quarta-feira, 26 de novembro de 2008

E-MAILS, ou a reivenção do gênero epistolar




Para as pessoas tímidas, e me incluo entre elas, o e-mail é excelente. Silencioso, não tem o inconveniente tilintar do telefone, que exige, muitas vezes, um enorme esforço da secretária do amigo para informar que o tal amigo - que está - não se encontra, ou que está, mas acabou de entrar em uma longa e importante reunião com o presidente...Enfim, para nós tímidos, acaba com aquela chateação de se sentir invadindo o mundo, as rotinas ou o laborioso dia de trabalho do antigo companheiro de faculdade ou de time de futebol.
Veja só, um amigo me contou que ligou várias vezes para uma antiga colega de faculdade e que a mesma estava sempre “no banho”. Menos tímido que eu, persistiu e, quando, após infinitas tentativas, a antiga amiga se dignou a atender ao telefone:
- “Bom dia!”;
- “Oi, Fulana, bom dia! Aqui é Fulano. Como vai você?” e logo depois do indefectível,
- “Estou ótima e com você meu querido?”;
- “Estou bem e você deve estar limpíssima.”
Findou-se, assim, uma amizade que, se fosse cultivada por e-mail, teria, com certeza, sido mantida até os dias de hoje, o que é uma pena, a perda da amizade, claro.
Prefiro os e-mails e mantenho muitas amizades assim.
Um grande amigo, original e ocupadíssimo executivo de uma multinacional, certa vez, respondeu a um longo e-mail e disse que o mesmo resgatou o velho hábito de escrever cartas; e nele me deu, também, de graça, o título desta história, que, na verdade, não chega a ser uma história; é mais um passatempo. Mas, recordando o amigo, os e-mails, de verdade, resgataram o gênero epistolar.
Já um outro amigo, com o qual troco imensos e-mails, jocosamente disse que o grande mérito do e-mail foi deixar tudo muito familiar: fulano@, beltrano@, cicrano@; segundo ele, todo mundo primo, irmão, sobrinho ou tio.
Esta longa e, acho que para muitos, desnecessária introdução, também coisa dos tímidos, só serve para dizer que vivo escrevendo e-mails. Passo o tempo e acho muito melhor do que palavras cruzadas, agora novamente na moda, para ativar as mentes ociosas do numeroso pessoal da terceira idade.
Às vezes, começo logo o dia tomando café preto bem forte e escrevendo e-mails. Em uma destas manhãs ou madrugadas, respondi a um e-mail do meu amigo e da “limpíssima” colega, que havia ficado uns bons dias em minha caixa postal:

“Prezado Wlá,

Bom dia ou, provavelmente, segundo o seu relógio biológico, boa madrugada!!! Afinal, são 6:05 h da manhã.
Sabe que tenho um amigo, o Pedro, que agora mora em Salvador e que um dia usou a expressão "lambendo as crias" para explicar o que ficou fazendo durante um fim de semana prolongado aqui em São Paulo. Na hora, achei grosseira a expressão, mas, passei a gostar.
Todo esse "intróito" para dizer o que andei fazendo nos últimos 20 dias. Lambendo as crias. Minha "cria" menor pegou 15 dias de férias e, como o seu namorado não tinha o mesmo direito, ficamos nós, os pais, "lambendo a cria". Fizemos uma viagem para Goiás, com passagem por Ribeirão Preto, Araguari...Voltamos para São Paulo e continuamos a "lamber a cria". No fim de semana, veio aqui prá casa a "cria" mais velha e continuou a lambeção.
Engraçado, mas minha educação extremamente severa - era proibido xingar, falar nomes feios, etc - ainda é muito presente. “Cria” e “parir” são palavras com as quais - pelo menos inicialmente - não tenho uma boa relação. Besteira pura.
Bem, após tanta lambeção de crias, vamos curtir os amigos. Vou telefonar prá Lu e marcar um encontro aqui em casa. Aqueça os tamborins e vamos matar saudades, contar mentiras e falar mal dos outros. Vai ser bom.
Um grande abraço,
Orlando.”

