra esmola; e Didinha: e tem alguma coisa de amor? e a cigana, cerrou os olhos, atenta e correu o dedinho fino em uma linha e disse que era a linha do amor e que uma névoa escura dificultava a leitura e para ganhar tempo e desanuviar a névoa que encobria a linha do amor : ponha na outra mão uma moedinha e continua baixinho: a senhora madame está interessada em alguém ou tem visto algum olhar de homem mais brilhante? e Didinha: não, não tenho; e a ciganinha resolveu mudar de tema e disse: vamos esperar para ver se a névoa desanuvia e leu a linha das amizades, dos medos...mas Didinha queria saber dos amores: veja ai se a névoa já se foi, se está claro, já pus uma moedinha de réis em sua mão; está clareando e vejo um senhor com bengalas em sua vida; e Didinha entendeu que só podia ser o Doutor Olímpio, o agrimensor que mediu as divisas da fazenda do seu pai para realizar o inventário e dos conselhos de seu irmão: o velho está interessado em você Didinha, o homem está bem de vida, viúvo e Didinha não se interessou pelo agrimensor que não fazia percorrer em seu corpo ondas mesmo quando ele, mais ousado, na frente do irmão beijou sua mão ao cumprimentar; e falou para a ciganinha: pule adiante na linha: fora o velho tem mais alguém?; e a ciganinha, viu a ansiedade de Didinha por um amor, e pensou em falsear a leitura da mão, em dizer que via um homem moreno, forte, bonito e com dinheiro a cortejar Didinha, mas que para ler mais precisava de mais uma moeda para limpar as névoas e Didinha se enervou com a falta de amor e de moedas e com o pecado de em vez de pedir a Deus e a Santo Antônio um amor estava ali, meio abobalhada, com a mão estendida a uma cigana pecadora, tão nova e não mais virgem e resolvida retirou sua mão catou no cofrinho de lata a menor moeda de réis, que não dava nem para sorvete, e mandou embora de sua casa a cigana Armenita, ameaçando chamar o soldado Dorival e estumar o pitoco: vai embora cigana dos infernos!

E a cigana se foi e ficou Didinha a olhar sua mão direita: o grande M da vida e da morte em linhas bem traçadas, vida longa, com saúde, e a linha pequena do amor, que saia da linha do meio que formava o M da vida e da morte, pequena, sem conseguir se juntar a outra linha da vida: desamor, sem amor vale a vida ser vivida? e olhava a mão e chorava e o pitoco chegou aos seus pés e ela primeiro chutou – cachorro do inferno – e pitoco latiu caimmmm e fugiu par seu caixote e Didinha foi atrás e catou o cachorrinho no colo, afagou e o nego cantou na gaiola e pitoco, com os olhinhos fechados, agradecia aos carinhos que sua dona distribuía em seu corpinho, não podia ver os olhos chorosos de Didinha, suas lágrimas...

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Sabe Fátima, penso que estes bolinhos de chuva devem ser muito melhor que as “madalenas” do Proust: doces, o açúcar caindo no colo, a massa derretendo no céu da boca, o quente da canela combinando com o chá de erva-cidreira: acho bom demais, não acha?; Gosto muito também; e o melhor do bolinho de chuva junto com o chá de erva-cidreira é fazer voar o pensamento - em mim automático – : à primeira mordida, a boca incha com a massa doce, o calor do chá e o pensamento flui livre, para domínios desejados, alcança a felicidade, foge dos reais do mundo, das obrigações de ser professora, das chatices e teimosias dos alunos, dos ciúmes das colegas...viajo! E Moacir: engraçado, querida amiga, para mim é a música que tem este poder de me carregar para oníricos mundos...Fátima interrompe sorridente: oníricos já é demais querido Moacir, sonhe voando mais rente ao chão, urge sentir quentes carnes se embrenhando, bafos com sabor de erva-cidreira, açúcares nos lábios sendo trocados de boca; e Moacir: invejo sua disposição; sua sede de amor é infinita, amiga!

A conversa corria solta na sala de jantar! O bico do bule com chá esfumaceante inundava a sala com o perfume doce da erva cidreira e na travessa de porcelana o amontoado de bolinhos de chuva – morenos salpicados de açúcar refinado – ia encolhendo de tamanho, mas ainda forrava o chão da travessa os bolinhos deliciosos, doces, sensuais!

