terça-feira, 23 de dezembro de 2008

1968: A torre do Banespa x 2008: a torre do Santander.



Homenagem ao "ARQUIVO 68”

Como disse no “intróito” deste blog o ARQUIVO 68 foi, de verdade, “meu” primeiro blog. Assim antes que este ano de 2008 termine, e parece que o fará rapidamente, quero homenagear aquele blog transpondo para o OFÍCIO: CONTADOR DE HISTÓRIAS um texto especialmente escrito para o ARQUIVO 68.



"1968

Foi em 1968 que iniciei, em São Paulo, minha participação junto a um movimento operário de Osasco, do qual Sérgio, meu colega de curso, era uma das lideranças. Era um grupo pequeno, formado por representantes de diferentes fábricas da cidade, e seus participantes não ficavam implicando e nem mesmo nos questionando pelo fato de sermos professores e não operários: éramos, simplesmente, aceitos como trabalhadores.
Suas principais lideranças eram vinculadas ao Partido Comunista Brasileiro e o grupo buscava desenvolver ações não só nas fábricas, mas, também em favelas, clubes de futebol. Dava para sentir, em seus participantes, uma certa “birra” com o pessoal do movimento estudantil: “filhinhos de papai, que não agüentam um “pum” do Fleuri”, diziam.
Dois “quadros” que pertenciam ao grupo haviam sido presos durante ações de mobilização, em suas respectivas fábricas, e a principal discussão que ocorreu, naquela reunião de domingo à tarde, foi relativa a como denunciar “a toda a sociedade, a prisão de nossos companheiros.”
Uma das ações propostas, e aceita, foi a de imprimir panfletos, relatando o acontecido, e “soltá-los” da torre do Banespa, no centro de São Paulo. Sérgio foi designado o responsável pelo planejamento e operação desta ação.
- “Topa?”
- “Sim, topo.”
À época, usávamos umas bolsas feitas com plástico grosso e zíper: eram nelas que carregávamos nossas apostilas, livros e cadernos. Numa manhã da semana seguinte, eu aguardava pelo Sérgio, em frente aos Correios, com minha bolsa recheada, não pelas apostilas e cadernos de sempre, mas por dois pacotes de panfletos impressos, em papel vagabundo, em Guarulhos. Haviam sido trazidos pelo Sérgio, um dia antes, e passados para minha “guarda”, no banheiro da escola onde estudávamos. Sérgio me encontrou em frente aos Correios e trazia, em sua pasta, duas garrafinhas com meio litro de álcool cada, o suficiente para encharcarmos os pacotes de panfletos e deixá-los no parapeito da torre: a evaporação do álcool e o vento se encarregariam do resto. “Deus queira, pensava eu”, ansioso.
Chegamos, juntos, ao hall do Banespa e anunciamos nossa intenção de visitar a torre, para “ver São Paulo inteira, lá de cima”. Por causa do sotaque caipira, fui o porta voz:
- “Somos do interior e estamos passeando aqui...Meu primo, que trabalha no Banespa, em Botucatu, foi quem nos orientou para este passeio. Ele disse que é lindo.”
- “Como se chama seu primo?”
- “Paulo, trabalha no Banespa lá de Botucatu.”
Lá fomos nós. Utilizamos um silencioso elevador, até o vigésimo-sexto andar, onde aguardamos, no amplo hall, um outro, que nos levou até o trigésimo-segundo. Dali, “a pé”, subimos dois ou três lances de escada e alcançamos a torre.
O dia estava nublado e havia duas pessoas visitando a torre: “tomara que saiam logo”, pensava eu, nervoso.
A bolsa com os panfletos pesava...
Fomos, Sérgio e eu, para o lado que avistava a Zona Sul e conversamos um pouco, na tentativa de nos acalmarmos mutuamente. De lá, com o rabo do olho, vimos que os dois outros visitantes iniciaram a descida, pelas escadas.
Imediatamente, iniciamos nosso trabalho: retirei um dos blocos de panfletos da bolsa e o encharcamos, rapidamente, com álcool, deixando-o no parapeito da parte sul da torre; o outro bloco ficou, também encharcado, na parte norte.
Guardamos as garrafinhas de álcool, uma delas com algum conteúdo, e iniciamos a descida, pelas escadas. O cheiro de álcool, na bolsa do Sérgio, era forte, o que nos levou a um banheiro, no trigésimo segundo andar, para jogar, em um vaso sanitário, o conteúdo restante. Demos descarga e Sérgio aproveitou para molhar o rosto e pentear seus cabelos crespos.
Tomamos o elevador para o vigésimo sexto andar e, no hall, ficamos aguardando por outro, que, finalmente, nos deixaria no térreo. Aqueles segundos, ou minutos, de espera, no hall do vigésimo-sexto andar, pareciam horas: o elevador nunca chegava e o tempo não passava. Minhas axilas estavam molhadas e pequenas gotas de suor corriam pelo peito, sob a camisa, fazendo uma coceirinha gostosa. Aí entendi porque Sérgio havia molhado o rosto e os cabelos: seu rosto e peito eram puro suor.
Chegou o elevador, que nos deixou no térreo e, logo depois, aguardávamos, no Anhagabaú, a “tempestade” de panfletos que denunciaria, a toda a sociedade progressista de São Paulo, a prisão de nossos companheiros. Por segurança, nós nos separamos e fiquei em frente aos Correios, “vigiando” a zona norte da torre.
Nada!
Naquele momento, o sol aparecia, forte, sob as nuvens, e a neblina ia, aos poucos, sumindo... “Será que colocamos álcool demais? Por que está demorando tanto a evaporação? Será que falta vento? Deus do céu, ajude-nos”, pensava.
Foi aí que Deus resolveu ajudar e o “milagre” ocorreu: não uma “tempestade” de panfletos, mas uma “garoazinha” de papéis caindo no Anhangabaú. Algumas pessoas pegavam, outras, distraídas, ignoravam.
A ansiedade havia passado e eu me sentia confortável.
Resolvi, então, caminhar pelo Anhangabaú, apanhar, distraidamente, um panfleto e ler, demonstrando surpresa e indignação.
Puxei conversa com um senhor que havia me visto apanhando o panfleto:
- “Nossa!!! Está “falando” que tem dois operários de Osasco presos, aqui no Dops”; eu disse, ao mesmo tempo em que lhe ofereci o panfleto.
Procurei acompanhá-lo durante a leitura. Leu rapidinho, só o acompanhei por uns dez passos, e com ares de desinteressado, me devolveu e não disse nada além de:
- “Não jogue na rua, para não emporcalhar ainda mais a cidade.”
Desconcertado, apanhei o papel de suas mãos e guardei em minha pasta, agora vazia.
Encontrei-me com o Sérgio, perto do Mappin, em um ponto de ônibus, no qual tomamos o “929 – Largo da Concórdia – Cidade Universitária –” e fomos, com a alma leve, assistir às aulas do nosso curso de Especialização para Professores de Quinta e Sexta Série.