Outra manhã, depois de uma deliciosa ópera no Municipal na noite anterior, estava folheando o jornal, à procura das críticas relativas à dita ópera. No caderno Ilustrada, encontrei: um palavrório sombrio, uma vergonha de simplesmente dizer que gostou, a tudo tendo ou querendo justificar que resolvo: em vez de ficar lendo críticas, achei que valia mais a pena escrever e-mails para uma querida amiga, fã de bons concertos e boas óperas.
“Querida Beth,
Como vai?
Fiquei sabendo, pelo Daniel, que você esteve no Municipal, vendo Lohengrin. Eu também estive lá, numa quarta-feira, e me esbaldei. Tudo me tocou profundamente. E... lá vem histórias.
Em minha infância, nós tínhamos um primo distante chamado Diquinho. Era um andarilho. Os mais velhos, quando o viam chegar, faziam cara feia. Fama de preguiçoso, sujo e outros defeitos mais. Também diziam que o único jeito do Diquinho ir embora da casa que o acolhia era pedir que ele rachasse lenha: atividade que - não sei se você sabe - exige grande esforço físico.
Meu receio era de que pedissem logo ao Diquinho que fosse rachar lenha o que o faria procurar outras casas e outras comidas.
Porque Diquinho era o sonho das crianças. À noite, não muito a noite, porque dormíamos muito cedo, era hora de ouvir suas histórias.
O Diquinho era um contador de histórias. Contava a dos Cavaleiros da Mesa Redonda, do rei Artur, e muitas outras. O interessante é que ele repetia as histórias e ficávamos disputando qual delas queríamos que ele contasse. Por ser o menor, eu ficava sempre em último lugar nos pedidos, mas não importava... gostava de todas.
Hoje, fico pensando de onde ele tirava aquelas fantasias todas. Era analfabeto. Um tipo muito franzino e débil, que vivia livre e graças à solidariedade de uma época em que não se negava cama e comida a primos distantes e, talvez, a ninguém.
Ainda do Diquinho: mudando de Pedregulho para Ribeirão Preto, em busca de trabalho e para continuar o Curso Normal, fiz uma grande amizade com uns outros "primos de longe", que moravam por lá. Era uma família muito simples, que se "arrumou" em Ribeirão: todos trabalhavam.
No Hospital das Clínicas, trabalhava a Gláucia, que estudava comigo e me deu uma grande força no velho Instituto de Educação Otoniel Mota. Na Coca-Cola, trabalhava o João, que, por pouco, não conseguiu me fazer abandonar a "missão" de ensinar para jogar futebol no Comercial de Ribeirão Preto.
Tinha também o José, que namorava a Eulália, moça belíssima, que era bibliotecária na Biblioteca Municipal Altino Arantes. Ia lá para vê-la - e ela não me via - e aproveitava para entregar livros e pedir outros emprestados. Assim, li tudo do Jorge Amado, do Érico Veríssimo, do Machado de Assis, muita coisa do José de Alencar...Enfim...lia-se muito.
Então...
Esta família era espírita - o que era grave, para mim, na época, um quase beneditino - mas nos entendíamos e eu gostava muito deles.
Uma noite, fui buscar minha irmã no Hospital das Clínicas, onde ela trabalhava, e lá encontrei com a Jacira - mãe desta família e que também trabalhava no Hospital - que me disse que tinha ido ao Centro, naquela semana, e que a alma do Diquinho havia "descido" na sessão, que o mesmo estava bem, finalmente desligado da miséria e dos pecados do mundo, e que logo reencarnaria em um corpo de alguém que não tivesse tantos pecados para cumprir aqui na Terra. Mesmo sabendo de um futuro mais feliz para o Diquinho reencarnado, me entristeci.
Pois bem, e, agora, o melhor da história. Alguns meses depois, indo a Pedregulho visitar uma outra irmã, que morava em um sítio, sabe quem encontro? O Diquinho: vivíssimo, contando histórias, mais velho e que, agora, com certeza, não daria conta de rachar lenha, de tão fraco e franzino. Contou minha história predileta, que falava de um rei que tinha sete segredos, que guardava no fundo do mar, dentro de sete caixas, cada caixa com sete princesas e tudo o mais. Lindíssima história. O Lohengrin me levou até lá.
Um beijão,
Orlando.”

