Tempos de uma preguiça triste.
Cansado com a rotina do trabalho, descontente com o pouco ou nenhum entendimento das exigências da vida, agrada-me sobremaneira o sol, os cigarros e o silêncio da pequena praça. Para compreender a existência e a convivência neste mundo talvez, só mesmo, páginas e páginas do escritor já morto, cigarros fortes - desses sem filtro - e a companhia de um louco: o Orozimbo.
- Está sorumbático? pergunta Orozimbo enquanto estende a mão para o maço de Continental.
Ofereço-lhe o cigarro, pego outro e com o mesmo palito de fósforo acendo os dois.
Tragamos forte.
Vou ler um trechinho para você, Orozimbo:
“Não compreendo você – disse Hans Castorp. – Simplesmente não compreendo como alguém possa viver sem fumar. Priva-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida. Em todo caso lhe escapa um prazer magnífico. Quando acordo pela manhã, já me alegro com a idéia de poder fumar durante o dia, e quando tomo uma refeição, já penso em fumar depois. Sim senhor, posso dizer, com um pouco de exagero, que como apenas para ter uma oportunidade de fumar.”
- Ota vida boa! fala Orozimbo soltando a fumaça pelo nariz e pela boca enquanto toma de minhas mãos A Montanha Mágica, de Thomas Mann, do qual havia lido o pequeno trecho.
Imediatamente me oferece desta vez não a brochura com a figura do Duque de Caxias na capa, mas duas folhas de papel pardo escrito a lápis.
- Rascunho ainda, falta passar a limpo, me disse.
MARIQUINHA PRECATA CONTA A HISTÓRIA DO CASAMENTO DE DURVALINA
Vou ler um trechinho para você, Orozimbo:
“Não compreendo você – disse Hans Castorp. – Simplesmente não compreendo como alguém possa viver sem fumar. Priva-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida. Em todo caso lhe escapa um prazer magnífico. Quando acordo pela manhã, já me alegro com a idéia de poder fumar durante o dia, e quando tomo uma refeição, já penso em fumar depois. Sim senhor, posso dizer, com um pouco de exagero, que como apenas para ter uma oportunidade de fumar.”
- Ota vida boa! fala Orozimbo soltando a fumaça pelo nariz e pela boca enquanto toma de minhas mãos A Montanha Mágica, de Thomas Mann, do qual havia lido o pequeno trecho.
Imediatamente me oferece desta vez não a brochura com a figura do Duque de Caxias na capa, mas duas folhas de papel pardo escrito a lápis.
- Rascunho ainda, falta passar a limpo, me disse.
MARIQUINHA PRECATA CONTA A HISTÓRIA DO CASAMENTO DE DURVALINA
Saí da moradia da Mariquinha Precata no lado dos pobres do cemitério e fui visitar o lado dos ricos. Cumprimentei o Dr. Eduardo, advogado famoso, que respondeu ao meu bom dia com sua voz de trombone:
- Boa noite!
Aqui, no fundão do cemitério, sempre me perco e nunca sei se é dia ou se é noite.
Está muito úmido e os probientes espirrando por causa da friagem: deve estar chovendo muito lá em cima, penso enquanto continuo a caminhar. A vontade de ouvir histórias e de palestrar me leva de volta ao lado dos pobres. Lá encontro a Mariquinha Precata encolhidinha em sua morada: magra, pele enrugada, mãos quase azuis de tanto frio.
- Bom dia Mariquinha!
- Boa noite Orozimbo!
- Me explique Mariquinha, agora aqui é dia ou noite?
- Aqui é o sempre, Orozimbo. O eterno! Desencarnei à noite, então é noite.
Queria prosas mais amenas.
- Me conte mais da Durvalina?
- Conto sim, gosto de contar...onde eu parei da última vez, se lembra?
- Lembro sim. Você parou quando sua irmã Durvalina tinha trabalhado na cozinha ajudando a servir o almoço e viu, nas mãos do patrão, o anel que enfeitava a mão que, à noite, em sua rede, tocava e alisava seus seios, seu ventre e tirava sua camisolinha de algodão....lembrou?