2008.
No hall do Santander, há, agora, além do lustre de cristal que, segundo o panfleto colorido que apanhei na recepção, “se destaca, com 13 metros de altura, 2 metros de diâmetro, 900 lâmpadas, 10 mil peças, pesando cerca de 1,5 tonelada” , uma exposição permanente de obras de arte.
Correntes com elos de plástico amarelo formam um corredor para organizar a fila dos interessados na visita à torre. Entro na fila que tem, à minha frente, quatro ou cinco pretendentes, como eu, à visita. Antes de chegar a minha vez de ser atendido, percebo que, a todos, será pedido um documento de identidade, que uma ficha será elaborada e que a atendente, manipulando uma camerazinha minúscula, solicitará que se coloque o rosto em determinada posição para a fotografia. Para um rapazinho que estava pouco à minha frente, é solicitado que deixe sua mochila na chapelaria.
Retiro, de minha mochila, a carteira de motorista e entrego-a à atendente, em resposta ao seu pedido de “um documento de identidade, por favor.” Depois, tive de fornecer o número de meu telefone residencial e obedecer ao “olhe para câmara, por favor, vamos fazer uma foto do senhor.” Obedeço, sorridente: gosto de sair sorrindo em fotos.
- “A mochila, senhor, por favor, queira deixá-la na chapelaria.”
- “Gostaria de levá-la comigo: tem meus documentos, meu celular e, também, dinheiro.” Na verdade, o que havia de importante na mochila era um exemplar do Sentimento do Mundo, da Coleção Grandes Escritores Brasileiros, da Folha de São Paulo, do mineiríssimo Drumonnd, comprado, há pouco, em uma banca...
- “Não pode, senhor. Questão de segurança. Tire dela o que o senhor quiser, e pode deixá-la em nossa chapelaria; é superseguro.”
O que eu queria, de fato, era testar a possibilidade de visitar a torre com minha mochila e, como todo velho chato, continuo:
- “Mas...”
- “Por favor, senhor, não insista, veja a fila que está se formando atrás do senhor.”
Deixo minha mochila e recebo uma senha para retirá-la na volta: “E o que faço com meus panfletos?”, penso.
Enfrento outra fila para aguardar a autorização para subirmos, o que só ocorreria quando o grupo que está na torre descer, segundo nos informa a moça de uniforme preto e revólver na cintura.
- “Está liberado, senhores...é só seguir a segurança, por favor.”