Fátima falava de seu amor, dos encontros as quintas, de sua ânsia pela espera e da felicidade do semanal encontro em seu quarto, em sua casa e do duplo fascínio que havia entre ela e Vicente: perdemo-nos um no outro, o mundo foge e nasce uma comunhão ancestral, bárbara e humana em nossos encontros; e Moacir: os médicos, como Vicente, diriam que são os seus feromônios que enlouquecem o amante e os poetas diriam que é o amor que os une tão carnalmente, querida; e já vem você: feromônio? que que é isso? mata? e Moacir: não, não mata mas aleija: é um cheiro hormonal que as mulheres possuem e que atraem os homens, quer eles queiram ou não; sabe Moacir que vejo isso quando Didinha passa: os olhos dos homens brilham, os mais ousados metem a mão no bolso e alisam as partes sonhando com aquele corpo grande e forte; já notei isso também Fátima: impossível aos homens não pecarem, pelo menos em pensamento, à passagem de Didinha; e eu tenho esse perfume que enlouquece os homens? penso que o seu é leve, flutua docemente sobre toda a cidade, como se você sobrevoasse em um aviãozinho teco-teco barulhento e deixasse seu perfume feromônio esparramar-se sobre a cidade, caindo junto com a fumaça do aviãozinho barulhento, envolvendo toda a vila em uma névoa de sensualidade; ficando doido você Moacir?; não, minha querida: esta vila nunca foi mais a mesma depois que você chegou, quer queiram ou não os seus homens e as suas mulheres!

Está escrito, ouça.

Moacir levantou-se e foi até a prateleira com os LPs de suas óperas e ficou - cuidadoso, olhar atento, dedos ágeis – a folhear a coleção de LPs como se folheasse páginas de um livro encontrou o que urgia ler, reler.

Vou colocar o canto do médico Dulcamara, da ópera L’elisir d’Amore de Donizetti. Fez-se um enorme silêncio na sala, se ouviu o barulho do LP saindo da capa com a foto do baixo Cesare Valletti no papel de Dulcamara oferecendo, aos camponeses, o seu elixir:

“.....graças a este específico

simpático, prolífico,

um septuagenário

valetudinário

ainda se converteu em avô de doze crianças....

Comprai-me o meu específico,

Que vo-lo dou barato.

O elixir move os paralíticos,

cura os apopléticos,

os asmáticos, os asfixiados,

os histéricos e os diabéticos;

cura os que sofrem do tímpano,

escrofulosos e raquíticos,

e até dor no fígado

que ultimamente está na moda...”

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No domingo Didinha chegou á igreja quando os sinos ainda badalavam conclamando os fiéis para a missa das seis e foi a primeira da fila no confessionário onde, cabeça coberta pelo negro véu de viúva, confessou seus pecados e rezou – contrita – os dois pais-nossos e as cinco ave-marias, penitências exigidas pelo bondoso Frei João e se sentiu livre e leve para comungar a hóstia santa, receber o corpo de Cristo na esperança de reconfortar sua alma triste e desacorçoada.

Terminada a missa ajoelhou e rezou um pouco mais junto à imagem de São José e pediu paz e o santo advertiu que não via guerra em sua vida e ela mudou o pedido e clamou inteligência para entender a vida sem sentido que andava a levar; o santo calou quieto, sem nada prometer e então Didinha fez o sinal da cruz, benzeu-se e tirou o véu que cobria a cabeça, dobrando-o cuidadosamente enquanto caminhava em direção a sua casa.

O sol brilhava iluminando a praça frente à igreja e Didinha sorriu: lembrou-se de que ia almoçar naquele domingo com a amiga Cidona, que iriam comer bacalhau, e melhor que isso, iriam poder, ela e a amiga, falar e ouvir coisas da vida, dos bordados, dos sonhos: Cidona, a negra cantora de voz doce, tinha se tornado sua melhor amiga.

Cidona saiu da missa das nove, onde cantou o Te Deun no coro, direto para a casa da amiga Didinha: chegou e foi agradando o cachorro Pitoco e ainda sem entrar assobiou forte e limpou a gaiola do nego pássaro preto que se arrepiou todo quando teve sua cabecinha acariciada por Cidona que o imitava em seu trinado alto, melódico. Fechou a gaiola e entrou na sala da casa, abraçou Didinha - dando um sonoro Bom Dia e – bacia no colo - ficaram as duas a descascar batatas e a tagarelar.

Então agora me conte, Cidona, me fale desta história de você cantar uma ópera no coreto da praça? Que é isso? Bem, Didinha, é coisa do Moacir, se bem que agora estou também entusiasmada; mas foi o Moacir, com apoio do Frei João e do Seu Joel, que teve a ideia e estão a planejar uma apresentação da ópera Norma no coreto da praça...Ópera? e o que é uma ópera, Cidona? E Cidona: ópera se parece com uma novela do rádio, é uma história cantada, toda feita com muita música, e os cantores cantam a história; parece uma novela como a que a gente escuta na Rádio Nacional, à noite, – O direito de nascer – só que curta, dura pouco mais de uma hora, e é tudo muito bonito; E Didinha, curiosa por demais: e é você que vai cantar? se for você irei a essa ópera, com certeza, já te disse que sua voz me emociona; sim, irei cantar junto com o Moacir e o Seu Joel irá recitar os outros cantos para facilitar a compreensão dos ouvintes; e é para quando isso tudo? será na primeira quinzena de novembro, em um sábado de lua cheia.

