segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

PIAGETIANAS


A sala de visitas, por sinal a única da casa, foi naquele remoto ano, subitamente transformada em Escola Municipal. Na carroça do velho Biba chegaram as carteiras e a lousa preta. Uma de minhas irmãs: a professora. Naqueles mundaréus de furna era assim.
Eu tinha lá meus cinco anos e vivia com nove irmãos, todos mais velhos: uns servindo de pai, outras de mãe, mais o pai mesmo e a mãe de verdade, um poço de carinho. Não sei como, que tipo de acordo foi feito; nem como as pessoas ficaram sabendo; o que sei é que de repente, de manhãzinha, chegava lá em casa um bando de crianças, uniformizadas ou não, que se enfiavam na antiga sala de visitas, agora escola, para assistir as aulas que minha irmã iria dar. Hoje sei que minha irmã havia cursado até o antigo terceiro ano.
Também não sei se pedi para assistir as aulas ou se lá me enfiaram. O que sei é que gostava e aprendia rapidamente. Ganhei cartilha, caderno, lápis e uma inveja danada dos colegas que tinham que, a pé, sair de suas casas e por horas e horas caminhar pelos campos e pastos até chegar à escola.
Pela pouca idade e também por um certo nanismo que possuía tornei-me orgulho da família: tão pequeno aprendendo a ler, escrever, contar, somar e dividir. Chegavam os tios de outros sítios, namorados de minhas irmãs e o pai, quando estava de bom humor, pegava lá um pedaço qualquer de jornal e eu tinha que ler em voz alta.
Sucesso total.
Veio o exame final e, pela idade e por não estar matriculado, ficou decidido que eu faria as provas, mas independentemente dos resultados, não haveria, pelo carrancudo examinador, o ato oficial de aprovação. Mas ele também, todo bravo no início, se encantou lá com meu pouco tamanho, minha pouca idade, pela letra bonita, pelas contas certas, pelo ditado corretamente feito e pelos probleminhas de uma conta só bem resolvidos, se dobrou e chegou, dizem, a me elogiar para minha irmã professora e para meus pais, na hora do almoço que lhe foi oferecido. Mas, afirmava, o exame não tinha validade: eu não tinha idade e não estava matriculado. Minha irmã professora, que havia me alfabetizado e me iniciado nos princípios da aritmética, era orgulho só.
Virei notícia em toda a furna.
Ano seguinte, logo em janeiro, ela se casou e a escola acabou. Na mesma carroça do Biba lá se foram as carteiras e a lousa deixando a sala vazia – enorme - e em mim uma grande saudade da hora do recreio.
Perto de casa não havia escola.
Dois anos depois, em um domingo, fui colocado, junto com uma trouxa com minhas poucas roupas, na garupa do cavalo de minha irmã. Havia sido resolvido que eu iria morar em sua casa para poder freqüentar uma escola. Na despedida minha mãe chorou, meu pai fez cara feia para ela, minhas outras irmãs me abraçaram e lá fui eu. Não sei se triste ou alegre: fui.
Minha irmã arrumou, para mim, um uniforme de calça curta azul e uma camisa branca. Me apresentou também os colegas com quem eu deveria ir de casa até a escola: José Luís, Marta e Luquinhas. A pé, da casa de minha irmã até a escola era mais ou menos hora e meia de caminhada. Tínhamos que passar pelo sítio do seu Baltazar onde, quase sempre, nos fazia correr uma dupla de enormes cachorros. Trepávamos na porteira, com aqueles cachorros latindo embaixo, e ficávamos a gritar até vir a ajuda ao Seu Baltazar ou de Dona Júlia. A vingança era, depois de salvos dos cães, atirar pedras nas angolas, nos patos e pisar na fileira de arroz recém plantado. Nas vezes que ia sozinho, para rebater o medo, fazia promessas futuras: assim, se os cachorros não aparecessem, eu prometia um pai-nosso e duas ave-marias que seriam rezadas tão logo aprendesse a rezar. Às vezes dava certo, outras vezes, não. Mas a mania de prometer rezas futuras me acompanhou até o cursinho de primeira comunhão. A partir deste momento, quando aprendi a rezar, passei a ser mais parcimonioso em minhas promessas.
