quinta-feira, 6 de novembro de 2008

VAI GRAXA AÍ, DOUTOR?


Dois sisudos “nãos” a dois convites para engraxar os sapatos me fazem refletir: será que meus sapatos estão tão sujos assim ou é a falta de fregueses? Olho para os pés e os sapatos estão a meio termo: um pouco sujos e sem nenhum brilho. Cedo ao próximo convite e, com as pernas cansadas, solto todo o peso do corpo, gostosamente, na cadeira do velho engraxate.
Antes de oferecer o jornal ou a velha revista, o engraxate, já cinqüentão, desamarrava o cadarço dos sapatos e, à queima roupa, pergunta:
-“O senhor é padre?”
Rapidez de raciocínio não é o meu forte. Normalmente, sofro com piadas, das quais rio falsamente na hora em que é contada, e só depois, em casa ou no ônibus, relembrando-as, as entendo, e aí sim, fora de hora sorrio; o que parece – quando ocorre no ônibus - sinal de loucura ou demência para os outros passageiros. Em casa, quanado rio fora de hora, já estão acostumados: “contaram piada prô pai”.
Naquele dia, não. Fui rápido:
-“Ô louco, como o senhor adivinhou?”
Logo após, contente com a inesperada agilidade que tive - mas sempre muito exigente comigo mesmo - pensei que em vez de “ô louco, como o senhor adivinhou?” – parece coisa do Faustão – deveria ter dito: “Por Deus, meu filho, como você adivinhou?”
Entretido lá com os cadarços dos sapatos, o engraxate fica quieto. Aguardo e, alguns segundos depois, insisto:
- “E então, meu filho, como você adivinhou?” Reparem bem no “meu filho”.
- “Sei não. O jeito. A cara boa. O senhor tem um jeito sincero, de honesto, de padre.”
Em dúvidas sobre a continuidade ou não do diabólico plano que tramava, fui buscar forças em uma história do Monteiro Lobato. Chamado sempre de doutor, por ser advogado, certa vez foi – altas horas da noite - convidado para acudir uma parturiente. Ele foi e fez o parto. Coragem para tanto eu não teria, mas o caso aqui é bem mais simples. Daí:
- “O senhor é católico?”
- “Com a graça de Deus, sim. Católico e devoto de Nossa Senhora de Lourdes. Em minha família todos crentes e devotos, mas não desses crentes do bispo Placebo, que rouba dos pobres. Crente e temente a Deus, da antiga e verdadeira Igreja Católica Apostólica Romana, com muito orgulho e com a santa graça de Deus”.
- “Praticante?”
- “Bem, ultimamente nem tanto. Bebo muito aos sábados à tarde e amanheço aos domingos com uma dor de cabeça desgraçada. Tem também um pouco de preguiça, mas vou parar com isso. Domingo que vem já vou. Gosto da missa das sete. A igreja da Vila Formosa é perto de casa”.
Os sapatos começavam a ter um outro aspecto. Velozes, com ritmo, a escova e os panos davam nova vida a eles.
- “Ah, na Vila formosa, e quem é o pároco lá? Talvez conheça.”
- “O nome não sei, me esqueci. Mas é um velho italiano. Sei que é italiano pela fala diferente na hora do sermão. Toda vez que escuta, minha velha chora. Teve uns tempos que eu pensava que chorava de arrependimento e brigava com ela, depois, em casa, por causa de seus pecados que eu queria saber quais eram. Ela dizia que não chorava por pecado nenhum e que era de tanta beleza do que o padre falava.”
- “Crente em Deus, sua velha.”
- “Ah. Ela é sim. Quando eu não vou, vai sozinha à missa: reza, confessa e comunga. Eu faz tempo que não confesso. Muito tempo, mesmo!”
- “E por que meu filho? É tão bom confessar seus pecados, ter a alma limpa e a consciência tranqüila para receber o corpo do Senhor.”
Novamente muito ágil, sem muito pensar, resoluto, o velho engraxate:
- “O senhor me confessa, aqui?”