Os olhos das duas brilhavam, excitadas: uma falando e outra ouvindo, comungadas as duas, em êxtase, a sonhar com a inusitada ópera no coreto da cidade. Me conte a história da ópera que vai cantar. E Cidona, radiante: É uma história de amor, Didinha; Norma é uma sacerdotisa de um povo chamado druida, que estava sob o jugo dos romanos. Isso se foi há muitos e muitos anos atrás, penso que pouco depois que Jesus morreu. E Norma se apaixona por um cônsul romano que dominava suas terras e com ele teve filhos. E então chega um dia em que fica sabendo que o cônsul, cujo nome é Pollione, havia sido convocado para voltar para Roma e, pior ainda, descobriu que Pollione – seu amor - iria levar em sua companhia Adalgisa, uma sacerdotisa de seu templo e o novo amor de Pollione que em nossa apresentação será apresentado pelo Moacir; sabe Didinha, Moacir tem uma bela voz e sempre sonhou em ser cantor de ópera, mas onde morava, em São Paulo, tentou várias vezes e não conseguiu e não sei por quê: voz bonita, afinado, bom homem. Mas continuando a história: Norma pensa em matar seus filhos – por ciúme e ódio – chega a se armar com uma enorme faca mas ao ver os filhos deitados, dormindo, não tem coragem o suficiente. E a história termina quando Norma, em uma cerimônia religiosa, resolve sacrificar-se , imolando seu corpo na fogueira e Pollione acompanha-a em seu sacrifício, morrendo os dois; acho melhor não contar tudo em detalhes para, no dia da apresentação, você não se chatear; vai ser uma bonita apresentação: vestiremos roupas vistosas – Moacir e eu – o Seu Joel vai controlar a música na rádio vitrola do Moacir, e instalar alto-falantes no coreto, de modo que toda a cidade possa ouvir.

Que coisa mais maluca de doida, Cidona: nunca pensei em coisa parecida por aqui, mas sabe que é por isso é que gosto de morar na cidade: tem novidades, sorvetes gelados, luz elétrica e agora ópera. Sabe que na roça meu pai fazia grandes festas – fogueiras, fogos, bandeiras – no dia de São João e muitas vezes ia para a festa o cego Beraldo que gostava de cantar as histórias da Donzela Deodora e da Imperatriz Porcina, que eu gostava mais, era a história da mulher de um rei de Roma que mandou mata-la por falso testemunho que lhe levantou um irmão, mas que apesar das ameaças, torturas e sofrimentos, salvou-se da morte e recobrou seu papel de imperatriz com mais honras que antes tinha e eu sempre chorava quando o cego Beraldo cantava, dedilhando sua viola, esta história musical.

Sabe Didinha que eu gosto por demais de cantar...e eu de te ouvir, interrompeu a amiga; e sempre cantei na Igreja: os Te deuns, Kyries, sou a Madalena na sexta-feira santa e quando canto obras sagradas minha alma se eleva, a realidade me escapa e penso que se o céu for o que sinto quero ir para o céu; mas, agora, cantando histórias humanas de amor, tenho outro tipo de sentimento, me sinto mulher e meu corpo é invadido por ondas nunca antes sentidas, meus olhos fecham sem minha ordem, vou a outro tipo de céu: ardente, humano e chego a desejar Moacir.

Didinha ouvia, atenta, as confissões da amiga: estava surpresa, emocionada com o que sentia a amiga. Cidona continuou: nunca fui tocada por um homem Didinha, jamais e até hoje não sentia falta: quando menina, brinquei de casinha com um priminho meu e imitamos o que nossos pais faziam: tirei minha calcinha e ele abaixou a calça curta que usava e brincamos de amor; agora, depois que passei a ensaiar esta ópera quando vejo o anjinho, na igreja, com o pintinho de fora meu pensamento voa para minha infância e desejo reviver – agora adulta – aquela manhã de inocente amor e continuando, Didinha: acho que o mesmo ocorre com Moacir: sinto, quando ensaiamos nosso canto de ida à fogueira, morrer por amor, que Moacir se torna homem, cresce o volume entre suas pernas, seus olhos brilham diferentes, seu hálito é perfumadamente quente...Pare Cidona: vai acabar traindo a professora; e Cidona: nada ocorre entre os dois amiga Didinha: são como irmãos e Moacir nunca teve mulher.

Mundo mais doido, pensou Didinha!

O perfume do bacalhau inundou a casa atiçando a fome das amigas, acordando-as, conclamando-as à realidade dos estômagos vazios e as duas levantaram, fizeram, cada uma o seu prato com bacalhau, batatas e cebolas, regaram com o verde azeite de oliva e deixaram a conversa para outra hora: era hora de matar outro tipo de fome que as incendiava e exigia satisfação.

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