José Luís, o mais velho, ia para o terceiro ano, Marta para o segundo e eu e o Luqinha para o primeiro.
A professora era a Dona Terezinha: usava óculos, vinha da cidade até perto da escola no carro de seu irmão e nos acostumamos a esperá-la na estrada para caminhar com ela uns dez ou quinze minutos, da estrada até a escolinha. Sempre muito limpa, delicada, doce: eu a achava linda.
Eu fui para a seção C – adiantada – do primeiro ano. Fazia rapidamente minhas tarefas e seguia, na lousa, o que era passado ao segundo ano. Na segunda semana de aula, dona Terezinha me faz lá algumas perguntas, se eu sabia fazer tal ou qual conta, me deu um livro do segundo ano para eu ler e concluiu:
- “Você vai para o segundo ano. Na segunda-feira já te trago o livro. Ta bom?”
Achava que estava bom, muito mais que bom, mas fiquei quieto, mudo.
Saí da escola correndo, deixei os colegas - Marta inclusive - para trás para poder falar. Cheguei em casa esbaforido, cansado, quase sem fôlego, assustando minha irmã que imaginou que alguma vaca brava, ou os cachorros do seu Baltazar havia me atacado.
Nada disso:
- “Dona Terezinha me passou para o segundo ano. Na semana que vem já vai me dar livro novo.”
- "O que?”
- “É, ela me passou para o segundo ano, hoje.”
Minha irmã se pôs a gritar pelo meu cunhado:
- “Dari. Dari o Lando passou de ano. A professora passou ele para o segundo ano.”
Dari larga as vacas que estava apartando e toca eu repetir a mesma história:
- “É, hoje, ela me passou para o segundo ano.”
Minha irmã se pôs a chorar. Meu cunhado voltou lá para suas vacas e eu fui tratar dos porcos e aguar a horta.
À noitinha, na hora da janta, novamente a súbita e inesperada aprovação foi comedida, mas emocionadamente, comemorada.
Agora promovido ao mesmo ano que Marta estava comecei a vê-la com outros olhos. Ela: mais alta e mais velha continuava a me ignorar. Ensiná-la as continhas de dividir “com dois números na chave” era meu trunfo. Para mim ela era minha namorava embora ela mesma não soubesse.
Meu cunhado era um homem muito habilidoso. Fez para mim um estilingue com forquilha de jabuticaba, borracha de câmara de bicicleta e um courinho macio, macio. Eu vivia com o estilingue no pescoço; só largava na hora de dormir. Para não furar e estragar com seu peso os bolsos das calças carregava as pedras em um pequeno embornal. Passei a ter uma habilidade incrível com o estilingue; a pontaria certeira deu fim a centenas e centenas de passarinhos e uma inveja danada em todos os meninos da escola. Sempre que matava um passarinho, fosse ele uma rolinha ou um sanhaço me arrependia verdadeiramente; chegava muitas vezes a chorar de dó. Colocava-o no embornal, o remorso e a tristeza passavam logo e muitas vezes uma fritada de passarinhos era a mistura da janta.
Num domingo fomos visitar a família do sr. Chico Baltazar. Estava , enquanto as famílias se reuniam em casa, caçando passarinho quando vieram latindo raivosamente os dois enormes cachorros que sempre nos atemorizava no caminho para a escola. Não adiantava gritar e não havia porteira por perto para subir. Trepei no pé de abacate mais próximo e, protegido pela altura, mirei e acertei uma ou duas pedras nos cachorros. Santo estilingue. Os enormes cães se puseram a ganir de dor e fugiram como o diabo foge da cruz. Pronto: agora o caminho para ir a escola estava tranqüilo. A partir de então, corajoso, dizia a Marta que não tivesse mais medo que eu resolvia o problema dos cachorros. Nada mais de trepar na porteira e ficar gritando por socorro. Armava meu estilingue e os dois cães, espertos, sabendo o que os esperava fugiam. Eu me sentia o herói de Marta e dos colegas; mais dela é verdade.
