quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O fim do mundo e outras histórias.




Nos tempos de hoje – viagens a Marte, desclassificação do Plutão, e-mails e até sexo virtual - não têm mais cabimento aquelas antigas histórias do fim do mundo, dos meus tempos de criança, quando cursava o primário. Eram tempos em que o mundo costumava se acabar, no mínimo, umas duas vezes ao ano. Não se sabe de onde surgia a notícia. Morrendo de medo e, aí sim, com um sério motivo para faltar à aula, tínhamos, mesmo assim, que ir, temerosos e meio na marra, para a escola. No caminho e no recreio, o assunto era um só: o mundo ia acabar.
Morria de medo.
O mundo, quase sempre, ia acabar em fogo ou em água e eu, que nem nadar sabia, já me via sendo engolido por um mar de águas sujas, barrentas, que vinham lá do alto da serra inundando tudo, a tudo matando: cavalos, bezerros, cobras, cabritos, gente. As casas se desmanchavam ao furor das águas ou do fogo. Só restava rezar.
Nós nos juntávamos em uma roda, discutíamos e votávamos as nossas preferências: seria melhor o mundo acabar em água ou em fogo? Eu votava em um desses modos do mundo acabar mas, logo ao primeiro argumento, já mudava de idéia; e, volúvel, mais uma vez, mudava meu voto, que, logo em seguida, já era outra vez mudado...assim infinitamente. O que eu não queria, mesmo, era morrer.
O salto do antigo primário para o ginásio era súbito e radical. Tínhamos que abandonar as calças curtas, o carinho e os cuidados de uma só professora para encarar um montão de bravos e sérios professores, cada qual cuidando de sua matéria, pouco interessados, indiferentes, mesmo, para saber e comentar se o nosso caderno estava sujo, se a nossa letra estava feia ou bonita, se as “orelhas” no canto do livro estavam em demasia; enfim, uma mudança das bravas.
De bom nisso tudo eram as aulas de educação física, nas quais se jogava futebol, os cigarros que fumávamos escondidos, no pátio, os desfiles de sete de setembro, e a delícia que eram as folgas entre as aulas, quando faltava um professor. Nada de professor substituto, como no Grupo Escolar: era folga mesmo e das boas.
Foi numa dessas folgas que o fantasma do fim do mundo, que andava tão esquecido e fora de moda por ser coisa de criança de Grupo, voltou a atacar.
Vou contar.
Do pátio do Ginásio Estadual, onde estudava, dava para ver a linha de trem da antiga estrada de ferro da Mogiana. Antes das aulas, ou durante os seus intervalos, vigiávamos a Maria Fumaça, que chegava trazendo - ou não, o que era melhor - os professores que vinham da cidade vizinha para nos ensinar. Todos, professores e professoras, vestidos com um guarda-pó para proteger os ternos e os vestidos e blusas das faíscas expelidas pela furiosa Maria Fumaça. Aqui, quero contar algo que nada acrescenta a esta história, mas que vale a pena: até hoje, ao ouvir o Trenzinho do Caipira, do Villa, vêm fortes, coloridas e barulhentas as antigas imagens do trenzinho da Mogiana. Dá uma saudade gostosa de seu passar, choc, tchoc, choc, tchoc..., e de seu longo e lastimoso piuiiiiii.... Uma vez, na comemoração do Dia das Mães, não sei se planejado ou não, o sr. Godinho, nosso professor de Canto Orfeônico, tocava uma variação para violino desta ária, quando lá vem a Maria Fumaça, que, pouco se importando se a partitura a contemplava ou não, incorpora à peça o seu gracioso piuiiii fumacento e o seu tchock, tchock das pesadas rodas. Emoção a ponto de, envergonhado, enxugar com a manga da camisa as lágrimas que, teimosas e independentes de meu querer, corriam rosto afora. E voltando ao principal da história, como dizia antes, ficávamos vigiando a passagem do trem para ver se haveria ou não a deliciosa, para nós, falta de algum professor. Pois, justamente naquele dia, a nossa Maria Fumaça não trouxe a bela e morena professora de Geografia: dona Maria Euzébia. O nome, hoje para muitos estranho, na época, era doce. Ela era, longe longe, a mais bela de todas as professoras. “Vamos folgar a segunda aula; dona Maria Euzébia não veio”. E enquanto estávamos aguardando, ansiosos pela folga - pensando nos cigarros que fumaríamos, escondidos, nas piadas, na combinação do próximo jogo de futebol, entra na sala o Sr. Carlos, inspetor de alunos:
- “O Dr. Paulo ordenou que é pra vocês ficarem na classe. Ele virá até a sala daqui a pouco.”
- “Mas a dona Maria Euzébia faltou e agora é aula de Geografia”, rebateu Jaime, o único entre nós a ter coragem de contrariar ordens e enfrentar o Sr. Carlos, que, solene:
- “Sr. Jaime, o Dr. Paulo, diretor deste Ginásio, virá aqui e ordenou que é para...”
