“Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.”
Manuel Bandeira, Antologia Poética.
Aprendi a gostar da pedra do Velho Deitado. Não me cansa ver a cabeça negra, com seu longo e afilado nariz, ser vagarosamente tragada pelas ondas para, horas depois emergir meio às brancas espumas: tornou-se um amigo que, silenciosamente, ameniza a solidão que a velhice sempre traz consigo.
Rodeando a pedra do Velho Deitado pequenas lagoas se formam: são negras em seu piso de pedras e verdes em suas águas límpidas. São nestas lagoas que muitos pescadores caçam não só pequenas iscas para seus anzóis, mas também, com artesanais e pontiagudos arpões, belas lulas e polvos feios com seus olhos enormes e tristes.
Entre os pescadores de perto da pedra do Velho Deitado destaca-se Barsanufo: um negro esbelto em seu corpo de mais de setenta anos, peito e cabeça totalmente cobertos de pichainhos brancos, como se aqui fosse Europa ou Estados Unidos e tivesse caído neve sobre o velho pescador. Mas isso é bobagem: onde já se viu nevar em praia tão quente para esbranquiçar a cabeça do Velho Deitado e a do Barsanufo? Quem cobriu de branco a cabeça do Barsanufo e de verde o peito do Velho Deitado foi o tempo, foi a idade chegando, chegando.
Mas, voltando ao assunto: Barsanufo é considerado, aqui pelos lados da pedra do Velho Deitado, o melhor e o mais sábio nas artes da pesca, o que conhece a melhor isca para cada tipo de peixe, o melhor horário para pesca de cada espécie, o momento certo da fisgada. Em dias em que a maré baixa é de manhãzinha, coloca-se de pé sobre o peito do Velho Deitado, e com as mãos sobre os olhos, para se proteger do sol, vigia as ondas, olha, reolha e descobre onde os peixes estão. E aí, só, com suas varas e seus anzóis vai à caça.
Gosta de pescar.
-"Peixe para levar para casa e comer é o budião branco o que mais gosta. Tem o budião azul, mas este só se pesca em águas profundas." Para Barsanufo, na beira praia, no raso do mar, melhor peixe para se pescar e comer é o budião.
Eu o conheci quando limpava um budião de quilo e meio que havia acabado de pescar. Ao seu redor, enquanto limpava o budião, fez-se uma rodinha: um cinquentão goiano que passeava na praia, um jovem moreno, todo queimado de sol, com os braços tatuados e eu. Barsanufo concentrado na operação de limpeza do budião não nos via, ou fingia não nos ver: com uma faca afiada raspava as escamas, cortava o peixe pela barriga e retirava suas vísceras.
O goiano teimava em comprar o peixe: queria, por que queria levá-lo para fritar em sua casa, alugada para suas férias beira-mar. A cada investida do goiano, Barsanufo respondia: “é para comer em casa, com a família.”; “você pesca outro e leva para casa, me vende este. Quanto quer?” insistia o goiano, “ é para o almoço, comer coma família.”, encerrou o assunto Barsanufo.
Quando o goiano, mal humorado, desistiu de comprar o budião, o rapaz queimado de sol e eu já pensávamos em seguir nossa caminhada pela praia, Barsanufo disse sério:
- “Tem gente que come assim. Já eu não. Dos que levo para comer em casa, tiro as baratas do saco das baratas.” E enquanto falava, com sua faca afiada, fez um pequeno furo logo acima do olho do budião, tirou a pele e encontrou uma pequena cavidade – o “saco das baratas” – da qual retirou, com a ponta da faca, pequenas baratinhas do tamanho de um grão de arroz, brancas, leitosas. Umas cinco ou seis: todas vivas, espertas, espremidas como sardinha na lata, no saco das baratas. Repetiu a operação acima do outro olho do budião e mais uma leva de pequenas baratas foram retiradas e jogadas em um pequeno pocinho, perto da cabeça do Velho Deitado. No pocinho as baratinhas nadavam, ágeis, rápidas, parece que felizes, meio a tanto espaço encontrado, apertadas e comprimidas que estavam até então no saco das baratas.
No mar as baratinhas e no ar certo mal estar; a rodinha se desfez: o goiano, sem nada dizer, saiu; o rapaz moreno, queimado de sol, disse: “e a gente acaba comendo barata e, sem nada saber, acha gostoso.”, e eu a olhar as baratinhas no pequeno poço: buscavam minúsculas locas e lá se enfiavam e sumiam, aparecendo vez ou outra expulsas pelos sirizinhos pretos, donos da loca.
Barsanufo, em um outro dia, me disse:
- “ Só os budiões têm o saco das baratas. Tem um tipo de corvina, rara aqui, que tem uma pedra acima dos olhos; dizem os mais velhos que a pedra da cabeça da corvina é um santo remédio para curar dente de crianças e para segurar filho na barriga de mulher que têm dificuldade de sustentar criança no bucho. Agora as baratinhas do saco das baratas do budião é o seguinte: o budião as come no mar e elas vão para o saco das baratas, onde se protegem.”