No caminho até a escola apanhávamos flores do campo e oferecíamos à professora. Delicada, dona Terezinha as colocava em um vaso que ficava a enfeitar sua mesa. Como eu sabia onde encontrar orquídeas do campo, as apanhava e dava à Marta para que ela oferecesse à professora. Nestes dias Dona Terezinha apanhava, no final da aula, as flores e levava para enfeitar sua casa. Talvez as colocasse perto da cabeceira de sua cama pensava; ou talvez as deixasse na sala de visitas de sua casa para que seus amigos e namorado pudessem admirá-las.
Passei para o terceiro ano.
Dona Terezinha foi dar aula no Grupo Escolar e a escolinha fechou.
Fui para a escola da Fazenda Boa Vista. Era mais longe, Marta e seu irmão Luquinha haviam desistido de estudar e eu ia só.
No caminho até a escola não tinha cachorros mas se passava por um campo de cerrado onde havia vacas, touros e bezerros. Levava muitas corridas de vaca brava e tinha que deixar escondido, longe da escola, meu inseparável estilingue, agora proibido pela professora, dona Cidinha.
Nesta escola, agora, tínhamos que fazer aulas de ginástica. Saíamos da sala de aula e fingíamos que estávamos catando pedras no chão e atirando em pássaros; fazíamos de conta que estávamos a carregar baldes de água para molhar a horta... Não entendia aqueles fingimentos todos: afinal matar passarinhos, atirar pedras em vacas, aguar horta era o que mais fazíamos longe da escola. Mas....
De todos os meninos da escola apenas eu sabia onde se encontrava uma belíssima orquídea chamada cabeça de boi. Ela só dava em grutas úmidas e a flor branca, com o formato de uma cabeça de boi, era perfumada e linda. Difícil de descobrir e mais ainda, difícil de colher. Num domingo fui até os fundões da furna do Marinho e colhi duas flores. Com cuidado as levei pra casa e, para que não murchassem as coloquei em uma latinha de óleo com água. Na segunda, ainda com muito cuidado e dentro da lata com água as levei para a escola. Juntei a elas flores rochas do jacarandá mimoso e fiz um ramalhete, realmente, muito bonito. Ofereci à Berenice para que ela, prima da professora, lhe desse de presente. Dona Cidinha as recebeu, colocou-as sobre a sua mesa, sem vaso, sem água. O sol forte as queimava e elas rapidamente começaram a murchar. Fiz a cópia solicitada, resolvi os dois problemas e não tirava os olhos das flores que murchavam, na mesa da professora, estendidas sozinhas, sem água, fora de um vaso qualquer. Me bateu uma tristeza muito grande.
Uma chatice aquele ano de escola. Melhor era a caminhada de casa até lá, matando passarinhos, comendo gabirobas e muricis.
Sorte que na escola tinha a encantadora Berenice do primeiro ano. Linda, com sua pele clara , olhos negros como jabuticaba e o cabelo negro cortado “a lá garçone” como dizia minha irmã. Lindíssima.
Passei de ano e fui, no ano seguinte para a cidade fazer o quarto ano e a admissão ao ginásio.
Foi melhor.
Mairiporã, junho 2004

Um comentário:

Cássia disse...

Sempre gostou de estudar, né?
Bem que eu poderia tar puxado isso de você... Quem sabe o Tonico não me redime?
Li o artigo da Nina Horta que você indicou e adorei. Muito engraçado o texto dela. Eu gosto de alguns talos e cascas, adoro folha de beterraba e estou disposta a experimentar folha de cenoura, mas o cardápio que ela expôs realmente é exagerado e acaba com o apetite de qualquer famigerado...