Enquanto me preparava para responder que sim, que eu o confessaria ali mesmo na praça, puxei pela memória na busca do rito da confissão. O pensamento voou para os velhos tempos lá no interior, ainda meio criança e meio adolescente. Uma pequena fila no confessionário e, quando chegava minha vez, ajoelhava, fazia o sinal da cruz e, sempre rápido, sem nenhum cuidado com a pontuação, mas muito com a pressa, desembestava meio de cor: “Faz uma semana que não confesso; briguei, xinguei, desobedeci meu pai, desobedeci minha mãe, fumei escondido, pequei contra a castidade”. O “pequei contra a castidade” funcionava como uma campainha para acordar o sonolento padre que, também automaticamente, penso eu, interrompia minha ladainha...
Mas vamos voltar à praça; todo constrito respondi:
- “Sim, meu filho, te confesso. Quais são os seus pecados?”
Talvez pego de surpresa , agora um pouco hesitante, o velho olhou para os lados, olhou para mim, depois olhou para trás buscando uma sombra ou alguém que se aproximasse e o livrasse daquela confissão a céu aberto. Não dei tréguas, curioso que estava para saber dos pecados do engraxate. Monteiro Lobato fez pior, me desculpava.
Mas, também não querendo ser pego de surpresa, teimava em relembrar minhas velhas confissões: o “pequei contra a castidade”, que funcionava como campainha, era sempre rápida e maquinalmente interrompido pela pergunta “Sozinho ou acompanhado?” Se sozinho, a confissão continuava sem interrupção. Se acompanhado, vinha lá outra rápida pergunta: “Com pessoa ou com animal?”
- “Cometi um pecado grave, senhor padre, tenho vergonha de contar”, humildemente iniciava sua confissão o nosso engraxate.
Era só estimular:
- “Fale meu filho. Deus é bom Pai e sabe perdoar. Ele ama seus filhos, vamos, coragem. O que te envergonha? Está mesmo arrependido?”
- “Estou sim, arrependido e envergonhado. Foi na casa do vizinho, um roubo. Precisar não precisava, podia passar sem, mas...Sei lá. Sim eu roubei e sei que é pecado. Me perdoa?”
Aí fui eu que me senti pego de surpresa e precisava ser rápido. Estava imaginando lá umas traquinagens sentimentais do velho e lá vem ele com roubo. Não tinha experiência em confissão e absolvição de roubos. Nos pecados contra a castidade, me lembrava, a absolvição e a penitência sempre variava em função do “sozinho” ou “acompanhado”; se “com pessoas” ou “com animais”; assim como o número de vezes que o pecado havia sido cometido. No caso de roubo, tinha pouca ou nenhuma prática; no máximo, uns cachos de uvas na parreira do seu Edmundo e ainda mais junto com o seu filho, o Nenzinho. Roubou o que, pensava: uma bicicleta, uma banana, uma peça de roupa, ou sei lá o que? Cada roubo tem seu peso. No caso de atentados contra a castidade, se a coisa era “sozinho”, uns dois pai nossos; já “acompanhado”, a penitência era maior: quatro ou cinco pai nossos, umas dez ave marias e, às vezes, segundo o humor do padre, uma salve rainha.
- “Deus há de te perdoar, filho. O que você roubou?”
- “Que Deus me perdoe, tenho vergonha, senhor padre, roubei lá do meu vizinho umas garrafas de pinga. Sei que não devia, mas, na hora, sem pensar, roubei”.
- “Quantas garrafas, filho?”
- “Da primeira vez, uma, na segunda vez, duas...Não devia, mas fiz. Estou arrependido”
Fiz então algumas contas da penitência, mas, para ser justo e correto, precisava de mais precisão de informações. Uma idéia seria multiplicar o número de garrafas por cinco e o resultado seria o tanto de ave marias; o número de vezes do pecado definiria os pai nossos.