No elevador que nos levará até o vigésimo sexto andar, uns dez interessados na visita: duas venezuelanas, com sua guia, o rapazinho da mochila, um casal de rapazes falando inglês que, aproveitando o aperto do elevador lotado, se tocam e se olham de maneira apaixonada.
Como há quarenta anos atrás, no vigésimo sexto andar, temos que ir para o hall e aguardar outro elevador, que nos levará até o trigésimo segundo andar. Aproveito para folhear o panfleto que havia recebido no hall de entrada, colorido, com fotos e informações: a altura da torre é de 161 metros, é possível avistar de sua altura até quarenta quilômetros, foi inaugurada no dia...
Chegamos ao trigésimo segundo e me recordo do hall. Outra espera até que o grupo que está na torre desça. Aproveito para visitar o banheiro, onde, há quarenta anos, fizemos, Sérgio e eu, “xixi” de álcool.
Todos assinam um “livro de presença”, onde descubro a nacionalidade das venezuelanas e a do simpático casal de jovens ingleses.
Uma outra segurança, morena bonita, também com seu uniforme negro e revólver na cintura, dá a ordem:
- “Podem subir, senhores...boa visita.”
Aguardo todo o grupo: quero ser o último a subir os três lances de escada
A torre continua extremamente igual: suas pastilhas cinzas e o seu guarda corpo largo, tão adequado para acolher panfletos embebidos com álcool e sonhos...a cidade enorme, agora não muito estranha para mim, lá embaixo, e o barulho rouco de seus carros, de suas pessoas...
Deixo o grupo com o seu emaranhado de comentários: “olha ali..é o Copan?, veja o mercado municipal, it´s beautiful, mui lindo”...e desço para o triogésimo segundo. Ali, nova espera: não posso descer só para o trigésimo segundo andar, tenho que aguardar o restante do grupo, me informa a linda segurança, com seu uniforme negro e seu revólver na cintura. Ela me oferece uma cadeira, que aceito e onde sento e releio o panfleto colorido.
A bela segurança fala ao rádio, com sua colega da torre:
- “Horário de visita encerrado, peça ao pessoal que desça, câmbio.”
A resposta vem rápida:
- “Pessoal descendo, câmbio.”
- “TKS”.
Fomos autorizados a descer até o trigésimo segundo andar. No hall, outra vez em fila de espera, até ouvirmos, com um bonito timbre, da segurança: “por favor, senhores, podem tomar o elevador. É só seguirem a segurança: muito obrigado pela visita.” O mesmo ritual de fila, espera e rádios de comunicação, com seus “câmbios” e “TKSs”, se repete no vigésimo sexto.
No térreo, a outra segurança e seu revólver, também bonita, mas não tanto quanto a do trigésimo segundo nos pede, com voz calma, que lhe entreguemos os crachás.
Vou até a chapelaria e retiro minha mochila vazia: sem panfletos, sem sonhos... só o Sentimento do Mundo, do Drumonnd.
Vou até o prédio dos Correios, agora, totalmente reformado, lindo, à espera de uma tempestade ou, mesmo, de uma garoazinha.
Nada....
Na boca, um gosto amargo de derrota: minha geração fracassou. "

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