- Pois é claro que me lembro Orozimbo. Pois então, depois foi assim:
A vidinha de Durvalina continuava no normalmente. De dia continuava sua prática obrigatória de lavar roupas, tratar dos porcos no chiqueiro, buscar água na mina e cuidar do Sebastiãozinho e do Lindomar.... Agora seu descanso, de ficar só consigo mesma, começava depois que o patrão, no início da noite, antes de ir para a cama com a patroa, passava em sua rede para bolir com ela. Só depois é que dormia de verdade, descansada, alegre em sua solidão.
Foi aí então , em uma semana de lua nova, destas de total escuridão, a noite escura como breu chegando mais cedo tornando o dia mais curto que aconteceu o seguinte: naquele início de noite escura, impossível de alguma coisa se ver, Durvalina se viu desvestida de sua camisola de algodão e as mãos do patrão tatearem seu corpo com uma fúria maior e suas pernas serem abertas; daí foi que sentiu um peso enorme sobre si, uma respiração descontinuada, ofegante e quente aquecendo de calor seu rosto e uma forte dor queimando seu ventre adentro. Aquilo tudo só sossegou depois que gemidos balbuciados de dentro do corpo enorme do patrão inundaram a tulha onde estava sua rede.
Dormiu.
Manhã seguinte acordou com os risinhos de Rosa e de Rita:
- Doeu? perguntou Rita.
- Doeu, mas foi bom, respondeu Durvalina.
Passou todo o dia com dor forte no corpo, no ventre, temerosa da outra noite que viria.
Acostumou-se.
Foi daí também que percebeu que a patroa, que até lhe dedicava minutos de afetuosa conversa, virou-lhe a cara. Rosa e Rita evitavam falar com ela mesmo na hora do almoço ou quando lavavam a louça. Só Sebastiãozinho e Lindomar continuavam a lhe exigir as mesmas brincadeiras e cuidados.
A festa de São João estava para chegar. O mastro, feito com um tronco de guatambu, com a bandeira de São João em seu topo, enfeitava o curral; os galhos do guatambu foram cortados de modo a facilitar que laranjas maduras fossem enfiadas por todo o mastro; bandeirinhas de papel colorido cruzavam e descruzavam os moirões do curral. Tudo muito bonito.
No baile dançou com Oscar, moreno alto e forte, peão de confiança do patrão. Sentiu, enquanto dançava que seu corpo e seus seios, eram forçados, carinhosamente, a se aproximar do peito forte do peão. E foi assim que dançou e dançou. Sentiu, enquanto dançava, a mesma respiração ofegante e descontinuada sair do peito de Oscar; só que agora via o rosto, sabia quem respirava, quem apertava carinhosamente seu corpo frágil contra o peito forte.
Terminado o baile alojou-se em sua rede e dormiu sem ter sido tocada pelo patrão, cansado e bêbado da festança e do baile.
Por aqueles dias duas coisas mais aconteceram.
A primeira foi que ouviu, enquanto cuidava do Lindomar e do Sebastiãozinho, berros chorosos da patroa em conversa com o patrão:
- Não quero puta aqui em casa, ainda mais cuidando de meus filhos. Deus me livre! Livre nossos filhos dela, lhe imploro de joellhos.
A segunda coisa foi uma conversa com Oscar.
O patrão havia comprado uma outra fazenda longe dali, lá pelos lados de Assaré, e queria que ele fosse lá, cuidar de tudo como peão principal:
- Vou mas quero você junto. Quer casar comigo?
- Oscar, não sou mais moça.
- Sei. Te amo, Durvalina.
E lá se foi, feliz, a Durvalina, mulher casada de papel e tudo com Oscar, importante peão principal da Fazenda da Esperança, pro sertão do Ceará.
- Estou contando muito devagar, Orozimbo? Quer que eu me apresse nos relatos, pule coisas menos importantes, pequenos detalhes?
- Não Mariquinha...estou gostando de ouvir, de saber da vida de Durvalina, respondi.
- Ta bom, mas por agora chega. Cansei. Está muito frio, deve estar chovendo até canivete lá por cima. Outra hora conto o resto.
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