Não deu tempo de terminar: o diretor, dr. Paulo, em seu impecável terno de linho branco, entra na sala. Nós o recebemos, disciplinadamente, de pé. Hoje, penso que o respeitoso costume de receber autoridades de pé deve se restringir aos músicos, à entrada dos maestros.
Voz calma e grave:
- “Podem sentar”.
Sentamos.
O Dr. Paulo era secretário concursado do Ginásio e sempre que, por transferências ou sei lá porque, a escola ficava sem diretor, ele assumia a vaga. Uma vez, candidatou-se e se elegeu prefeito da cidade: construiu uma linda fonte luminosa na praça em frente da igreja, aumentando o prazer e a beleza do “footing” das noites de sábado. Naquele tempo, tanto para mim como para os meus amigos - de escola, de brinquedos, de jogos e, também, de brigas - havia duas palavras que só dizíamos em voz baixa e das quais morríamos de medo: comunista e maconha.
O Dr. Paulo, diziam, era comunista: prova disso é que não ia às missas de domingo.
Voltando, mais uma vez, ao assunto: sentamos e aguardamos. Resumindo o que ainda hoje recordo, lembro-me, perfeitamente, de que ele prometeu, entre outras coisas, voltar para falar conosco sempre que algum professor faltasse e que, nessas conversas, trataria de assuntos práticos, modernos e “necessários às pessoas de nossos tempos.” Isso lá pela década de cinqüenta e naqueles cafundós do interior: - “pessoas de nosso tempo” - achei bonito.
Também me lembro, e isso, sim, tem a ver com a história, quando, muito calmo, voz pausada e clara, disse ele:
- “Imaginem se o mundo acabasse hoje; e se vocês, cada um de vocês, ficasse - como gostam de dizer - para a semente. Só. O que ficasse vivo, para a semente, depois do fim deste mundo, com certeza se lembraria: no mundo de antes tinha eletricidade; era bom, útil e...o que vocês sabem de eletricidade? vocês saberiam desenvolver uma usina para produzir eletricidade?”
Não sabia e tinha lá meus consolos: pelo menos em casa, só se usa energia para acender as luzes na hora em que escurece; não tínhamos geladeira e outros que tais. Assim, acabando o mundo, e fosse eu o escolhido para ficar para a semente, sentiria muita falta das lâmpadas acesas ao anoitecer. Já o Antônio Henrique sentiria a falta da geladeira e seu pai, dentista, sentiria uma falta enorme: como girar aquele motorzinho dolorido de curar e fazer doer dentes, sem a energia? Mas... talvez eles, se ficassem para a semente, soubessem produzir energia. Eu não. Sabia fazer fogo como os índios: esfregando um pauzinho no outro; mas, gostaria de, ficando para a semente, achar uma grossa lente de óculos, pois já tinha treino de colocá-la entre a luz solar e os tocos de cigarros para, com sucesso, acendê-los e, gostosamente, fumar.
Um outro assunto que o Dr. Paulo tratou naquele dia e que me marcou, não sei porque, foi da necessidade de economizar água. Também isso nada tem a ver com o que quero mais contar, mas, como me recordo bem disso - chego mesmo a lembrar do timbre da voz do circunspeto diretor - não posso deixar de lado. “Não se deve deixar a torneira aberta enquanto se escova os dentes.” Passei a acatar. O engraçado é que, há pouco, lendo um artigo de um colunista da Folha de São Paulo, o mesmo disse ter o mesmo hábito: economizar água ao escovar os dentes, lavar o rosto e se barbear. Este hábito lhe rendeu, entre seus amigos, a fama de “ridico”. A palavra, que há tanto tempo eu não ouvia ou lia, me transportou àqueles tempos e, sem o Aurélio por perto, fico a pensar se o mesmo a contempla. Caso não contemple, vão aqui, então, alguns sinônimos meio chinfrins para ridico: pão duro, munheca, mão de vaca.
Aqui, um comentário paralelo: minha mulher e minhas filhas, nesta parte da história, já estariam bravas de tanto eu mudar de assunto, o que, às vezes e segundo elas, faz com que eu me perca e, de tantos rodeios, fuja do principal, do que eu quero mesmo contar. “Você se perde de tanto dar voltas”, dizem elas; e é verdade, mas já me acostumei.
Para não perder o costume, então, sei, também, e isso é importante e não posso, mesmo, deixar de falar aqui, que foi a partir daquela aula, ou conversa como dizia o Dr. Paulo, que passei a ter coragem de não ter mais medo de comunista. Quando rapazinho, tive medo, de novo, por pensar que católico, como era, não podia ser comunista. E aí fui salvo pela JEC – Juventude Estudantil Católica: dava sim, dizia Cônego Angélico, para conciliar. Ainda bem, pensava: queria muito ser comunista. Hoje, fico a pensar se um velho ateu pode acreditar em comunismo; acho que não, mas não importa.