- “Então, filho, quantas vezes você cometeu este pecado?”
- “Bastante; meu vizinho tem um bar. Preciso parar. Vou parar com isso, padre me perdoa?”
- “Meu filho, reze cinco pai nossos, doze ave marias, um salve rainha e faça bastante sinal da cruz; um sinal da cruz para cada vez que você roubou. Fique com Deus, seus pecados estão perdoados.”
Sapatos limpos, brilhantes como novos, pago o velho engraxate e me despeço.
- “Adeus, filho”
Outra vez muito rápido, o velho engraxate toma minha mão e a beija:
- “A benção, senhor padre”.
Da banca do engraxate até o ponto de ônibus dava lá uns quarenta ou cinqüenta metros. Que porco e sujo sou. Já pensou se, baseado nesta falsa confissão, esse velho senhor vai à missa e comunga? Deixa de besteira: ter confessado seus pecados a mim, ao Dom Evaristo ou ao Cônego Arnaldo é tudo a mesma coisa; pior quem fez foi o Monteiro Lobato. Volto e confesso ao engraxate a minha farsa? Não, tá louco, o velho vai virar bicho. Deixa para lá. Não dá. Se não falar com ele, penso que vou ficar com esta história me atormentando até sempre. Porque fiz esta besteira de confessar o engraxate? Poderia ter lido jornal, olhado a revista de mulher pelada que sempre tem nessas bancas, mas não, fico aí sabendo da vida das pessoas; saber da vida das pessoas tudo bem, mas não do jeito que fiz. Volto e falo. Volto não, sei lá como vai reagir o velho.
Volto.
O velho engraxate já está lá todo enturmado com seus colegas, cantando e fazendo samba com as escovas em suas caixas. Acho que até já esqueceu a confissão; ou não, o que é pior: crente de estar com a alma limpa, canta e se prepara para, amanhã, ir à igreja e comungar com sua velha.
- “Queria falar com você. Vamos tomar um café?”
- “Café não, mas uma pinguinha, sim, eu aceito”; e já estava o velho me arrastando, parando o trânsito da avenida para que, rapidamente chegássemos ao bar do outro lado.
- “Oi, Baiano, uma branquinha para mim e um cafezinho aqui prô seu vigário” e, me olhando de soslaio, “posso também uma cervejinha?” e já ordenando: “Dá também uma meia brama. Hoje, aqui o seu vigário está oferecendo.”
A pinga bebeu rápido, cuspiu no chão um pouco que era pro santo e começou a por a cerveja no copo. Meu pingado estava quente.
- “E aí seu padre?”
- “Não sou padre”.
- “Eu sabia.”
- “Como sabia? Até confessou pra mim que roubou pinga de seu vizinho?”
- “Que vizinho seu padre. Moro em pensão lá no Bexiga, que vizinho o que? Tudo brincadeira, nem casado eu sou” e, sempre muito rápido, deu um "tchau" para o Baiano, um outro para mim e atravessou a avenida em direção a roda de samba.
Acabei de tomar meu pingado, paguei o café, a cerveja e vi meu ônibus se aproximando. Corri, quase fui atropelado, mas atravessei a avenida a tempo de tomá-lo.
Alguma risada devo ter dado porque a senhora vizinha do banco, sorrateiramente, me deixou sozinho e foi ficar de pé ao lado do cobrador.









4 comentários:

Orlando disse...

Lindo conto Babinho!

Anônimo disse...

Veja se deu certo agora...

Morales disse...

Quem é Babinho Orlando? Seu comentário dá a entender que Babinho é quem escreveu o conto?
É isso, ou entendi mal?

Mas é mesmo um belo conto.
E gostoso de ler. Muito bem humorado!

Anônimo disse...

Tonhão,
O tal do Babinho sou eu...ocorre que eu estava no Skyp com a Cássia, minha filha, para ela me ajudar na configuração de apoio a quem quisesse postar comentários. Desta forma ela entrou em meu blog como se fosse o Orlando e "testou" os comentários!
Babinho é um carinhoso apelido pelo qual ela costuma me chamar.
Orlando