Uma vez, li uma entrevista do Caetano Veloso, na qual ele diz que adora pegar o violão e, sentado na escada, ficar tocando, tocando: “enche o saco de todo mundo, menos o meu”, disse. Não toco violão, então, escrevo e-mails. Não encho o saco de ninguém, mesmo do destinatário: é só deletar; e, por isso, não uso nem mesmo aquele bendito recurso de “confirmar se recebeu o e-mail”. Livre para escrever e, mais ainda, para ler.
Mais um e chega: este para um amigo que conheci em concertos da OSESP e que estava em uma luta, finalmente perdida, contra um câncer violento. Antes de descobrir a doença e mesmo em seu tratamento, quando tinha forças, o Geraldo tinha uma mania de, semanalmente, nos encaminhar e-mails com frases, artigos e outros que tais, nos desejando uma boa semana. Em seu período de tratamento, a ausência de seu e-mail desejando a boa semana era motivo de preocupação.
“Prezado Geraldo,
E cadê o tradicional BOA SEMANA, com o qual você nos brinda?
Me acostumei a gostar deles.
Sabe que, em um e-mail, no qual te conto que fui um alfabetizador de adultos, lá pelas bandas do Vale do Ribeira, você responde dizendo que deve ter sido uma fase difícil em minha vida. O engraçado é que todos pensam como você. Só que não foi.
O que quero dizer é que, vendo as coisas HOJE, parecem difíceis, mas eu não achava assim, naquela época.
Seguinte: eu encarava aquilo tudo com muita naturalidade e até com um certo orgulho. Os horizontes eram, talvez, pequenos, mas – intuitivamente - eu os encarava como momentos de minha vida. O ano seguinte seria outro ano...e eu construiria minha vida.
Assim, achava natural andar 24 km, a pé, aos sábados à tarde - porque, naquela época, as aulas iam de segunda a sábado - para ir a Registro, dançar, namorar e - claro - jogar bola no Domingo, à tarde, e voltar, à noite: sozinho, sem medo, assobiando e pensando no próximo sábado e, também, na segunda, na terça....
Um dia, te conto das experiências de passar medo de escuros, de sacis e outros que tais pelos quais passei por lá. São estórias engraçadíssimas, hoje, porque, na época, foram terríveis. A única vantagem era a de que eu passava medo, deitava, então, com uma lamparina acesa e dormia. Uma noite dessas – com lamparina acesa, medo e sono profundo juntos - quase pus fogo na escola, que era, também, o local onde eu morava.
Uma vez, uma noite, acordei com um barulho tremendo na sala de aula. Como te contei no outro e-mail, naqueles lados era comum as escolas serem construídas, também - além da sala de aula - com quarto, cozinha e sala, agregados que se transformavam na residência do professor. Pois, como eu ia te dizendo, certa noite, estava eu lá, em sono profundo, quando um barulho enorme me acordou.
Era um barulho estranho, com pausas mais ou menos cronometradas e - parecia – que, após o descanso de cada pausa, a próxima investida se iniciava com um vigor maior, mais alto “tchock, plock. Plém, tchok,tchok, plem....”
Isto ali, ao lado de minha cabeça...separado por uma tênue parede, que isolava a sala de aula e o quarto onde eu dormia. O barulho, com certeza, vinha de lá.
Senti medo e susto com aquele barulho desconhecido.
Abrindo um parênteses: quando, uma vez, contei isso para as minhas filhas, elas logo perguntaram: mas, porque você não telefonou para a polícia? Incabível, no mundo delas, uma vida sem telefone. Fecha o parênteses.
Tentei dormir...Não dava. Acendi a lamparina e me pareceu que, com a luz da lamparina acesa em meu quartinho, os intervalos entre os diversos "movimentos" da sinfonia diminuíam. O jeito era enfrentar a "coisa": podia ser um saci, uma mula sem-cabeça ou o capeta.
De lamparina em punho, atravessei a cozinha, a salinha e ...coragem...abri a porta da sala de aula.
O barulho se repetia intermitentemente. Aguardo outro “movimento” do concerto, para localizar sua origem, e descobri: um morcego havia caído em uma lata de óleo de vinte litros, usada para jogar lixo e para a criançada apontar lápis. O coitado do morcego tentava alçar vôo, mas não conseguia: culpa destas coisas de aerodinâmica, da física ...Virei a lata e o morcego foi para o teto e eu voltei a dormir.
Tudo isso prá te desejar uma BOA SEMANA.
Abraços,
Orlando.”
Só sei que o Geraldo não respondeu a este e-mail.
Educado, tinha o velho hábito de, a todos, responder.

4 comentários:

Morales disse...

Orlando...Neste comentário vou contar uma história recente que tem muito a ver com a sua sobre a "reinvenção do gênero epistolar". Você conhece todos os personagens e testemunhas. Como você sabe sou do tipo que escreve e-mails, muitos e-mails. Nessa minha mania, tentei por bastante tempo me comunicar com o Claudino Piletti-lembra dele?-mandando a ele mensagens para endereço fornecido por seu irmão, Nelson Piletti. E nada de resposta.

Pois bem, escrevi para ele uma carta, que tive o capricho de imprimir em parte e outra parte escrever a mão, com caneta tinteiro e colocar no Correio?

Não é que funcionou? Dias depois recebi uma bela carta do Claudino inteirinha escrita à mão, com caneta tinteiro e bela caligrafia...pelo Correio!

O Jarbas e o Küller são testemunhas do fato. A carta era tão interessante - na forma e no conteúdo - que a escaneei e lhes enviei uma cópia-por e-mail!

Anônimo disse...

Olá Tonhão,
Bom dia!

Puxa vida....Afinal encontrei alguém mais arredio ao micro que eu: o Claudino.
Quem sabe uma hora ele também não perde o "medo" e se aventura. Hoje já lido com o Word com a mesma "desenvoltura" que lidava com uma velha Remington elétrica.
Abração,
Orlando.

Cássia disse...

Jura mesmo que Deus não inventou o e-mail e o google no sexto dia???

Anônimo disse...

Oi Cacá,
Não misture deus com e-mails não; é pecado mortal ou venial,não me lembro bem, "usar o seu santo nome em vão".
Agora iniciar a escrita do "santo nome em vão" com letra minúscula, como fiz, além de pecado recebe uma bronca do prof. Pasquale.
Beijão,
Pai.