Agora, voltando, mesmo, ao fim do mundo. Eu havia, em uma saída para caçar passarinhos, machucado e cortado um pé, que ficou inflamado e dolorido. Naquele dia, estava muito vermelho e inchado. Um amigo meu, o José Américo, havia, há pouco, morrido de tétano por um ferimento com prego no pé.
Naquela noite, fui deitar com o pé doendo muito e com medo de morrer, do mundo acabar, de ficar para a semente.
E foi assim que o mundo acabou.
De repente, eu estava no pico do Morro do Cruzeiro e, daquele alto imenso, via, vindo dos lados de Franca, onde o sol nasce, uma bola de fogo alta e vermelha e, do lado de Jeriquara, onde o sol se esconde, uma bola d´água imensa, enorme, azul. A bola de fogo e a de água vinham ao meu encontro e eu quis correr e fugir: corria, corria até cansar, e não conseguia sair do lugar, com o fogo e a água cada vez mais próximos. Envolveram-me completamente e, aí, eu morri: o mundo acabou.
Logo que morri, mas também tinha ficado para a semente, eu estava em uma campina infinitamente verde, plana, sem nenhum monte, morro, nada...só plano e mais plano. À minha frente, a cerca de uns duzentos metros, uma mula preta. Resolvi montá-la e foi então que adivinhei que só conseguiria se a chamasse pelo seu verdadeiro nome. Quis gritar um primeiro nome: “Taturana” – que era o nome de uma égua muito amiga minha, e aí foi que percebi que naquele mundo dos mortos não havia voz. Tudo era mudo. Só tinha pensamento. Tinha que pensar forte: pensei Taturana e a mula não respondeu. Pensei Negra, por causa de sua cor, mas ela não respondeu. Negra podia ser apelido, não o nome. Pensar cansava muito e eu chegava a suar para poder pensar forte, porque era preciso. Mudei o pensamento para Rifaina, por causa do lado em que ela estava, e a mula não se moveu. Cansado e suado, porque pensar cansava por demais, pensei Restinga e ela veio doce e obediente.
Montei.
Restinga me conduziu e fomos para a Venezuela. Chegamos e vi que a Venezuela era uma infinita seqüência de morros verdes, com a relva cerrada e nenhuma árvore. Cada morro seguia o outro com uma beleza que encantava. No céu azul, nuvens brancas, estrelas, o sol e a lua: tudo de dia, porque não havia noite e eu não sentiria falta da eletricidade. Uma hora - eu já havia envelhecido e estava com barbas brancas, feito as de Deus naquele quadro que havia na igreja do mundo dos vivos que eu freqüentava - olho para o horizonte e vejo que o último morro verde, lá do fundo, começou a mudar de cor e a crescer, se transformou em uma bola gigante, enorme, e que rolava em nossa direção. Quis outra vez gritar, mas não havia voz naquele mundo dos mortos: pensei forte na necessidade de mudar de direção. Pensei e Restinga obedeceu.
Mudamos do norte para o sul, do leste para o oeste, quando, de repente, às nossas costas, veloz, correndo a nos perseguir, aparecia, agora, o capeta, o demo, a “coisa”, com uma capa enorme, igual à do super-homem, balançando ao vento; o garfo tridente de ferro - vermelho de tão quente - e os chifres soltando fumaça de enxofre. Não conseguia mover as mãos para fazer o sinal da cruz para o capeta, com medo de Deus, fugir. Pensei forte o “em nome do pai, do filho...” e o capeta não desaparecia, ria alto da prece e se aproximava com a capa balançando e chacoalhando. O chocalhar da capa contra o vento fazia um barulho forte, como de asas de passarinho se batendo. Pensei: “Pai Nosso que estais no Céu...” nada.
Restinga, minha mula, sumiu e eu fiquei sozinho no alto de um morro, sentado em um monte de cupim, com o capeta perto, muito perto. O barulho da capa aumentava: queria gritar mas não dava. Suava de tanto calor que a quentura do tridente do capeta me passava. Pensava forte “Deus nosso senhor Jesus Cristo”, para a “coisa” desaparecer, mas nada; só o calor do tridente e de seu corpo perto de mim é que aumentava. O capeta estava muito perto, sua capa balançava e fazia barulho cortando o vento. Eu estava muito cansado e suado de tanto pensar. Vou morrer.
Morrer não dava porque já havia morrido. Então o que?
Minha mãe e minha irmã acordaram com os gemidos e vieram ao quarto. A luz da sala ao lado foi acesa, espantando o passarinho preso na gaiola, que, assustado, batia com força suas pequenas asas, cortando o vento e fazendo um barulho seco igual ao da capa do diabo. Eu me sentia febril e com sede. Minha mãe me deu água doce e pôs uma folha de beladona quente no ferimento de meu pé.
Desmorri.

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