Eu, calado, ouvia Barsanufo, que continuou:
“ Os mais velhos contam a história do negro Rufino, ainda dos tempos da escravidão, que foi quem iniciou e a poucos ensinou o feitiço que sabia fazer com as baratinhas brancas do saco das baratas dos budiões.
Quer que te conto?
Quer?
Bem, já que quer, e tem tempo para escutar, foi assim:
Rufino era um preto baixo, avesso às lidas do trabalho, viciado em mulher. Gostava do amor e exercia fortes poderes sobre as mulheres que queria possuir e as mulheres, enfeitiçadas, não resistiam à sua magia. Era assim que fazia: ficava vigiando a mulher desejada, observando onde a mesma desaguava. Em antes, nos tempos de Rufino vivo, contam os mais velhos, as mulheres usavam desaguar na praia, deixando sobre a areia branca uma pocinha úmida de mijo. E Rufino fazia então seu trabalho: recolhia a areia úmida de urina, punha em uma latinha com água do mar e lá colocava as baratinhas dos budiões que pescava; as baratinhas se infiltravam, como minhocas, na areia do mijo e faziam a mágica: a mulher, dona do mijo, se apaixonava por Rufino.”
Interrompi Barsanufo:
-“ Sabe que coisa parecida acontecia nos sertões de Minas, só que com formiga cabeçuda, que eram presas em caixas de fósforo com terra úmida de mijo de mulher. Os mais velhos contam que funcionava: era tiro e queda.”
Barsanufo continuou:
- “Pois então, aqui nesta praia, viveu e se enamorou por muitas e muitas mulheres o negro Rufino. Trabalhar não gostava, namorar queria sempre e demais. Esparramou filhos pelo mundo: filhos com negras gordas e novas, filhos com negras magras e mais velhas, filhos com moças virgens até encontrá-lo e com mulheres casadas e, assim Rufino esparramava amor nas mulheres e ódio e vontade de vingança nos maridos traídos e nos pais que tiveram suas filhas descabaçadas e engravidadas por ele. Mas estes nada podiam fazer: Rufino, diziam, tinha acordo com o CAPETA, com o DEMO. Em troca de sua alma a COISA protegia seu corpo de facas, de balas, de punhais e até mesmo de pauladas; assim, Rufino não era, em qualquer luta, jamais ferido e vencido.
E vivia assim: para o amor. Só prejudicava as pessoas quando namorava e possuía mulher dos outros, ou fazia filhos em meninas novas, que tinham que depois de parir sustentá-los, pois amava os filhos mas não os criava. Conta-se que mesmo o xixi de Sinhazinhas brancas, como as baratinhas do saco das baratas do budião, foram, às escondidas, recolhidos e colocados em sua latinha com água do mar junto às mágicas baratinhas. E assim, graças aos encantos de Rufino, da filha mais velha do senhor do engenho nasceram dois meninos mulatos e da filha do administrador da casa da farinha nasceram Jonas e Ernestina, também mulatos. Correu, em seu tempo, o boato de que a repentina viagem para a Europa da filha do Governador foi por motivo de filho de Rufino na barriga e que na Europa, parece que na França, onde tirou o filho do bucho, refez o himem para poder voltar e casar virgem com Espósito, filho do Coronel Moreira Cezar.
Chegou hora em que Rufino adoeceu, picado pelo barbeiro.
Ficou com o coração grande, fraco. Rufino, mal podendo falar, dizia que seu coração tinha ficado grande, aumentado até encher o peito, dificultando a respiração e impedindo de ir à pesca do budião, era inchaço de amor, que não tinha doença ruim mas uma doença boa de se morrer.
E contam os mais velhos que todos - maridos traídos, pais de moças virgens por ele descabaçadas e mães de seus filhos, mulheres negras e gordas com seus seios grandes como um mamão, mulheres negras e magras com seios pequenos como uma doce e saborosa manga, mulheres brancas como as baratinhas do saco do budião, todas as mães de seus filhos – enfim todas as almas vivas desta praia e das de perto, compareceram e respeitosamente prestaram homenagem, cobrindo de flores e velas o corpo morto Rufino enrolado em branco lençol de algodão.
E foi aqui, nesta praia, em um silêncio em que se ouvia até o murmúrio das menores ondas roçando as pedras e a areia, que, atendendo ao seu último pedido, foi enterrado, junto às baratinhas do saco do budião.
Seu corpo virou esta pedra do Velho Deitado que é o negro Rufino”.
2 comentários:
Que maravilha esta história, inspirada nas novas plagas do velho Orlando!
Pressinto que teremos muitas outras, já que a vida no litoral traz mais tempo e circunstâncias para a inspiração.
Esses goianos têm mesmo dificuldade para entender as coisas do mar. E quem não tem, senão aqueles que nasceram e foram criados nesse mundo tão livre e mágico onde surgem personagens como os Rufinos e Barsufos?
Olá Rafael,
Que bom que você gostou da história. Espero, também, que as novas plagas tragam inspiração, porque tempo é o que não falta.
Abraços,
Orlando.
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